sábado, 31 de dezembro de 2011

Capitulo 16 - It's show time

    Estávamos do lado de fora da base, em frente a um grande portão de metal negro. Por cima dos muros, que mediam mais de dez metros de altura, homens armados apontavam suas submetralhadoras para nosso veículo. O muro era de um marrom desbotado, sem pintura alguma. Provavelmente ninguém teve tempo para detalhes, quando a base foi construída.
    O portão se abriu vagarosamente, com um rangido tremendo. Garoto calmamente afundou o pé no acelerador e entrou devagar no pátio da instalação. Por um momento, todo o interior me pareceu deserto. Aquilo não era comum.

-Onde foram todos? - Perguntei. Will simplesmente riu da minha pergunta, como se fosse até um pouco ingênua.
-Você logo verá.- Ele respondeu.

    Pela primeira vez, notei que todas as torres de vigilância eram conectadas por muros largos ou pontes erguidas com cordas. Eram passagens, para que os atiradores pudessem se comunicar ou pelo menos correr para outro lugar.
    Avistei uma pequena movimentação por trás de uma das grades. No momento seguinte, fomos cercados por dez, talvez vinte soldados armados que apontavam suas armas em nossa direção. Um deles fazia sinal para que os demais não disparassem, enquanto ele se aproximava da janela do motorista.
    Garoto acendeu um cigarro, usando a mão esquerda para abrigar o fogo da brisa que entrava pela minha janela quebrada. O homem baixou o lenço que tinha sobre o rosto e bateu no vidro com o nó dos dedos. Nesse momento, o motorista girava a manivela da janela, num movimento lento e preguiçoso.
-Ricardo! - Exclamou o homem surpreso. - Cadê o seu carro? -
-Houve um acidente. - Respondeu Garoto amargamente, enquanto soltava uma baforada de fumaça. -Perdemos um dos nossos. -

    O homem que veio até nós olhou para seus homens e fez um gesto com os braços. No momento seguinte, os demais soldados baixaram as armas e se dispersaram pelo pátio, de volta para suas tarefas rotineiras. O portão novamente começou a se mover, dessa vez fechando-se, com seu característico e incômodo rangido.
-Eu sinto muito. - Disse o homem simplesmente, enquanto se apoiava na janela do carro.
-Está tudo bem. - Respondeu Garoto, sem muita sinceridade. -Leva esse garoto à cela dele. E chame o Doutor Brooks para ir visitá-lo.
-Entendido.
    O soldado fez uma reverência militar rápida e deu a volta no veículo, abrindo minha porta. Deixou que eu saísse antes de falar qualquer coisa.
-Por favor, me acompanhe. - Disse então, enquanto começava a caminhar na direção do prédio principal. No caminho, ele ia recolocando o pedaço de pano que cobria a parte inferior de seu rosto.
    Olhei mais uma vez para cima. Naquele momento, um atirador caminhava tranquilamente por um muro enquanto bebia água de uma garrafa de plástico. Em suas costas, um pesado rifle de longa distância equipado de uma luneta.
-Bem pensado. - Falei para mim mesmo enquanto observava aquele aglomerado de pontes que se erguia acima de nossas cabeças. Notei que nesse momento o soldado que me acompanhava lançou um olhar interrogativo em minha direção, o homem já abria a boca para fazer um comentário.
-Isso mesmo – Eu disse , antes mesmo que algum som saísse de sua boca. - Eu falo sozinho. -

    Passamos por uma das entradas com portas automáticas de concreto. Dois soldados montavam guarda ao lado dela. Notei que um deles acenou para seu colega, que me guiava. O homem então retribuiu, e continuamos caminhando. Logo após entrarmos, eu pude escutar a porta se fechando logo atrás de nós.
    Fui conduzido por um longo corredor iluminado até uma porta de vidro escuro. Notei que aqueles corredores por dentro do prédio eram praticamente idênticos entre eles, seria muito fácil se perder por ali. A porta era de um azul forte, que impedia a minha visão do outro lado. O soldado se virou e abriu uma gaveta ao lado da porta.
-Por favor, coloque as suas roupas aqui. - Dizia ele, apontando para minha vestimenta e o compartimento. -Você vai passar agora por uma esterilização. Não há nada a temer, tudo bem? -
Fitei-o por alguns instantes, sem saber como reagir. Esterilização me lembrava nada menos que fogo. Queimar algo sempre foi a melhor forma de esterilizá-lo, e se a minha lógica estivesse correta, eu preferia ficar bem sujo mesmo.
-Por favor, coloque as roupas aqui. - O homem insistiu, levantando os olhos impaciente. -É só uma chuveirada.
-Foi o que disseram aos judeus. - Respondi, enquanto tirava minha camiseta. Ao me abaixar para tirar os calçados, senti algo frio roçar-me as costas. Lembrei da faca que estava presa na cintura da calça.
-Algo errado? - O soldado perguntou.
-Bom... Eu vou me despir aqui. - Respondi. -Você se importa de olhar para outro lado por alguns instantes?- Perguntei, com um sorriso mal disfarçado.
-Desculpe, senhor. É o procedimento. Você pode estar carregando uma arma, ou uma faca... E isso seria perigoso.
-Ah... Sim. - Respondi desviando o olhar. “Malditos protocolos de segurança”
-Jorge! - Gritou uma voz do final do corredor. Era Will, que carregava consigo uma pesada sacola. -O Brooks quer te ver no gabinete dele. Disse que é importante. -Acrescentou enfaticamente.
-Eu já vou. - Respondeu Jorge, voltando o olhar para mim. Nesse momento, Will saiu da nossa visão, seguindo o seu caminho. Nesse meio tempo de distração, minha calça jeans já estava dobrada e compactamente guardada na gaveta, embrulhando a faca que eu trouxera.
[…]

Era uma sala quente e aconchegante. Os móveis de madeira e o clima tradicional mantinham um ambiente agradável. Renato havia me chamado para a sala logo após o treinamento com facas. Ele estava sentado, atrás de sua imponente mesa de carvalho. Segurava uma caneta em uma mão, e a outra estava pousada sobre uma pesada caixa sobre a mesa.
-Então, eu vi o seu desempenho hoje. - Começou ele. -Nada mal, realmente.-
-Eu fui treinado pelo melhor, senhor. - Agradeci. “Nada mal”, vindo de Renato, era quase como uma admiração profunda.
-Eu sei. - Respondeu sem cerimônias. -E hoje, estamos aqui para melhorar as coisas. Hoje você completa o seu treinamento de dois anos.- Enquanto ele falava, eu me lembrava das inúmeras vezes em que fui forçado a treinar pontaria, equilíbrio e combates, em diversas simulações. Era um sonho estar a ali, na minha formação.
-Eu lhe abri as portas, garoto. - Ele continuou.- Resta você entrar. -
Ao dizer isso, Renato abriu a caixa que mantinha sob sua mão. Dentro do recipiente, havia uma pistola, com um silenciador ao lado. Um casaco de cor escura estava cuidadosamente dobrado dentro da caixa, com o capuz a mostra. Além disso, eu sabia que em algum lugar dali também estariam uma faca de arremesso e um Ás de espadas. Isso mesmo, a carta do baralho.
-Repita as minhas palavras, filho. - Disse Renato, enquanto punha minha mão direita no meu peito.
-Nós trabalhamos na escuridão... Para servir ao bem.
-Nós trabalhamos na escuridão para servir ao bem. - Repeti, com minha voz ligeiramente mais aguda.
-Tudo o que fazemos, é para o bem maior. Pois o mundo tende ao caos, e a natureza do homem..
-É a destruição. - Completei. Nesse momento, vi pela primeira vez Renato sorrir.
-Bem-vindo aos lobos azuis. - Ele disse simplesmente. -Agora chame Renan aqui. Acho que ele também já está pronto. -
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    Jorge se despediu logo após me deixar sob a responsabilidade de dois novos recrutas. Alguns minutos antes, havia me levado à sala de trocas, onde precisei experimentar novas roupas brancas e sem graça. Além de deixar as minhas vestes por lá. Dessa vez, me ocupei em guardar o caminho até aquela sala. “Segunda a direita, terceira à esquerda e segue reto.” Repetia o pensamento em minha mente enquanto os dois homens me algemavam.
    Pelo que me parecia, também era norma do lugar algemar os pacientes -ou detentos- quando eles se encontravam muito no interior do prédio. Como perto de salas importantes ou de pessoas importantes. Chegou a mim a informação de que o doutor Brooks, por exemplo, estava a menos de dois corredores de mim naquele momento, providenciando pilotos de helicópteros. Sejam lá o que fossem, os recrutas não eram bons em guardar segredos.
-Andando. - Disse um deles, enquanto me empurrava o ombro. Apesar de tentar demonstrar confiança, a voz fina do militar não passava o ar de autoridade que se esperaria de um oficial. Com passos longos e lentos, comecei a caminhada em direção à minha cela.
    Finalmente era o fim do aprisionamento. Todo o plano foi baseado em nada mais do que três passos. Passo 1: Sair do estabelecimento. Esse foi até mais fácil do que eu esperava, e consegui fazê-lo logo na primeira tentativa. Passo 2: Atrair a atenção dos infectados para a base da CCAB. Apesar de ser um pouco mais complicado, toda o nosso desespero de volta certamente atraíra centenas de desmortos famintos. Ou senão, pelo menos o som dos disparos de Garoto guiavam eles em nossa direção agora mesmo. Passo 3: Fuga em massa. Iríamos teoricamente nos valer de toda a desorientação dos homens, que estariam lutando contra os zumbis invasores e então escapar dessa maldita base. E agora, finalmente, faltava pouco tempo para a grande fuga.
    Viramos no corredor de minha cela, que eu reconheci assim que chegamos. A terceira luz do corredor piscava a cada três segundos, e esse foi o meu sinal. Notei que o homem a minha esquerda ia aos poucos diminuindo a passada, ficando para trás. Ouvi o som de chaves e então percebi que me soltariam as algemas. Só faltava uma coisa: Os zumbis.
    De repente, o som de um tiro chegou aos nossos ouvidos. Fora abafado pela construção, porém ainda era um barulho bem audível. Os recrutas se entreolharam, sem saber ao certo como reagir. O tempo de paz foi pequeno: Após o primeiro disparo, pouco demorou para que outros fossem ouvidos ao redor da base. Dentro de alguns segundos, uma chuva de fogo era ouvida, oriunda do exterior.
-Atenção todas as unidades... Ameaça iminente nível 5 nos portões de acesso A-1 e B-3. - Dizia uma voz vacilante, dos rádios. A voz era cortada por chiados e tiros que por vezes abafavam o sinal. Requisitando apoio imedi... Ah meu deus! - Tudo o que se ouviu foi um grunhido e mais alguns tiros. Por fim, o sinal sumiu de uma forma tão rápida quanto veio, nos envolvendo em um silêncio agonizante. Chegou a hora.
    O período de tempo antes de uma ação ousada é sempre o mais tenso possível. Você começa a suar frio... a respiração fica pesada... O coração parece dar grandes pulos dentro do peito. Quando a adrenalina está no máximo, a imortalidade parece real. Passo três em ação.
    Em um só movimento, dei um salto e passei os braços ainda algemados para a frente do corpo. Surpreendido pela movimentação brusca, o soldado ao meu lado começava a preparar um golpe quando foi atingido em cheio no rosto pelo meu cotovelo. Ouvi os passos se aproximando de mim, antes de ver o homem golpear. Deslizei para a esquerda em um passo largo, e o pontapé do soldado passou a alguns centímetros de meu corpo. O recruta nunca havia sido preparado para combates, como eu. Ficou sem reação alguma quando, com um rápido movimento, acertei-lhe um chute na boca do estômago e em seguida cabeceei sua têmpora. O homem caiu duro como pedra no chão do corredor. O silêncio tomou conta novamente. Fora uma luta rápida e silenciosa.
    Dois homens desacordados em minha frente. Inúmeros gritos de “viva” eclodiam de várias celas, enquanto o tiroteio continuava lá fora. Iluminado pela luz da lâmpada que piscava, um molho de chaves esperava por mim. Analisei-o com atenção. Uma chave estava mais separada das demais, provavelmente a que o soldado preparou para me soltar. Foi um alívio ter acertado. Fiquei demasiadamente mais feliz quando as algemas saíram na primeira tentativa.
    De mãos livres, corri ao encontro dos meus amigos e comecei a testar as chaves. Assim que consegui soltar Marcos, ele me agradeceu e tomou uma chave para si.
-Essa é a chave mestra. - Disse ele, e em seguida me deu o pequeno objeto. - Salve seus amigos. Eu vou liberar o caminho. -
    Não havia tempo para discussão. Tudo o que posso dizer é que fiquei feliz em saber que existia uma chave mestra. Corri pelos corredores abrindo não só a porta dos meus colegas, mas a de todos os que eu alcançava. Logo os corredores eram uma correria só de sobreviventes desesperados pela liberdade.
-Matheus! - Gritou Amanda, enquanto eu abria sua cela. Ao desobstruir a passagem, a menina se jogou em meus braços, me deixando sem reação. -Obrigada! Essa é a Michele, é gente boa. - Disse ela, apontando para sua companheira de cela. Era uma moça bonita, de cabelos encaracolados e castanhos, de mechas vermelhas.
-Prazer. - Ela disse. Acenei levemente com a cabeça, e chamei-as para fora da cela. No momento seguinte, o clima calmo do interior mudou. De repente, um sonoro alarme soou, e luzes vermelhas iluminaram o local.
-O que é agora? - Perguntei para ninguém, exatamente.
-Alerta de ruptura do perímetro. Medidas de autoproteção iniciadas. - Falou uma voz feminina artificial. A voz vinha ao mesmo tempo de todos os lugares, e não significava algo bom.
-Matheus! - Gritou Marcos, do outro lado do corredor. Trazia consigo João e Lucas. - Vamos embora daqui, os portões estão se fechando! - A voz feminina continuava falando ininterruptamente a mesma mensagem.
    Sem mais demora, nos adiantamos a correr para a saída mais próxima, sem sequer passar pela sala de roupas. “Às vezes” pensei comigo mesmo “nem todo o plano dá certo”. Continuamos correndo até que chegamos a um aglomerado de pessoas de branco, como nós. Estavam todas paradas de pé, olhando para um grupo de três soldados que estava a alguns passos da saída. Todos em silêncio.
-Mais um passo de qualquer um e nós abriremos fogo! - Gritou o mais alto deles.
-Sai daí, nós queremos sair! - Gritou Marcos, ainda mantendo a calma.
    No momento seguinte, ouviu-se um forte baque de metal contra metal. Ao olhar para trás, vimos que uma parede de ferro sólido havia descido do teto, bloqueando a passagem de retardatários. Ao ver que seriam presas ali dentro, gritos dominaram o ambiente, e as pessoas correram desesperadas na direção dos soldados.
    Não demorou, eles abriram fogo contra a multidão desesperada, derrubando inocentes. Porém a massa de gente não cessou e atravessou a saída, levando as armas dos oficiais. Os soldados foram mortos pelos pacientes em pânico. E o caos tomou conta.
    Zumbis corriam atrás de suas presas. Homens passavam de um lado para o outro nas torres de vigília, enquanto disparavam contra a massa de infectados que já tinham adentrado o ambiente. As grades de metal tinham sido contorcidas como plástico macio, e os desmortos entravam sem parar.
    Os atiradores disparavam contra infectados que se adiantavam contra todos presentes. Alguns tentavam partir de carro. Porém um som em especial de hélices me chamou a atenção. Olhei para trás e para cima, visando o terraço do prédio principal. Fiquei chocado ao ver o rosto de Brooks pela portinhola do helicóptero que decolava. Por um momento, pensei tê-lo visto acenar para mim, algo como um “até mais”. Em instantes, o helicóptero se distanciava de nós, seguindo o curso do vento.
-Matheus! - Marcos gritava para mim. Enquanto eu olhava ao redor, todos haviam entrado em um jipe vermelho e antigo. Não era um veículo militar, parecia um carro apreendido mesmo. Marcos estava como motorista, e os demais na garupa. Corri até eles enquanto balas zuniam em volta de mim. Ao que tudo indicava, agora os atiradores estavam acertando tudo o que se movia.
-Quem é este?- Perguntei ao ver um desconhecido encolhido na garupa, segurando fortemente o que parecia ser um colar.
-O nome dele é David. - Disse Amanda, enquanto fechava a porta do carona. - O carro é dele. - Acenei em concordância, sem dizer palavra. Nesse momento, algo me chamou a atenção. Há cerca de dez metros de distância de onde estávamos, havia uma briga acontecendo.
    Um garoto solitário enfrentava nada menos do que três soldados que tentavam imobilizá-lo. Fiquei imóvel ao ver que ele não precisava de ajuda alguma. Um a um, os militares caíam, atingidos por chutes, socos ou coronhadas de suas próprias armas. Lentamente, ao ver todos ao chão, o rapaz se abaixou e pegou um fuzil M16 de um dos combatentes. Ao olhar em nossa direção, fiquei ainda mais surpreso. Vestia uma calça jeans surrada e um casaco azul.

-Renan. -

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Capítulo 15 - "Man Down"

Eu parei de contar os dias. Não sei mais quanto tempo se passou desde que tudo começou. Talvez algumas noites, ou algumas semanas. No máximo um mês. Não importa. Agora, tudo o que eu tenho em mente é fugir da instalação médica e militar para onde estão me levando. Dizem alguns, a base da CCAB.”
O tremular do veículo era a única coisa que eu sentia. Olhava pela janela o que parecia ser um grupo de helicópteros voando na direção norte. Ao julgar pelo sol, eram cerca de duas horas da tarde. A estrada era completamente cheia de carros velhos e abandonados, muitas vezes deixados para trás com as portas abertas. Vasculhei visualmente as ruas por onde passávamos, procurando por corpos. Mas de uma estranha forma, todos pareciam ter desaparecido. Era comum perder o olhar em meio aquela cena de caos e destruição, agora calma e sem vida. O tempo apagara o vestígio do desespero e luta de todos os que ocupavam aqueles carros abandonados, deixando para trás somente sangue seco e o odor fétido das carcaças apodrecidas dos que morreram.
Entretanto, ainda havia sobreviventes, e era só nisso em que eu pensava. O veículo tremulava enquanto se deslocava pelo asfalto, rumando de volta a base de operações médicas e militares da CCAB. Eu tinha certeza que em algum lugar daquela destruição tinham pessoas nervosas, perguntando-se quando a ajuda viria. Eram esses sobreviventes anônimos que me davam a vontade de continuar, batalhar pelos meus amigos.
Eu andava na parte da frente da minivan, vigiado constantemente por Garoto, que continuava dirigindo. Tínhamos perdido o blindado, tínhamos perdido muita coisa naquela missão. Havia marcas de arranhões por todo o meu braço, mas eu não ligava para isso. Continuava passando os dedos pelas marcas de balas na janela. A parte interna do carro estava coberta de sangue, assim como todo o lado direito do uniforme de Garoto. Lágrimas percorriam seu rosto, que ainda assim parecia não demonstrar emoção. Will garantia a segurança com a metralhadora calibre cinquenta que tinha no teto do veículo. Ele já não dava nenhum tiro tinha alguns minutos. O Torrada... Bem... O Torrada não estava mais entre nós.
De repente, Garoto freou bruscamente o carro, fazendo o som de derrapagem ecoar pela estrada. Senti meu corpo sendo arremessado para frente, na direção do porta-luvas. Sem dizer uma palavra, o motorista abriu a sua porta e começou a percorrer o carro até chegar do meu lado. Eu pressenti a ação antes mesmo que ocorresse, mas nada pude fazer. Num movimento rápido e furioso, o soldado abriu a minha porta e me arrancou do jipe, puxando-me pela camisa. Caí de costas contra o chão e fixei os olhos no militar. Deitado no asfalto quente, assisti Garoto praticamente bufar de raiva enquanto tirava do carro uma chave inglesa.
-Me fala um motivo... - Gritava ele. - Só um motivo! Pra que eu não enfie essa porra no seu crânio!-
-Calma, chefe.- Dizia Will, descendo pela parte de trás do furgão. - O senhor está descontrolado...
-Descontrolado é o caralho!- Respondeu o líder, apontando a chave inglesa para o seu soldado. -Esse pirralho trouxe a gente pra uma missão falsa! O Guilherme morreu por causa desse filho da puta!
Fechei meus olhos enquanto relembrava os momentos difíceis que tínhamos vivido há alguns minutos. Sentia nada mais que o concreto quente em minhas costas e a brisa do final do dia. Aos poucos, a voz de Garoto foi abaixando, até desaparecer por completo.

#Flashback
-Pra onde?! Pra onde?! - Gritava Garoto enquanto desviava dos infectados que atacavam o veículo, impedindo o motorista de acelerar. Eles não paravam de se aproximar, e aos poucos o nosso carro perdia velocidade enquanto adentrava a horda de zumbis. Logo nós estaríamos completamente cercados. Na parte de trás do veículo, eu observava Will disparar ininterruptamente contra a multidão que começava a se tornar ameaçadora.
Eram dezenas de criaturas que tentavam subir no veículo, se apoiando nas laterais da caçamba, cuspindo sangue nas janelas. Emitiam sons incompreensíveis que exprimiam algo entre a raiva e a dor. Era um som grave e agudo ao mesmo tempo, assustadoramente constante. Era como se aquelas vozes mortas pudessem penetrar nas nossas mentes. Torrada, não diferente dos demais, estava completamente desorientado. E para piorar, não tinha nenhum mapa da cidade.
-Eu não sei onde estamos, senhor! Eu não sei! - Ele tentava gritar, com a voz abafada pelos poderosos tiros da metralhadora que Will manuseava com habilidade.
Tomado pela vontade de sobreviver, eu esquecera completamente do meu plano, e agora me focava simplesmente em remover aqueles pares de mãos fétidas que tentavam nos alcançar de qualquer jeito.
O suor escorria pela minha testa enquanto eu atacava com todo o vigor, chutando e socando aqueles desgraçados sedentos por sangue. Pela parte do capô, um desmorto começou a escalar o veículo. Subiu pelo para-brisas derramando sangue de suas feridas e agarrou o meu braço esquerdo. No mesmo instante, pude ver Will tentando sair da caçamba para o teto do carro. Nós estávamos completamente ilhados no meio dos infectados, que agora simplesmente mergulhavam em nossa direção sem cerimônia.
Eu assisti, em poucos segundos, a tranquilidade se transformar em total desespero e preocupação quando Will abandonou o calibre cinquenta. Dei uma cotovelada no morto que me segurava avidamente, que arranhou um belo trecho do meu antebraço. Não hesitei em sacar a faca. Discretamente, puxei a lâmina por entre as vestes e encravei-a na têmpora do zumbi em um só movimento brutal. No momento seguinte guardei a faca na cintura, presa à calça. Ninguém havia notado o meu movimento. Já sem vida, o corpo do infectado deslizou pelo carro e caiu entre a multidão faminta, que logo começou a se alimentar dele.
Porém os poucos distraídos não amenizaram o perigo. Will já estava em cima do teto do jipe, tentando em vão chutar os escaladores canibais. Enquanto eles investiam contra nós, tudo pareceu ficar em câmera lenta. Mortos-vivos se batiam contra o para-brisa e as janelas, que já começavam a trincar. Ao longe, eu pudia ver mais deles se aproximando. No ápice da situação, eu quase conseguia ouvir meus próprios batimentos cardíacos, misturados à cena que se desenrolava.
-Precisamos abandonar o veículo! - Gritou Torrada da parte da frente.
Mantive a respiração calma e regular enquanto assistia tudo acontecer. Relativamente relaxado, tive a oportunidade de olhar em volta com o cérebro ainda um pouco funcional. Zumbis... malditos zumbis... Eles ameaçavam a minha sobrevivência agora.
- Cinco horas! Cinco horas! Corram para o veículo ao meu sinal! -
Olhei na direção indicada pelo soldado e me deparei com uma dúzia de zumbis que nos separavam de um grande objeto preto. De fato, a aproximadamente dez metros de onde estávamos existia uma minivan abandonada. Era pra ela que deveríamos ir.
-Vai, vai, vai! - Gritou Garoto enquanto saía pela porta do motorista. Seus homens fizeram o mesmo e então lançaram-se em uma corrida desenfreada até o outro ponto supostamente seguro. Distraídos pela movimentação repentina, os zumbis nem sequer viram quando saltei para o outro lado do carro e fui na direção do que parecia ser uma padaria abandonada.
Corri com toda a minha velocidade, e fui acompanhado por dois ou três desmortos perdidos. Quebrei o vidro em uma só pancada, quando me joguei contra a vitrine que mostrava alguns bolos e outras guloseimas. Como resultado, caí dentro do estabelecimento completamente coberto de glacê e chocolate.
Entretanto, como era de se esperar, os infectados não desanimaram e adentraram o local fechado atrás de mim. O primeiro tropeçou em alguma coisa que estava no chão e caiu logo na entrada. Enquanto eu corria, só consegui perceber um deles me seguindo.
Pela primeira vez, dei uma boa olhada no meu perseguidor. Era um idoso, um pouco acima do peso. Ele não tinha mordidas visíveis no corpo, apenas uma grande quantidade de sangue seco em sua camiseta branca encardida. Com seus dentes amarelados, o homem rugia enquanto atacava.
Passei pelas prateleiras de comida e corri para a bancada. Era de lá que mulheres e homens costumavam atender seus clientes, entregando bandejas de pão fresco e crocante. Porém as poucas massas que restaram nas cestas de madeira foram alguns pães mofados.
Pulei sobre o balcão de atendimento derrubando alguns poucos objetos que estavam por ali. Olhei para trás a tempo de ver o infeliz se arremessar de frente por cima do balcão. Dei um largo passo para a direita e observei deliciado o idoso se espatifar contra a parede. Acho que naquele breve momento um sorriso surgiu no meu rosto.
Como todos os momentos bons, acabou rápido. Ouvi alguns grunhidos vindos da entrada e encontrei o zumbi que havia se atrasado agora mancando em minha direção. Seja lá por qual razão, ele parecia estar com o pescoço deslocado. Era uma mulher, ruiva. Não deu para ver muitos detalhes, mas pelo que parecia, ela também queria me matar. Novidade.
-Meu Deus! - Antes de poder reagir, uma mão me agarrou o tornozelo e conseguiu me derrubar, puxando com uma força impressionante. Para a minha surpresa, não era o idoso. Da porta da cozinha rastejava um corpo sem uma das pernas que agora me prendia ao chão. Ouvi os passos desajeitados da mulher se aproximando rapidamente, enquanto tentava me livrar do agressor.
Segurei sua cabeça longe da minha perna o máximo que pude, mas ele era um sujeito determinado e eu estava começando a me cansar. Quando tudo parecia não poder piorar, o idoso infectado levantou-se e saltou furioso em minha direção.
Coloquei meus braços na frente do corpo para segurar o homem, soltando um suspiro de esforço. Senti o hálito quente do desmorto rastejante em minha coxa. O idoso tentava morder o meu rosto, enquanto gotas de sangue pingavam pela minha face. A mulher tinha encontrado algumas dificuldades para passar pela bancada, mas estava agora escalando pela barreira lenta e progressivamente.
-Aah! - Com um grito de fúria, chutei a cabeça do rastejante e comecei a me desvincular do agressor que tentava me manter preso ao chão. Rastejei de costas por meio metro, para conseguir tempo contra o rastejante e então rolei, jogando o idoso ao chão. Já agachado, não hesitei em dar um murro no meio da cara do velhote. Peguei um rolo de massa do chão e ataquei diversas vezes a cabeça dele, enquanto eu gritava de raiva. Eu sentia o impacto de cada golpe se deslocar pelo meu braço, tremendo os ossos. O sangue respingava na minha roupa e no meu rosto, mas eu não ligava. Fazia tempo que essas coisas eram normais. Continuei batendo até que o crânio dele amassasse e o homem parasse de se mexer. Ainda segurando o rolo de madeira, respirei profundamente enquanto olhava para o outro infectado, que rastejava sem uma perna em minha direção.
-Agora o seu amigo não levanta tão cedo. - Disse para o aleijado. Os grunhidos da mulher, que pareciam estar mais perto, me chamaram a atenção.
Olhei para a minha direita a tempo de ver o perigo vindo. Vi o corpo da mulher deslizando sobre o balcão enquanto caía para o meu lado. Nesse momento, pude ouvir passos apressados de pelo menos mais duas pessoas entrando na padaria. Era mais do que a hora de eu sair dali.
Saltei sobre os corpos que me separavam da entrada da cozinha e então fechei a porta. Ou pelo menos tentei. Quando a entrada estava quase bloqueada, a mulher se jogou contra a porta de metal gritando de forma aguda, enquanto eu empurrava seu braço contra a parede. Olhei para o interior da cozinha e notei que outro desmorto se aproximava por dentro. Era um homem gordo e mal cuidado, que caminhava vagarosamente em minha direção com um avental vermelho de sangue. Pelo que parecia, o infeliz carregava uma faca também. Levantei o rolo de massa já ensanguentado e girei-o no ar, acertando um belo golpe na têmpora do agressor, enquanto empurrava a porta com as costas. Estava relativamente fácil segurar a passagem, até que senti uma incrivelmente forte pancada do outro lado que me afastou automaticamente da entrada. A mulher infectada caiu de frente no chão da cozinha, com um buraco imenso na parte de trás da cabeça. Um círculo de sangue se formou em volta de seu corpo inanimado.

-Tentando fugir, moleque? - Perguntou uma voz familiar.
Torrada estava de pé do lado de fora, segurando um pedaço de ferro que usou como arma. Um grande sorriso estampava o seu rosto.
-Você pegou o outro também? - Perguntei, me aproximando do soldado.

-Bom, na verdade quando eu cheguei o outro já tinha sido estraçalhado. Quer dizer, algum fugitivo maníaco acabou com a cabeça dele. - Respondeu ele, rindo.
-Não o cara velho, to falando do...
-Aaah! - Só consegui perceber o que aconteceu quando Torrada ergueu a barra de ferro e começou a agitá-la na direção das próprias pernas. O rastejante tinha pegado ele. Ele não parava de gritar enquanto era mordido por toda a panturrilha.
-Socorro!
Corri em sua direção e agarrei o infectado rastejante por trás, separando ele do Torrada. O morto se debatia em meus braços, com a fúria de um animal selvagem. Coloquei-o no chão e bati com toda a força na testa do desgraçado, que silenciou na mesma hora.
Torrada se arrastou até a parede, sentado no chão. Ele ainda emitia alguns sons de dor quando Garoto apareceu correndo por trás de uma das prateleiras. Ele se adiantou na direção da bancada, soltando no meio do caminho o cabo de vassoura que trazia.

-O que aconteceu? - Perguntou após saltar sobre o balcão. Eu e Torrada apenas olhávamos para ele, sem saber o que dizer. A perna do homem estava completamente inutilizada. Algumas fibras musculares se esticavam para fora do membro e era possível ver o osso pelo ferimento aberto.
-Não liga pra isso... A gente precisa voltar pra base. - Disse Torrada, pausadamente. A dor e o ferimento o impediriam de se levantar.
-Deixa que eu te ajudo. - Disse Garoto, passando o braço do amigo por cima do ombro, dando-lhe algum apoio para caminhar. -Matheus, vai na frente. Fala pro Will preparar o carro.

Saí da padaria correndo e encontrei um furgão da CCAB em frente a padaria. Por um momento fiquei paralisado, sem saber o que fazer. Avistei ao longe o outro soldado, que parecia ter roubado o veículo. Will se aproximava pelo outro lado da rua, correndo com toda a velocidade.
-Não temos muito tempo! - Ele gritou enquanto entrava pela porta do motorista. Ouvi-o ligar o carro antes mesmo que eu precisasse pedir.
-Cadê o blindado?- Perguntei.
-Ta no inferno! Cadê o pessoal? Precisamos ir agora!
-Por que a pressa? A multidão de infectados já... - Interrompi minha fala quando ouvi berros confusos vindos da esquina. O chão parecia vibrar, suavemente. De repente, uma enorme massa de zumbis apareceu no final da rua e corria em nossa direção, fazendo exatamente o caminho de Will. Pareciam ser ainda mais do que os que nos cercaram há alguns minutos.
Torrada saiu da loja mancando, carregado pelo líder. A horda de canibais estaria em cima de nós em no máximo cinco segundos. Os dois entraram na parte de trás do carro, enquanto eu entrava pela porta do carona. Will cantou pneus a tempo de ouvirmos as primeiras pancadas contra a lataria do veículo. Estávamos salvos.
[…]

-Como você tá?- Perguntou Will, que estava na parte de trás, cuidando do ferido.
-Já tive dias melhores. - Respondeu Torrada com seu sempre presente sorriso. Ele estava pálido, com uma aparência muito ruim, mas seu humor nunca parecia piorar.
Nós estávamos abastecendo o veículo num posto dos arredores, naquele momento já estávamos saindo de Mangaratiba, a caminho da base. Garoto tinha pendurada em seu pescoço uma submetralhadora MP5, que fui encontrada dentro do furgão pela equipe. Torrada estava deitado numa maca na parte de trás da van, ganhando algumas doses de endorfina. Após entrar no carro, Garoto fechou a porta atrás de si e acelerou, rumo a estrada. Após prender um torniquete na coxa do colega, Will preparou uma dose de sedativo e esterilizava a seringa no fogo de seu isqueiro.

-Vamos parar em alguma farmácia por aí, não dá para ficar assim. - Disse Garoto, enquanto dirigia. -Desse jeito você vai acabar pegando uma infecção. -
-Não me levem a mal, mas ele já está infectado. - Eu disse, compartilhando o meu pensamento pela primeira vez. Por um momento, o veículo mergulhou em um profundo silêncio. Todos se entreolharam, pensando no que eu falei. - É verdade! Ele foi mordido! - Repeti.
-Não é possível. Ele foi mordido sim, mas isso aconteceu há pouco tempo, se conseguirmos esterilizar o local ele vai ficar bem! - Respondeu Garoto.

-Ele tá certo, chefe... - Torrada falava lentamente. - A gente já viu isso acontecer antes. Com o Santos.
-Não! O Santos era um caso perdido! Ele merecia morrer. Você não, você ainda é jovem, Guilherme. - Falava Garoto, com a respiração pesada. Por um instante, achei que ele fosse chorar. Mas essa sensação logo passou quando ele virou para frente e fixou o olhar na estrada.

-Senhor... O vírus não escolhe quem infectar. - Disse Torrada, com a voz já rouca. No momento seguinte, fechou os olhos e descansou a cabeça na maca.
-O sedativo fez efeito, senhor. Agora que a pressão abaixou ele vai perder pouco sangue. - Disse Will. -E então, vamos ou não à farmácia?
-Vamos, é claro. Eu não posso perder o Guilherme também. Já tivemos muitas baixas naquele cerco em Nova York.
-Nova York? O que aconteceu lá? - Perguntei curioso.
-História antiga, rapaz. Nem se importe em saber. Mas o Brooks estava envolvido também. - Disse Garoto.
-É, parece que sempre que da merda em algum lugar o William tá por perto. - Comentou Will, num tom irônico. Mantive o meu silêncio por mais alguns momentos. Se eles não quisessem que eu soubesse, talvez eu realmente não devesse saber.

-O que é aquilo, senhor? - Perguntou Will enquanto olhava pela pequena janela da parte de trás. Ao longe, uma camionete rural andava paralelamente ao nosso veículo. Tinha pelo menos três pessoas na garupa.
-Sobreviventes! Vamos lá ajudá-los! - Exclamei.
  • Will, prepare a calibre cinquenta. Parece que vamos ter um pequeno combate aqui.
  • Sim, senhor!
Assisti Will preparar a arma enquanto Garoto acelerava com o carro, afastando-se do outro veículo.
-O que tá havendo?
-É a Fortaleza Norte! Um grupo de resistentes rebeldes fortemente armados que saqueiam outros veículos e atacam patrulhas militares.
-E por quê?!
-Isso não vem ao caso, agora vai pra parte de trás!

Nesse momento, disparos de armas automáticas ricochetearam contra a carroceria de nosso veículo. Pulei para a parte de trás do furgão, junto de Torrada.
-Responder fogo! Responder fogo! - Gritou Garoto. O som da metralhadora cortou todos os outros disparos e mergulhou o veículo no silêncio profundo. Em poucos segundos, estávamos travando um conflito armado em alta velocidade.
-Eu... Vou... Ajudar... - Olhei para o lado e encontrei Torrada se levantando da maca, com o olhar perdido. Ele passou para a parte da frente com algumas dificuldades e sentou-se no banco do carona antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
-Volta pra maca, Guilherme! - Berrou Garoto, com ar de autoridade.
-Eu tenho que ajudar, senhor. - Respondeu o soldado, que tirou a MP5 do peito do líder. Girou a manivela da janela e abriu uma fresta no vidro.
-Respondendo fogo! - Gritou Guilherme, enquanto executava alguns disparos contra os rebeldes. A partir do momento que ele apertou o gatilho, eu vi dois homens caindo no carro inimigo. Torrada era um pouco melhor do que eu pensei.

Antes a movimentação era lenta, mas agora a camionete investia contra nós fisicamente, jogando seu carro contra o nosso. Enquanto isso, os tiros não cessavam. Eram disparos de cá contra disparos de lá. Em determinado ponto do tiroteio, uma rajada inimiga penetrou a carroceria. Três tiros. Foram três balas letais que adentraram a cabine. Duas delas em Torrada.
No instante seguinte, Will acertou uma bala incendiária no tanque de combustível do outro veículo, que virou uma bola de chamas em alta velocidade. Os gritos dos inimigos ainda eram ouvidos enquanto tomávamos distância.
-Guilherme! Guilherme! Responde! - Gritava Garoto, enquanto batia em seu soldado. Um jato de sangue havia espirrado pelo interior da parte da frente do veículo. O próprio Garoto estava banhado em um vermelho vivo, que escorria pelo seu uniforme. Torrada não respondia, não respirava. Sua cabeça descansava encostada na janela do lado direito.
Will desceu da arma e viu o que tinha acontecido. Lançou um breve olhar em minha direção e então sentou-se na maca. Apoiou o rosto nas mãos e ficou com a cabeça abaixado por um bom tempo.
Garoto saiu do carro e abriu a porta do carona. Torrada caiu em seus braços, sem reação. Garoto soltava pequenos suspiros e respirava irregularmente. De forma inesperada, ele simplesmente caiu ajoelhado ao chão, ainda com o colega em seus braços. Ele estava lacrimejando, mas não ousava chorar. Garoto olhou para o céu, com um misto de raiva e tristeza.
Will havia ido até o carro inimigo que ainda ardia em chamas e começava a recolher as armas deles. O líder da equipe estava inconformado com a morte do navegador.

-Aaah! - Gritou com toda a voz que tinha, olhando as nuvens que flutuavam com indiferença. Em seguida Garoto abaixou a cabeça e deixou que as lágrimas caíssem. O homem gemia e suspirava de dor. Eu não sabia o que dizer, ou o que fazer. De certa forma, novamente fui eu quem gerou aquilo.
A cena era triste e a melancolia se prolongou por mais alguns minutos. Will começava a retornar com as armas quando o líder se levantou de perto do colega caído.

-Guilherme? - Garoto tinha o olhar incrédulo. Também fiquei surpreso com o que vi. Torrada abria os olhos, aos poucos. Suavemente, ele levantou a cabeça e logo deixou caí-la novamente.
-Ele está vivo! - Gritou Garoto. -Guilherme, venha cá e... - Garoto interrompeu sua frase quando seu colega saltou sobre ele, tentando morder-lhe o braço.
-Sai daí, chefe! - Gritou Will, enquanto destravava uma AK-47 que encontrou no carro destruído. Garoto se afastou rapidamente do homem caído, enquanto adentrava no carro.
-Cessar fogo! - Gritou para Will. -Vamos embora! -
Dito isso, entramos todos no carro. Torrada se levantou e correu na direção do veículo, gritando furiosamente. Garoto ainda estava com o rosto molhado de lágrimas quando ligou o veículo. Deu uma longa olhada no seu ex-navegador, que agora surrava a carroceria com os punhos, tentando entrar de qualquer forma. Com um breve aceno negativo de cabeça, Garoto acelerou e tirou-nos de lá.


-Você não vale nem uma bala, seu miserável! - Gritava Garoto, apontando para mim a chave inglesa em sua mão. Eu sentia novamente o concreto quente em minhas costas, enquanto tentava esquecer a sensação desconfortável de ser mais uma vez o culpado.
-E então, já tem o motivo? -
-Talvez... - Comecei a falar. - Talvez você não me mate porque tudo o que fiz foi para tentar sair daquela base militar. Ou você acha que eu não sei o que eles fazem com as pessoas lá?
-Tente novamente, esse motivo não me convenceu. - Falou Garoto enquanto se aproximava.
-Senhor! - Interrompeu Will. - Se o matarmos agora, Brooks não vai gostar. -
Essas breves palavras foram o suficiente para fazer Garoto parar e pensar. Talvez Will estivesse certo, talvez o menino merecesse viver um pouco mais.
-Quer saber? - Perguntou Garoto, guardando a chave inglesa. - Você vai voltar para a base hoje. O William vai gostar de saber que você nos mandou numa missão falsa.