sábado, 28 de julho de 2012

Capitulo 20 - Nenhum lugar é seguro


Devia ser mais ou menos meio dia, e o sol ardia miseravelmente. Tudo o quê restara da fogueira eram algumas cinzas em brasa, que o vento soprava soltando uns pedacinhos de fuligem com ele. David e Michele voltaram a tempo de se deliciarem com a carne do esquilo que Renan tinha preparado. Ninguém comeu muito -e não foi por falta de fome-, não era como estar completamente saciado. Mas era bom sentir algo forrando o estômago, pelo menos, depois de quase um dia inteiro de jejum. O quê eu não daria por um verdadeiro banquete de natal.

-Onde vocês estavam? - Perguntou Amanda, com uma expressão preocupada. David e Michele tinham manchas de sangue nas roupas, mas nenhuma marca de ferimento ou mordidas.

-Não muito longe, estávamos subindo a estrada. - Respondeu Michele, enquanto passava a mão por suas mechas vermelhas.

-Sejamos mais diretos então... - Começou Renan, que tinha se levantado e agora passava caminhando lentamente por eles. Tinha um tom de voz interessado, mas que se mantinha calmo e firme. -O que vocês estavam fazendo? - Dessa vez, antes de responderem, eles se entreolharam sorrindo.

-Estávamos caçando. -Eles responderam em coro. Renan me olhou com uma expressão interrogativa. Eu dei de ombros, com um pequeno sorriso surgindo no canto da boca. Tinha certeza que Renan também achava graça naquilo.

-Caçando zumbis. - Completou David, com um sorriso bem aberto.

-Vocês estão loucos?! - Se aproximava Marcos, limpando as mãos sujas de graxa, em um pano não tão limpo. Parecia um daqueles mecânicos de borracharia. -Vocês ameaçaram a nossa segurança! Não podemos simplesmente nos separar para cada um fazer o que quer! -

-Nós não fizemos barulho! - Respondeu Michele. Marcos a olhou seriamente, e então se virou para Renan, que apesar de ser mais novo do que ele, já era quase considerado como um dos líderes do grupo.

-Algum de vocês podia ter se ferido, ou coisa pior. O que você acha, Renan? -

-Eu acho... - Começou ele, num tom calmo como sempre. -Que da próxima vez que forem se divertir, é melhor me chamarem também. Estou começando a ficar entendiado aqui. - Rindo, o Renan me deu um leve tapa nas costas, me convidando para sair dali. Michele e David sorriram aliviados, enquanto iam para o outro lado do acampamento. Marcos ficou parado ali, frustrado. Era como se ninguém entendesse o que estava fazendo. Será que somente ele entendia os prejuízos dessas ações idiotas?

-Acho que você deixou alguém irritado. - Eu disse, olhando sobre o ombro para Marcos enquanto nós dois nos afastávamos. Renan estava em minha frente, pegando o fuzil M16 do chão. Olhou para mim sorrindo e me entregou o meu rifle.

-Ele tem que aprender a se divertir. Aliás, você também. - Disse ele, e começou a caminhar estrada abaixo.
-Onde vamos? - Perguntei ainda checando a munição e as travas de segurança de minha arma.
-Vamos atrás do Lucas. - Respondeu ele simplesmente. -De preferência antes que ele se mate. - Acrescentou com um sorriso irônico.

Demos alguns passos por entre os veículos abandonados, olhando para dentro deles em busca de alguma coisa, ou alguém. Tudo parecia morto, o lugar estava abandonado até mesmo pelos desmortos, que agora pareciam estar pegando o hábito de andarem juntos.
Em minha frente, Renan foi aos poucos diminuindo a velocidade de seus passos, até parar por completo. Tinha o olhar perdido, como se tivesse algo que ele queria dizer. Ele olhou para mim e respirou profundamente, seu rosto estava tenso, demonstrava um misto de hesitação e excitação.

-Os Lobos querem você de volta no grupo. - Disse simplesmente. Me mantive calado por alguns instantes, apenas absorvendo a mensagem.

-O quê?!

-Eu disse a eles que você reagiria assim, mas não foi minha ordem. Eu passei em Mangaratiba. - Enquanto ele falava, lembrei que eu também havia passado por lá, e visto alguns Lobos na cidade. Estava abrindo a boca para falar quando ele me interrompeu com um gesto.

  • Sim, eu sei. - Disse ele. - Passei lá na mesma época que você, antes que pergunte quando foi. Você me viu, e aliás, atirou em mim também. - Renan pausou o discurso para rir.

A princípio eu estranhei o que ele falou, mas então me veio a memória a imagem de um vulto que aparecera no beco, e com um só tiro derrubara o soldado a meu lado. Aquele era Renan, esse tempo todo.
Eu balançava a cabeça de um lado para o outro, sorrindo sarcasticamente para mim mesmo. Eles tinham lembrado de mim, finalmente.

-Não importa. Eu estou fora, foi o que disse a eles da última vez.

-Da última vez... - Dizia Renan, calmamente. -As pessoas não andavam pelas ruas tentando matar umas as outras. E aliás, pessoas como nós nunca mudam. Você aceite isso ou não. -

-Eu mudei. - Respondi em voz alta, de cabeça baixa. Renan me olhou com uma expressão imparcial e então sorriu desviando o olhar.

Meu amigo me deixou ali, olhando para o chão, enquanto ele pegou sua arma e se afastou pelo caminho que estávamos seguindo. Perdido em meus próprios pensamentos, eu percebi que não adiantaria em nada pensar naquilo agora.
Começamos então a descer a estrada, com um passo acelerado. O Sol desaparecia e aparecia novamente, por trás das nuvens. O dia nublado clareava tudo com uma angustiante luz esbranquiçada.
Enquanto caminhávamos, eu avistei o que parecia ser um vulto humano caminhando por entre os carros, a cerca de duzentos metros a nossa frente. Fiz sinal para que Renan parasse de andar e olhei pela luneta do rifle de longa distância.
Meu amigo tomou cobertura atrás de uma motocicleta caída. Um olhar tenso que me encarava esperando por alguma informação. Olhei pela lente e vi, ao longe, a confirmação da ameaça. Era um militar... Infectado. Mancava lentamente em nossa direção. Iríamos nos encontrar com ele em alguns minutos.
-É um deles. - Falei para Renan, que não tinha a visão do que estava acontecendo ainda.
-Não atire. - Ele respondeu. - Vamos matá-lo silenciosamente, e seguir caminho. - Dito isso, ele recomeçou a caminhar em direção ao lugar apontado como o que Lucas estaria. Ainda parado, eu observava o desmorto. Por trás dele, sutilmente, outro saiu por trás de um carro. Passei a mira para eles, instintivamente, e avistei mais alguns que vinham pela esquerda da pista. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, já eram dezenas deles dentro da minha visão, e mais continuavam a chegar.
-Para! - Sussurrei para Renan, em um tom de urgência. Ele olhou para trás e eu apontei para a estrada. Uma grande massa sem forma se deslocava pelo asfalto em nossa direção, caminhando lentamente.
-Não temos como passar. - Falei, ainda focado na mira. A cada segundo, apareciam mais se deslocando em nossa direção. Em algum lugar atrás deles, ou ainda entre os zumbis e nós, Lucas estava a poucos momentos de uma morte horrível.
Renan me encarava, sem dizer nada. Como era de seu costume, às vezes ele simplesmente decidia sentar e observar o que eu faria em seguida. Se eu estivesse tentando mostrar que ainda estava calmo, seria um desastre total. Minha respiração ficou pesada, a mira tremia como se tivesse sido jogada dentro de um liquidificador ligado, e eu começava a suar frio.
Retirei o pente e o recoloquei na arma apenas para chegar as munições. Puxei o ferrolho lateral e fiz a mira nos desmortos, que pareciam brotar de lugares cada vez mais próximos. O som do mecanismo da arma me acalmou instantaneamente. Ainda não tinha sequer destravado o rifle quando senti uma mão rígida e gélida me segurando pelo ombro. Meu coração gelou.

-Eles são muitos. - Disse uma voz familiar atrás de mim. Lucas estava de pé, segurando um violão negro e brilhante em uma mão, e com a outra sobre o meu ombro, em uma postura tranquilizadora. -Precisamos sair daqui antes que eles nos percebam. Com um grupo desse tamanho, estaremos todos mortos antes mesmo que a nossa munição acabe. -
Renan olhou para mim e assentiu com a cabeça, como sempre silencioso. Sua M16 encostada ao peito, parecia presa diretamente em seu coração. Lembrei, nesse momento, de alguns meses atrás, quando Renan se agarrava à sua faca sempre que estava nervoso em alguma missão.
-Quanto tempo, Matheus? - Perguntou ele. Fazia tempo que ninguém me perguntava algo assim. Logo apareceu em minha mente a imagem de um treino de Análise e Previsão, um dos exercícios mais comuns dos que tínhamos que enfrentar. Analisei pela luneta a velocidade de aproximação dos agressores, o percurso até nós e também algumas tantas variáveis mínimas que acabariam por fazer a diferença.
-Entre dois e três minutos. - Respondi, abaixando a arma. -Avise a todos que eu quero todos prontos pra partir daqui em trinta segundos. - Disse para Lucas, enquanto pendurava a arma em meus ombros pela bandoleira.
-Renan, eu e você...
-Eu sei. - Ele cortou a minha fala, um sorriso se espalhando por seu rosto. - Nós vamos atrasar eles.

-Não dessa vez. - Respondi, percebendo que tinha acabado com a felicidade de meu amigo. -A gente precisa montar um perímetro em volta do acampamento enquanto eles arrumam as coisas. Podem ter mais desses monstros por perto. Algum que a gente não tenha visto. -
Ele me olhou por alguns segundos, assimilando o que eu tinha falado. Renan devia estar pensando que veríamos outros desmortos antes, se existissem mais por perto. Porém, para minha felicidade, ele logo compreendeu a situação. Destravou sua M16 e correu na direção de Lucas, que tinha saído dali há alguns instantes.
Ouvi os seus passos se afastando por detrás dos carros destruídos e fumaça. Voltei meu olhar para a multidão que marchava lentamente ao nosso encontro. Vacilante, dei alguns passos para trás sem desviar o olhar daquela horda de canibais. Eu precisava encontrar um lugar elevado para me posicionar e vasculhar o perímetro. Alguns metros a minha direita, havia um caminhão pipa deitado de lado no asfalto. Havia o risco de ele estar vazando gasolina ou qualquer coisa, mas se fosse para explodir, já teria explodido. Pelo menos foi assim que eu pensei ao subir nele, escalando a parte do motorista.
Tomei posição no meio do vagão de carga e girei trezentos e sessenta graus lentamente com a arma em riste, enquanto procurava por hostis. Nada além de carros abandonados e sujeira de pessoas que pareciam ter saído às pressas de seus veículos.
-Limpo! - Ouvi Renan gritar ao longe. Acenei com a cabeça para mim mesmo, contente por realmente termos o tempo necessário para fugir dali sem nenhuma baixa.
-Limpo! - Respondi da minha posição.
Travei e abaixei a arma, respirando profundamente. Em seguida levantei e dei mais uma olhada em volta, de pé ainda sobre o caminhão. Com tudo realmente deserto, desci com um só pulo e rumei o acampamento.
Michele estava fazendo ligação direta em uma minivan enquanto o resto do pessoal se apressava a colocar as coisas que traziam consigo para dentro do veículo. Marcos, por outro lado, tinha pego o violão de Lucas, e estava sentado com ele sobre um toco de árvore, aparentemente o afinando. Imaginei se ele realmente tocava violão, porque seria a terceira pessoa naquele grupo. Renan era um guitarrista nato, que tinha aulas a quase dois anos. E eu tinha começado a aprender violão sozinho quando tudo começou.
Fui acordado do meu devaneio repentino quando ouvi o motor da minivan ligar, fazendo um barulho alto e não muito agradável.

-Consegui! - Exclamou Michele animada enquanto pulava o banco de trás. Marcos tirou o violão do peito e o colocou no banco de trás, com os demais, enquanto ele subia para o do motorista.

-Renan, partindo em dez segundos! - Gritei para meu amigo, que estava do outro lado do veículo ainda checando os arredores.

Ouvi uma porta se abrir e presumi que ele tinha entrado. Subi então na minivan e percebi o quão apertada ela era, de fato. Nós nos espremíamos ali dentro, sem contar com as coisas esquisitas sobre nossos colos. Garrafas de água soltas, um rifle de longo alcance, um violão, algumas baterias e também um rádio.
Eu começava a ver os zumbis surgindo por detrás de alguns carros a distância quando Marcos tirou a minivan dali, dirigindo com cautela pela estrada amarrotada de carros abandonados. Os infectados se tornaram cada vez mais pequenos pela janela de trás, até que então desapareceram de vez. Andrei agora tinha um cigarro apagado em sua boca. Pelo visto, tinha perdido o outro isqueiro que achara, porque apalpava seus bolsos em vão.

-Merda. Essas coisinhas somem mais do que qualquer coisa! -
-Não mais do que palhetas – Disse Renan rapidamente, e um sorriso surgiu no rosto de Marcos e no meu. De alguma forma, elas realmente desapareciam de vista na primeira oportunidade que tinham.

-Pessoal, a gente pelo menos tem um lugar pra ir? - Perguntou Lucas, da parte de trás da minivan, onde ele estava com Renan e Amanda.
-É verdade, não dá pra ficar andando por aí sem rumo. - Disse Michele, sentada ao meu lado. Tinha a cabeça apoiada no ombro de David, que acariciava sua mão.

Senti o olhar de Renan em mim mesmo sem olhar para ele. Eu tinha certeza que ele esperava uma resposta minha, e sorri para mim mesmo. Talvez, fosse realmente a coisa mais esperta a se fazer agora.

-Mangaratiba. Eu soube de um grupo de resistência lá. -

-Isso não é o que eu vi quando estivemos lá da primeira vez. - Respondeu Marcos.

-Você está falando dos encapuzados? - Perguntou Amanda.

-Como sabe deles?

-Eu estava lá antes de vocês chegarem, esqueceu? Eles me ajudaram a encontrar vocês. Disseram que não queriam estranhos com eles. O que te faz pensar que mudaram de ideia?

As últimas palavras de Amanda ressoaram em minha mente por alguns segundos. Mas na verdade, tudo era claro, as respostas estavam na minha cabeça. Eu só não sabia se deveria ou não falar. Mas Renan, para variar, não pensou duas vezes antes de falar o que pensava.

-Não somos estranhos. -

Sorri para mim mesmo, antes de perceber que todos nos olhavam com cara de curiosidade. Renan não parecia muito disposto a dar explicações, e tampouco estava eu. Aos poucos, a atenção foi se dispersando, e milagrosamente, Marcos achou seu isqueiro. Agora quem tinha um ar mais calmo e leve era ele, que tinham abaixado seu vidro e já soltava algumas baforadas de fumaça para fora.

-É, pessoal. Parece que temos um destino.-