sábado, 31 de dezembro de 2011

Capitulo 16 - It's show time

    Estávamos do lado de fora da base, em frente a um grande portão de metal negro. Por cima dos muros, que mediam mais de dez metros de altura, homens armados apontavam suas submetralhadoras para nosso veículo. O muro era de um marrom desbotado, sem pintura alguma. Provavelmente ninguém teve tempo para detalhes, quando a base foi construída.
    O portão se abriu vagarosamente, com um rangido tremendo. Garoto calmamente afundou o pé no acelerador e entrou devagar no pátio da instalação. Por um momento, todo o interior me pareceu deserto. Aquilo não era comum.

-Onde foram todos? - Perguntei. Will simplesmente riu da minha pergunta, como se fosse até um pouco ingênua.
-Você logo verá.- Ele respondeu.

    Pela primeira vez, notei que todas as torres de vigilância eram conectadas por muros largos ou pontes erguidas com cordas. Eram passagens, para que os atiradores pudessem se comunicar ou pelo menos correr para outro lugar.
    Avistei uma pequena movimentação por trás de uma das grades. No momento seguinte, fomos cercados por dez, talvez vinte soldados armados que apontavam suas armas em nossa direção. Um deles fazia sinal para que os demais não disparassem, enquanto ele se aproximava da janela do motorista.
    Garoto acendeu um cigarro, usando a mão esquerda para abrigar o fogo da brisa que entrava pela minha janela quebrada. O homem baixou o lenço que tinha sobre o rosto e bateu no vidro com o nó dos dedos. Nesse momento, o motorista girava a manivela da janela, num movimento lento e preguiçoso.
-Ricardo! - Exclamou o homem surpreso. - Cadê o seu carro? -
-Houve um acidente. - Respondeu Garoto amargamente, enquanto soltava uma baforada de fumaça. -Perdemos um dos nossos. -

    O homem que veio até nós olhou para seus homens e fez um gesto com os braços. No momento seguinte, os demais soldados baixaram as armas e se dispersaram pelo pátio, de volta para suas tarefas rotineiras. O portão novamente começou a se mover, dessa vez fechando-se, com seu característico e incômodo rangido.
-Eu sinto muito. - Disse o homem simplesmente, enquanto se apoiava na janela do carro.
-Está tudo bem. - Respondeu Garoto, sem muita sinceridade. -Leva esse garoto à cela dele. E chame o Doutor Brooks para ir visitá-lo.
-Entendido.
    O soldado fez uma reverência militar rápida e deu a volta no veículo, abrindo minha porta. Deixou que eu saísse antes de falar qualquer coisa.
-Por favor, me acompanhe. - Disse então, enquanto começava a caminhar na direção do prédio principal. No caminho, ele ia recolocando o pedaço de pano que cobria a parte inferior de seu rosto.
    Olhei mais uma vez para cima. Naquele momento, um atirador caminhava tranquilamente por um muro enquanto bebia água de uma garrafa de plástico. Em suas costas, um pesado rifle de longa distância equipado de uma luneta.
-Bem pensado. - Falei para mim mesmo enquanto observava aquele aglomerado de pontes que se erguia acima de nossas cabeças. Notei que nesse momento o soldado que me acompanhava lançou um olhar interrogativo em minha direção, o homem já abria a boca para fazer um comentário.
-Isso mesmo – Eu disse , antes mesmo que algum som saísse de sua boca. - Eu falo sozinho. -

    Passamos por uma das entradas com portas automáticas de concreto. Dois soldados montavam guarda ao lado dela. Notei que um deles acenou para seu colega, que me guiava. O homem então retribuiu, e continuamos caminhando. Logo após entrarmos, eu pude escutar a porta se fechando logo atrás de nós.
    Fui conduzido por um longo corredor iluminado até uma porta de vidro escuro. Notei que aqueles corredores por dentro do prédio eram praticamente idênticos entre eles, seria muito fácil se perder por ali. A porta era de um azul forte, que impedia a minha visão do outro lado. O soldado se virou e abriu uma gaveta ao lado da porta.
-Por favor, coloque as suas roupas aqui. - Dizia ele, apontando para minha vestimenta e o compartimento. -Você vai passar agora por uma esterilização. Não há nada a temer, tudo bem? -
Fitei-o por alguns instantes, sem saber como reagir. Esterilização me lembrava nada menos que fogo. Queimar algo sempre foi a melhor forma de esterilizá-lo, e se a minha lógica estivesse correta, eu preferia ficar bem sujo mesmo.
-Por favor, coloque as roupas aqui. - O homem insistiu, levantando os olhos impaciente. -É só uma chuveirada.
-Foi o que disseram aos judeus. - Respondi, enquanto tirava minha camiseta. Ao me abaixar para tirar os calçados, senti algo frio roçar-me as costas. Lembrei da faca que estava presa na cintura da calça.
-Algo errado? - O soldado perguntou.
-Bom... Eu vou me despir aqui. - Respondi. -Você se importa de olhar para outro lado por alguns instantes?- Perguntei, com um sorriso mal disfarçado.
-Desculpe, senhor. É o procedimento. Você pode estar carregando uma arma, ou uma faca... E isso seria perigoso.
-Ah... Sim. - Respondi desviando o olhar. “Malditos protocolos de segurança”
-Jorge! - Gritou uma voz do final do corredor. Era Will, que carregava consigo uma pesada sacola. -O Brooks quer te ver no gabinete dele. Disse que é importante. -Acrescentou enfaticamente.
-Eu já vou. - Respondeu Jorge, voltando o olhar para mim. Nesse momento, Will saiu da nossa visão, seguindo o seu caminho. Nesse meio tempo de distração, minha calça jeans já estava dobrada e compactamente guardada na gaveta, embrulhando a faca que eu trouxera.
[…]

Era uma sala quente e aconchegante. Os móveis de madeira e o clima tradicional mantinham um ambiente agradável. Renato havia me chamado para a sala logo após o treinamento com facas. Ele estava sentado, atrás de sua imponente mesa de carvalho. Segurava uma caneta em uma mão, e a outra estava pousada sobre uma pesada caixa sobre a mesa.
-Então, eu vi o seu desempenho hoje. - Começou ele. -Nada mal, realmente.-
-Eu fui treinado pelo melhor, senhor. - Agradeci. “Nada mal”, vindo de Renato, era quase como uma admiração profunda.
-Eu sei. - Respondeu sem cerimônias. -E hoje, estamos aqui para melhorar as coisas. Hoje você completa o seu treinamento de dois anos.- Enquanto ele falava, eu me lembrava das inúmeras vezes em que fui forçado a treinar pontaria, equilíbrio e combates, em diversas simulações. Era um sonho estar a ali, na minha formação.
-Eu lhe abri as portas, garoto. - Ele continuou.- Resta você entrar. -
Ao dizer isso, Renato abriu a caixa que mantinha sob sua mão. Dentro do recipiente, havia uma pistola, com um silenciador ao lado. Um casaco de cor escura estava cuidadosamente dobrado dentro da caixa, com o capuz a mostra. Além disso, eu sabia que em algum lugar dali também estariam uma faca de arremesso e um Ás de espadas. Isso mesmo, a carta do baralho.
-Repita as minhas palavras, filho. - Disse Renato, enquanto punha minha mão direita no meu peito.
-Nós trabalhamos na escuridão... Para servir ao bem.
-Nós trabalhamos na escuridão para servir ao bem. - Repeti, com minha voz ligeiramente mais aguda.
-Tudo o que fazemos, é para o bem maior. Pois o mundo tende ao caos, e a natureza do homem..
-É a destruição. - Completei. Nesse momento, vi pela primeira vez Renato sorrir.
-Bem-vindo aos lobos azuis. - Ele disse simplesmente. -Agora chame Renan aqui. Acho que ele também já está pronto. -
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    Jorge se despediu logo após me deixar sob a responsabilidade de dois novos recrutas. Alguns minutos antes, havia me levado à sala de trocas, onde precisei experimentar novas roupas brancas e sem graça. Além de deixar as minhas vestes por lá. Dessa vez, me ocupei em guardar o caminho até aquela sala. “Segunda a direita, terceira à esquerda e segue reto.” Repetia o pensamento em minha mente enquanto os dois homens me algemavam.
    Pelo que me parecia, também era norma do lugar algemar os pacientes -ou detentos- quando eles se encontravam muito no interior do prédio. Como perto de salas importantes ou de pessoas importantes. Chegou a mim a informação de que o doutor Brooks, por exemplo, estava a menos de dois corredores de mim naquele momento, providenciando pilotos de helicópteros. Sejam lá o que fossem, os recrutas não eram bons em guardar segredos.
-Andando. - Disse um deles, enquanto me empurrava o ombro. Apesar de tentar demonstrar confiança, a voz fina do militar não passava o ar de autoridade que se esperaria de um oficial. Com passos longos e lentos, comecei a caminhada em direção à minha cela.
    Finalmente era o fim do aprisionamento. Todo o plano foi baseado em nada mais do que três passos. Passo 1: Sair do estabelecimento. Esse foi até mais fácil do que eu esperava, e consegui fazê-lo logo na primeira tentativa. Passo 2: Atrair a atenção dos infectados para a base da CCAB. Apesar de ser um pouco mais complicado, toda o nosso desespero de volta certamente atraíra centenas de desmortos famintos. Ou senão, pelo menos o som dos disparos de Garoto guiavam eles em nossa direção agora mesmo. Passo 3: Fuga em massa. Iríamos teoricamente nos valer de toda a desorientação dos homens, que estariam lutando contra os zumbis invasores e então escapar dessa maldita base. E agora, finalmente, faltava pouco tempo para a grande fuga.
    Viramos no corredor de minha cela, que eu reconheci assim que chegamos. A terceira luz do corredor piscava a cada três segundos, e esse foi o meu sinal. Notei que o homem a minha esquerda ia aos poucos diminuindo a passada, ficando para trás. Ouvi o som de chaves e então percebi que me soltariam as algemas. Só faltava uma coisa: Os zumbis.
    De repente, o som de um tiro chegou aos nossos ouvidos. Fora abafado pela construção, porém ainda era um barulho bem audível. Os recrutas se entreolharam, sem saber ao certo como reagir. O tempo de paz foi pequeno: Após o primeiro disparo, pouco demorou para que outros fossem ouvidos ao redor da base. Dentro de alguns segundos, uma chuva de fogo era ouvida, oriunda do exterior.
-Atenção todas as unidades... Ameaça iminente nível 5 nos portões de acesso A-1 e B-3. - Dizia uma voz vacilante, dos rádios. A voz era cortada por chiados e tiros que por vezes abafavam o sinal. Requisitando apoio imedi... Ah meu deus! - Tudo o que se ouviu foi um grunhido e mais alguns tiros. Por fim, o sinal sumiu de uma forma tão rápida quanto veio, nos envolvendo em um silêncio agonizante. Chegou a hora.
    O período de tempo antes de uma ação ousada é sempre o mais tenso possível. Você começa a suar frio... a respiração fica pesada... O coração parece dar grandes pulos dentro do peito. Quando a adrenalina está no máximo, a imortalidade parece real. Passo três em ação.
    Em um só movimento, dei um salto e passei os braços ainda algemados para a frente do corpo. Surpreendido pela movimentação brusca, o soldado ao meu lado começava a preparar um golpe quando foi atingido em cheio no rosto pelo meu cotovelo. Ouvi os passos se aproximando de mim, antes de ver o homem golpear. Deslizei para a esquerda em um passo largo, e o pontapé do soldado passou a alguns centímetros de meu corpo. O recruta nunca havia sido preparado para combates, como eu. Ficou sem reação alguma quando, com um rápido movimento, acertei-lhe um chute na boca do estômago e em seguida cabeceei sua têmpora. O homem caiu duro como pedra no chão do corredor. O silêncio tomou conta novamente. Fora uma luta rápida e silenciosa.
    Dois homens desacordados em minha frente. Inúmeros gritos de “viva” eclodiam de várias celas, enquanto o tiroteio continuava lá fora. Iluminado pela luz da lâmpada que piscava, um molho de chaves esperava por mim. Analisei-o com atenção. Uma chave estava mais separada das demais, provavelmente a que o soldado preparou para me soltar. Foi um alívio ter acertado. Fiquei demasiadamente mais feliz quando as algemas saíram na primeira tentativa.
    De mãos livres, corri ao encontro dos meus amigos e comecei a testar as chaves. Assim que consegui soltar Marcos, ele me agradeceu e tomou uma chave para si.
-Essa é a chave mestra. - Disse ele, e em seguida me deu o pequeno objeto. - Salve seus amigos. Eu vou liberar o caminho. -
    Não havia tempo para discussão. Tudo o que posso dizer é que fiquei feliz em saber que existia uma chave mestra. Corri pelos corredores abrindo não só a porta dos meus colegas, mas a de todos os que eu alcançava. Logo os corredores eram uma correria só de sobreviventes desesperados pela liberdade.
-Matheus! - Gritou Amanda, enquanto eu abria sua cela. Ao desobstruir a passagem, a menina se jogou em meus braços, me deixando sem reação. -Obrigada! Essa é a Michele, é gente boa. - Disse ela, apontando para sua companheira de cela. Era uma moça bonita, de cabelos encaracolados e castanhos, de mechas vermelhas.
-Prazer. - Ela disse. Acenei levemente com a cabeça, e chamei-as para fora da cela. No momento seguinte, o clima calmo do interior mudou. De repente, um sonoro alarme soou, e luzes vermelhas iluminaram o local.
-O que é agora? - Perguntei para ninguém, exatamente.
-Alerta de ruptura do perímetro. Medidas de autoproteção iniciadas. - Falou uma voz feminina artificial. A voz vinha ao mesmo tempo de todos os lugares, e não significava algo bom.
-Matheus! - Gritou Marcos, do outro lado do corredor. Trazia consigo João e Lucas. - Vamos embora daqui, os portões estão se fechando! - A voz feminina continuava falando ininterruptamente a mesma mensagem.
    Sem mais demora, nos adiantamos a correr para a saída mais próxima, sem sequer passar pela sala de roupas. “Às vezes” pensei comigo mesmo “nem todo o plano dá certo”. Continuamos correndo até que chegamos a um aglomerado de pessoas de branco, como nós. Estavam todas paradas de pé, olhando para um grupo de três soldados que estava a alguns passos da saída. Todos em silêncio.
-Mais um passo de qualquer um e nós abriremos fogo! - Gritou o mais alto deles.
-Sai daí, nós queremos sair! - Gritou Marcos, ainda mantendo a calma.
    No momento seguinte, ouviu-se um forte baque de metal contra metal. Ao olhar para trás, vimos que uma parede de ferro sólido havia descido do teto, bloqueando a passagem de retardatários. Ao ver que seriam presas ali dentro, gritos dominaram o ambiente, e as pessoas correram desesperadas na direção dos soldados.
    Não demorou, eles abriram fogo contra a multidão desesperada, derrubando inocentes. Porém a massa de gente não cessou e atravessou a saída, levando as armas dos oficiais. Os soldados foram mortos pelos pacientes em pânico. E o caos tomou conta.
    Zumbis corriam atrás de suas presas. Homens passavam de um lado para o outro nas torres de vigília, enquanto disparavam contra a massa de infectados que já tinham adentrado o ambiente. As grades de metal tinham sido contorcidas como plástico macio, e os desmortos entravam sem parar.
    Os atiradores disparavam contra infectados que se adiantavam contra todos presentes. Alguns tentavam partir de carro. Porém um som em especial de hélices me chamou a atenção. Olhei para trás e para cima, visando o terraço do prédio principal. Fiquei chocado ao ver o rosto de Brooks pela portinhola do helicóptero que decolava. Por um momento, pensei tê-lo visto acenar para mim, algo como um “até mais”. Em instantes, o helicóptero se distanciava de nós, seguindo o curso do vento.
-Matheus! - Marcos gritava para mim. Enquanto eu olhava ao redor, todos haviam entrado em um jipe vermelho e antigo. Não era um veículo militar, parecia um carro apreendido mesmo. Marcos estava como motorista, e os demais na garupa. Corri até eles enquanto balas zuniam em volta de mim. Ao que tudo indicava, agora os atiradores estavam acertando tudo o que se movia.
-Quem é este?- Perguntei ao ver um desconhecido encolhido na garupa, segurando fortemente o que parecia ser um colar.
-O nome dele é David. - Disse Amanda, enquanto fechava a porta do carona. - O carro é dele. - Acenei em concordância, sem dizer palavra. Nesse momento, algo me chamou a atenção. Há cerca de dez metros de distância de onde estávamos, havia uma briga acontecendo.
    Um garoto solitário enfrentava nada menos do que três soldados que tentavam imobilizá-lo. Fiquei imóvel ao ver que ele não precisava de ajuda alguma. Um a um, os militares caíam, atingidos por chutes, socos ou coronhadas de suas próprias armas. Lentamente, ao ver todos ao chão, o rapaz se abaixou e pegou um fuzil M16 de um dos combatentes. Ao olhar em nossa direção, fiquei ainda mais surpreso. Vestia uma calça jeans surrada e um casaco azul.

-Renan. -

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Capítulo 15 - "Man Down"

Eu parei de contar os dias. Não sei mais quanto tempo se passou desde que tudo começou. Talvez algumas noites, ou algumas semanas. No máximo um mês. Não importa. Agora, tudo o que eu tenho em mente é fugir da instalação médica e militar para onde estão me levando. Dizem alguns, a base da CCAB.”
O tremular do veículo era a única coisa que eu sentia. Olhava pela janela o que parecia ser um grupo de helicópteros voando na direção norte. Ao julgar pelo sol, eram cerca de duas horas da tarde. A estrada era completamente cheia de carros velhos e abandonados, muitas vezes deixados para trás com as portas abertas. Vasculhei visualmente as ruas por onde passávamos, procurando por corpos. Mas de uma estranha forma, todos pareciam ter desaparecido. Era comum perder o olhar em meio aquela cena de caos e destruição, agora calma e sem vida. O tempo apagara o vestígio do desespero e luta de todos os que ocupavam aqueles carros abandonados, deixando para trás somente sangue seco e o odor fétido das carcaças apodrecidas dos que morreram.
Entretanto, ainda havia sobreviventes, e era só nisso em que eu pensava. O veículo tremulava enquanto se deslocava pelo asfalto, rumando de volta a base de operações médicas e militares da CCAB. Eu tinha certeza que em algum lugar daquela destruição tinham pessoas nervosas, perguntando-se quando a ajuda viria. Eram esses sobreviventes anônimos que me davam a vontade de continuar, batalhar pelos meus amigos.
Eu andava na parte da frente da minivan, vigiado constantemente por Garoto, que continuava dirigindo. Tínhamos perdido o blindado, tínhamos perdido muita coisa naquela missão. Havia marcas de arranhões por todo o meu braço, mas eu não ligava para isso. Continuava passando os dedos pelas marcas de balas na janela. A parte interna do carro estava coberta de sangue, assim como todo o lado direito do uniforme de Garoto. Lágrimas percorriam seu rosto, que ainda assim parecia não demonstrar emoção. Will garantia a segurança com a metralhadora calibre cinquenta que tinha no teto do veículo. Ele já não dava nenhum tiro tinha alguns minutos. O Torrada... Bem... O Torrada não estava mais entre nós.
De repente, Garoto freou bruscamente o carro, fazendo o som de derrapagem ecoar pela estrada. Senti meu corpo sendo arremessado para frente, na direção do porta-luvas. Sem dizer uma palavra, o motorista abriu a sua porta e começou a percorrer o carro até chegar do meu lado. Eu pressenti a ação antes mesmo que ocorresse, mas nada pude fazer. Num movimento rápido e furioso, o soldado abriu a minha porta e me arrancou do jipe, puxando-me pela camisa. Caí de costas contra o chão e fixei os olhos no militar. Deitado no asfalto quente, assisti Garoto praticamente bufar de raiva enquanto tirava do carro uma chave inglesa.
-Me fala um motivo... - Gritava ele. - Só um motivo! Pra que eu não enfie essa porra no seu crânio!-
-Calma, chefe.- Dizia Will, descendo pela parte de trás do furgão. - O senhor está descontrolado...
-Descontrolado é o caralho!- Respondeu o líder, apontando a chave inglesa para o seu soldado. -Esse pirralho trouxe a gente pra uma missão falsa! O Guilherme morreu por causa desse filho da puta!
Fechei meus olhos enquanto relembrava os momentos difíceis que tínhamos vivido há alguns minutos. Sentia nada mais que o concreto quente em minhas costas e a brisa do final do dia. Aos poucos, a voz de Garoto foi abaixando, até desaparecer por completo.

#Flashback
-Pra onde?! Pra onde?! - Gritava Garoto enquanto desviava dos infectados que atacavam o veículo, impedindo o motorista de acelerar. Eles não paravam de se aproximar, e aos poucos o nosso carro perdia velocidade enquanto adentrava a horda de zumbis. Logo nós estaríamos completamente cercados. Na parte de trás do veículo, eu observava Will disparar ininterruptamente contra a multidão que começava a se tornar ameaçadora.
Eram dezenas de criaturas que tentavam subir no veículo, se apoiando nas laterais da caçamba, cuspindo sangue nas janelas. Emitiam sons incompreensíveis que exprimiam algo entre a raiva e a dor. Era um som grave e agudo ao mesmo tempo, assustadoramente constante. Era como se aquelas vozes mortas pudessem penetrar nas nossas mentes. Torrada, não diferente dos demais, estava completamente desorientado. E para piorar, não tinha nenhum mapa da cidade.
-Eu não sei onde estamos, senhor! Eu não sei! - Ele tentava gritar, com a voz abafada pelos poderosos tiros da metralhadora que Will manuseava com habilidade.
Tomado pela vontade de sobreviver, eu esquecera completamente do meu plano, e agora me focava simplesmente em remover aqueles pares de mãos fétidas que tentavam nos alcançar de qualquer jeito.
O suor escorria pela minha testa enquanto eu atacava com todo o vigor, chutando e socando aqueles desgraçados sedentos por sangue. Pela parte do capô, um desmorto começou a escalar o veículo. Subiu pelo para-brisas derramando sangue de suas feridas e agarrou o meu braço esquerdo. No mesmo instante, pude ver Will tentando sair da caçamba para o teto do carro. Nós estávamos completamente ilhados no meio dos infectados, que agora simplesmente mergulhavam em nossa direção sem cerimônia.
Eu assisti, em poucos segundos, a tranquilidade se transformar em total desespero e preocupação quando Will abandonou o calibre cinquenta. Dei uma cotovelada no morto que me segurava avidamente, que arranhou um belo trecho do meu antebraço. Não hesitei em sacar a faca. Discretamente, puxei a lâmina por entre as vestes e encravei-a na têmpora do zumbi em um só movimento brutal. No momento seguinte guardei a faca na cintura, presa à calça. Ninguém havia notado o meu movimento. Já sem vida, o corpo do infectado deslizou pelo carro e caiu entre a multidão faminta, que logo começou a se alimentar dele.
Porém os poucos distraídos não amenizaram o perigo. Will já estava em cima do teto do jipe, tentando em vão chutar os escaladores canibais. Enquanto eles investiam contra nós, tudo pareceu ficar em câmera lenta. Mortos-vivos se batiam contra o para-brisa e as janelas, que já começavam a trincar. Ao longe, eu pudia ver mais deles se aproximando. No ápice da situação, eu quase conseguia ouvir meus próprios batimentos cardíacos, misturados à cena que se desenrolava.
-Precisamos abandonar o veículo! - Gritou Torrada da parte da frente.
Mantive a respiração calma e regular enquanto assistia tudo acontecer. Relativamente relaxado, tive a oportunidade de olhar em volta com o cérebro ainda um pouco funcional. Zumbis... malditos zumbis... Eles ameaçavam a minha sobrevivência agora.
- Cinco horas! Cinco horas! Corram para o veículo ao meu sinal! -
Olhei na direção indicada pelo soldado e me deparei com uma dúzia de zumbis que nos separavam de um grande objeto preto. De fato, a aproximadamente dez metros de onde estávamos existia uma minivan abandonada. Era pra ela que deveríamos ir.
-Vai, vai, vai! - Gritou Garoto enquanto saía pela porta do motorista. Seus homens fizeram o mesmo e então lançaram-se em uma corrida desenfreada até o outro ponto supostamente seguro. Distraídos pela movimentação repentina, os zumbis nem sequer viram quando saltei para o outro lado do carro e fui na direção do que parecia ser uma padaria abandonada.
Corri com toda a minha velocidade, e fui acompanhado por dois ou três desmortos perdidos. Quebrei o vidro em uma só pancada, quando me joguei contra a vitrine que mostrava alguns bolos e outras guloseimas. Como resultado, caí dentro do estabelecimento completamente coberto de glacê e chocolate.
Entretanto, como era de se esperar, os infectados não desanimaram e adentraram o local fechado atrás de mim. O primeiro tropeçou em alguma coisa que estava no chão e caiu logo na entrada. Enquanto eu corria, só consegui perceber um deles me seguindo.
Pela primeira vez, dei uma boa olhada no meu perseguidor. Era um idoso, um pouco acima do peso. Ele não tinha mordidas visíveis no corpo, apenas uma grande quantidade de sangue seco em sua camiseta branca encardida. Com seus dentes amarelados, o homem rugia enquanto atacava.
Passei pelas prateleiras de comida e corri para a bancada. Era de lá que mulheres e homens costumavam atender seus clientes, entregando bandejas de pão fresco e crocante. Porém as poucas massas que restaram nas cestas de madeira foram alguns pães mofados.
Pulei sobre o balcão de atendimento derrubando alguns poucos objetos que estavam por ali. Olhei para trás a tempo de ver o infeliz se arremessar de frente por cima do balcão. Dei um largo passo para a direita e observei deliciado o idoso se espatifar contra a parede. Acho que naquele breve momento um sorriso surgiu no meu rosto.
Como todos os momentos bons, acabou rápido. Ouvi alguns grunhidos vindos da entrada e encontrei o zumbi que havia se atrasado agora mancando em minha direção. Seja lá por qual razão, ele parecia estar com o pescoço deslocado. Era uma mulher, ruiva. Não deu para ver muitos detalhes, mas pelo que parecia, ela também queria me matar. Novidade.
-Meu Deus! - Antes de poder reagir, uma mão me agarrou o tornozelo e conseguiu me derrubar, puxando com uma força impressionante. Para a minha surpresa, não era o idoso. Da porta da cozinha rastejava um corpo sem uma das pernas que agora me prendia ao chão. Ouvi os passos desajeitados da mulher se aproximando rapidamente, enquanto tentava me livrar do agressor.
Segurei sua cabeça longe da minha perna o máximo que pude, mas ele era um sujeito determinado e eu estava começando a me cansar. Quando tudo parecia não poder piorar, o idoso infectado levantou-se e saltou furioso em minha direção.
Coloquei meus braços na frente do corpo para segurar o homem, soltando um suspiro de esforço. Senti o hálito quente do desmorto rastejante em minha coxa. O idoso tentava morder o meu rosto, enquanto gotas de sangue pingavam pela minha face. A mulher tinha encontrado algumas dificuldades para passar pela bancada, mas estava agora escalando pela barreira lenta e progressivamente.
-Aah! - Com um grito de fúria, chutei a cabeça do rastejante e comecei a me desvincular do agressor que tentava me manter preso ao chão. Rastejei de costas por meio metro, para conseguir tempo contra o rastejante e então rolei, jogando o idoso ao chão. Já agachado, não hesitei em dar um murro no meio da cara do velhote. Peguei um rolo de massa do chão e ataquei diversas vezes a cabeça dele, enquanto eu gritava de raiva. Eu sentia o impacto de cada golpe se deslocar pelo meu braço, tremendo os ossos. O sangue respingava na minha roupa e no meu rosto, mas eu não ligava. Fazia tempo que essas coisas eram normais. Continuei batendo até que o crânio dele amassasse e o homem parasse de se mexer. Ainda segurando o rolo de madeira, respirei profundamente enquanto olhava para o outro infectado, que rastejava sem uma perna em minha direção.
-Agora o seu amigo não levanta tão cedo. - Disse para o aleijado. Os grunhidos da mulher, que pareciam estar mais perto, me chamaram a atenção.
Olhei para a minha direita a tempo de ver o perigo vindo. Vi o corpo da mulher deslizando sobre o balcão enquanto caía para o meu lado. Nesse momento, pude ouvir passos apressados de pelo menos mais duas pessoas entrando na padaria. Era mais do que a hora de eu sair dali.
Saltei sobre os corpos que me separavam da entrada da cozinha e então fechei a porta. Ou pelo menos tentei. Quando a entrada estava quase bloqueada, a mulher se jogou contra a porta de metal gritando de forma aguda, enquanto eu empurrava seu braço contra a parede. Olhei para o interior da cozinha e notei que outro desmorto se aproximava por dentro. Era um homem gordo e mal cuidado, que caminhava vagarosamente em minha direção com um avental vermelho de sangue. Pelo que parecia, o infeliz carregava uma faca também. Levantei o rolo de massa já ensanguentado e girei-o no ar, acertando um belo golpe na têmpora do agressor, enquanto empurrava a porta com as costas. Estava relativamente fácil segurar a passagem, até que senti uma incrivelmente forte pancada do outro lado que me afastou automaticamente da entrada. A mulher infectada caiu de frente no chão da cozinha, com um buraco imenso na parte de trás da cabeça. Um círculo de sangue se formou em volta de seu corpo inanimado.

-Tentando fugir, moleque? - Perguntou uma voz familiar.
Torrada estava de pé do lado de fora, segurando um pedaço de ferro que usou como arma. Um grande sorriso estampava o seu rosto.
-Você pegou o outro também? - Perguntei, me aproximando do soldado.

-Bom, na verdade quando eu cheguei o outro já tinha sido estraçalhado. Quer dizer, algum fugitivo maníaco acabou com a cabeça dele. - Respondeu ele, rindo.
-Não o cara velho, to falando do...
-Aaah! - Só consegui perceber o que aconteceu quando Torrada ergueu a barra de ferro e começou a agitá-la na direção das próprias pernas. O rastejante tinha pegado ele. Ele não parava de gritar enquanto era mordido por toda a panturrilha.
-Socorro!
Corri em sua direção e agarrei o infectado rastejante por trás, separando ele do Torrada. O morto se debatia em meus braços, com a fúria de um animal selvagem. Coloquei-o no chão e bati com toda a força na testa do desgraçado, que silenciou na mesma hora.
Torrada se arrastou até a parede, sentado no chão. Ele ainda emitia alguns sons de dor quando Garoto apareceu correndo por trás de uma das prateleiras. Ele se adiantou na direção da bancada, soltando no meio do caminho o cabo de vassoura que trazia.

-O que aconteceu? - Perguntou após saltar sobre o balcão. Eu e Torrada apenas olhávamos para ele, sem saber o que dizer. A perna do homem estava completamente inutilizada. Algumas fibras musculares se esticavam para fora do membro e era possível ver o osso pelo ferimento aberto.
-Não liga pra isso... A gente precisa voltar pra base. - Disse Torrada, pausadamente. A dor e o ferimento o impediriam de se levantar.
-Deixa que eu te ajudo. - Disse Garoto, passando o braço do amigo por cima do ombro, dando-lhe algum apoio para caminhar. -Matheus, vai na frente. Fala pro Will preparar o carro.

Saí da padaria correndo e encontrei um furgão da CCAB em frente a padaria. Por um momento fiquei paralisado, sem saber o que fazer. Avistei ao longe o outro soldado, que parecia ter roubado o veículo. Will se aproximava pelo outro lado da rua, correndo com toda a velocidade.
-Não temos muito tempo! - Ele gritou enquanto entrava pela porta do motorista. Ouvi-o ligar o carro antes mesmo que eu precisasse pedir.
-Cadê o blindado?- Perguntei.
-Ta no inferno! Cadê o pessoal? Precisamos ir agora!
-Por que a pressa? A multidão de infectados já... - Interrompi minha fala quando ouvi berros confusos vindos da esquina. O chão parecia vibrar, suavemente. De repente, uma enorme massa de zumbis apareceu no final da rua e corria em nossa direção, fazendo exatamente o caminho de Will. Pareciam ser ainda mais do que os que nos cercaram há alguns minutos.
Torrada saiu da loja mancando, carregado pelo líder. A horda de canibais estaria em cima de nós em no máximo cinco segundos. Os dois entraram na parte de trás do carro, enquanto eu entrava pela porta do carona. Will cantou pneus a tempo de ouvirmos as primeiras pancadas contra a lataria do veículo. Estávamos salvos.
[…]

-Como você tá?- Perguntou Will, que estava na parte de trás, cuidando do ferido.
-Já tive dias melhores. - Respondeu Torrada com seu sempre presente sorriso. Ele estava pálido, com uma aparência muito ruim, mas seu humor nunca parecia piorar.
Nós estávamos abastecendo o veículo num posto dos arredores, naquele momento já estávamos saindo de Mangaratiba, a caminho da base. Garoto tinha pendurada em seu pescoço uma submetralhadora MP5, que fui encontrada dentro do furgão pela equipe. Torrada estava deitado numa maca na parte de trás da van, ganhando algumas doses de endorfina. Após entrar no carro, Garoto fechou a porta atrás de si e acelerou, rumo a estrada. Após prender um torniquete na coxa do colega, Will preparou uma dose de sedativo e esterilizava a seringa no fogo de seu isqueiro.

-Vamos parar em alguma farmácia por aí, não dá para ficar assim. - Disse Garoto, enquanto dirigia. -Desse jeito você vai acabar pegando uma infecção. -
-Não me levem a mal, mas ele já está infectado. - Eu disse, compartilhando o meu pensamento pela primeira vez. Por um momento, o veículo mergulhou em um profundo silêncio. Todos se entreolharam, pensando no que eu falei. - É verdade! Ele foi mordido! - Repeti.
-Não é possível. Ele foi mordido sim, mas isso aconteceu há pouco tempo, se conseguirmos esterilizar o local ele vai ficar bem! - Respondeu Garoto.

-Ele tá certo, chefe... - Torrada falava lentamente. - A gente já viu isso acontecer antes. Com o Santos.
-Não! O Santos era um caso perdido! Ele merecia morrer. Você não, você ainda é jovem, Guilherme. - Falava Garoto, com a respiração pesada. Por um instante, achei que ele fosse chorar. Mas essa sensação logo passou quando ele virou para frente e fixou o olhar na estrada.

-Senhor... O vírus não escolhe quem infectar. - Disse Torrada, com a voz já rouca. No momento seguinte, fechou os olhos e descansou a cabeça na maca.
-O sedativo fez efeito, senhor. Agora que a pressão abaixou ele vai perder pouco sangue. - Disse Will. -E então, vamos ou não à farmácia?
-Vamos, é claro. Eu não posso perder o Guilherme também. Já tivemos muitas baixas naquele cerco em Nova York.
-Nova York? O que aconteceu lá? - Perguntei curioso.
-História antiga, rapaz. Nem se importe em saber. Mas o Brooks estava envolvido também. - Disse Garoto.
-É, parece que sempre que da merda em algum lugar o William tá por perto. - Comentou Will, num tom irônico. Mantive o meu silêncio por mais alguns momentos. Se eles não quisessem que eu soubesse, talvez eu realmente não devesse saber.

-O que é aquilo, senhor? - Perguntou Will enquanto olhava pela pequena janela da parte de trás. Ao longe, uma camionete rural andava paralelamente ao nosso veículo. Tinha pelo menos três pessoas na garupa.
-Sobreviventes! Vamos lá ajudá-los! - Exclamei.
  • Will, prepare a calibre cinquenta. Parece que vamos ter um pequeno combate aqui.
  • Sim, senhor!
Assisti Will preparar a arma enquanto Garoto acelerava com o carro, afastando-se do outro veículo.
-O que tá havendo?
-É a Fortaleza Norte! Um grupo de resistentes rebeldes fortemente armados que saqueiam outros veículos e atacam patrulhas militares.
-E por quê?!
-Isso não vem ao caso, agora vai pra parte de trás!

Nesse momento, disparos de armas automáticas ricochetearam contra a carroceria de nosso veículo. Pulei para a parte de trás do furgão, junto de Torrada.
-Responder fogo! Responder fogo! - Gritou Garoto. O som da metralhadora cortou todos os outros disparos e mergulhou o veículo no silêncio profundo. Em poucos segundos, estávamos travando um conflito armado em alta velocidade.
-Eu... Vou... Ajudar... - Olhei para o lado e encontrei Torrada se levantando da maca, com o olhar perdido. Ele passou para a parte da frente com algumas dificuldades e sentou-se no banco do carona antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
-Volta pra maca, Guilherme! - Berrou Garoto, com ar de autoridade.
-Eu tenho que ajudar, senhor. - Respondeu o soldado, que tirou a MP5 do peito do líder. Girou a manivela da janela e abriu uma fresta no vidro.
-Respondendo fogo! - Gritou Guilherme, enquanto executava alguns disparos contra os rebeldes. A partir do momento que ele apertou o gatilho, eu vi dois homens caindo no carro inimigo. Torrada era um pouco melhor do que eu pensei.

Antes a movimentação era lenta, mas agora a camionete investia contra nós fisicamente, jogando seu carro contra o nosso. Enquanto isso, os tiros não cessavam. Eram disparos de cá contra disparos de lá. Em determinado ponto do tiroteio, uma rajada inimiga penetrou a carroceria. Três tiros. Foram três balas letais que adentraram a cabine. Duas delas em Torrada.
No instante seguinte, Will acertou uma bala incendiária no tanque de combustível do outro veículo, que virou uma bola de chamas em alta velocidade. Os gritos dos inimigos ainda eram ouvidos enquanto tomávamos distância.
-Guilherme! Guilherme! Responde! - Gritava Garoto, enquanto batia em seu soldado. Um jato de sangue havia espirrado pelo interior da parte da frente do veículo. O próprio Garoto estava banhado em um vermelho vivo, que escorria pelo seu uniforme. Torrada não respondia, não respirava. Sua cabeça descansava encostada na janela do lado direito.
Will desceu da arma e viu o que tinha acontecido. Lançou um breve olhar em minha direção e então sentou-se na maca. Apoiou o rosto nas mãos e ficou com a cabeça abaixado por um bom tempo.
Garoto saiu do carro e abriu a porta do carona. Torrada caiu em seus braços, sem reação. Garoto soltava pequenos suspiros e respirava irregularmente. De forma inesperada, ele simplesmente caiu ajoelhado ao chão, ainda com o colega em seus braços. Ele estava lacrimejando, mas não ousava chorar. Garoto olhou para o céu, com um misto de raiva e tristeza.
Will havia ido até o carro inimigo que ainda ardia em chamas e começava a recolher as armas deles. O líder da equipe estava inconformado com a morte do navegador.

-Aaah! - Gritou com toda a voz que tinha, olhando as nuvens que flutuavam com indiferença. Em seguida Garoto abaixou a cabeça e deixou que as lágrimas caíssem. O homem gemia e suspirava de dor. Eu não sabia o que dizer, ou o que fazer. De certa forma, novamente fui eu quem gerou aquilo.
A cena era triste e a melancolia se prolongou por mais alguns minutos. Will começava a retornar com as armas quando o líder se levantou de perto do colega caído.

-Guilherme? - Garoto tinha o olhar incrédulo. Também fiquei surpreso com o que vi. Torrada abria os olhos, aos poucos. Suavemente, ele levantou a cabeça e logo deixou caí-la novamente.
-Ele está vivo! - Gritou Garoto. -Guilherme, venha cá e... - Garoto interrompeu sua frase quando seu colega saltou sobre ele, tentando morder-lhe o braço.
-Sai daí, chefe! - Gritou Will, enquanto destravava uma AK-47 que encontrou no carro destruído. Garoto se afastou rapidamente do homem caído, enquanto adentrava no carro.
-Cessar fogo! - Gritou para Will. -Vamos embora! -
Dito isso, entramos todos no carro. Torrada se levantou e correu na direção do veículo, gritando furiosamente. Garoto ainda estava com o rosto molhado de lágrimas quando ligou o veículo. Deu uma longa olhada no seu ex-navegador, que agora surrava a carroceria com os punhos, tentando entrar de qualquer forma. Com um breve aceno negativo de cabeça, Garoto acelerou e tirou-nos de lá.


-Você não vale nem uma bala, seu miserável! - Gritava Garoto, apontando para mim a chave inglesa em sua mão. Eu sentia novamente o concreto quente em minhas costas, enquanto tentava esquecer a sensação desconfortável de ser mais uma vez o culpado.
-E então, já tem o motivo? -
-Talvez... - Comecei a falar. - Talvez você não me mate porque tudo o que fiz foi para tentar sair daquela base militar. Ou você acha que eu não sei o que eles fazem com as pessoas lá?
-Tente novamente, esse motivo não me convenceu. - Falou Garoto enquanto se aproximava.
-Senhor! - Interrompeu Will. - Se o matarmos agora, Brooks não vai gostar. -
Essas breves palavras foram o suficiente para fazer Garoto parar e pensar. Talvez Will estivesse certo, talvez o menino merecesse viver um pouco mais.
-Quer saber? - Perguntou Garoto, guardando a chave inglesa. - Você vai voltar para a base hoje. O William vai gostar de saber que você nos mandou numa missão falsa.

domingo, 25 de setembro de 2011

Capitulo 14 - Os Lobos Azuis

   Um pássaro negro e mal-cheiroso relaxava sobre o cercado da construção enorme. O abutre limpava-se cuidadosamente, passando o bico por entre as penas das asas. Havia decidido descansar, pois já estava difícil de voar com aquele vento todo. Ficar aos redores daquela prisão era garantia certa de comida. Volta e meia aparecia algum cadáver do lado de fora das muralhas. A ave procurou com o olhar por alguma carniça, mas não havia nada naquela região no momento. De repente, um som alto de motor assusta a criatura,que alça vôo sumindo no azul do céu.
   O vento batia forte do lado de fora da base, balançando os cabelos lisos e despenteados de William Brooks. O doutor caminhou vagarosamente até um grupo de soldados que pareciam se preparar para uma missão. Estavam todos sorridentes e confiantes, não eram novatos no assunto.
   Sentado na caçamba de um jipe do exército, eu observava a certa distância o doutor dar as últimas explicações à equipe encarregada de me escoltar até a cidade. Poucos momentos antes, ele tinha me levado até uma enorme sala com inúmeros pertences e me devolvido as roupas com as quais fui apreendido. Porém nada mais do que isso. “Você não vai querer sair pela rua vestido de branco” Ele dizia. Agora lá estava eu, no carro. Havia uma metralhadora calibre 50 em minha frente, fixada ao veículo, mas eu não podia me distrair com isso. Precisava tentar ouvir, entre a ventania violenta, as palavras de Brooks.

-... Ainda não tenho certeza. Mas como eu já disse, vocês precisam levar esse cara até onde ele quiser. Entendido? –
   Todos ficaram na posição de sentido, e então William os liberou. Um a um, eles entraram no veículo onde eu estava. Todos de uniforme militar. Conversavam e riam alto. Os soldados ainda trocavam algumas palavras entre si quando William se dirigiu a mim.
- Garoto, aquela história de te matar é só brincadeira, ta? Acho impossível que você consiga encontrar algo melhor do que aquela amostra que eu tenho. Afinal é o próprio vírus modificado. – Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém tinha ouvido aquilo. Franzi a testa em sinal de dúvida. Mas Brooks não parecia muito interessado em responder as minhas perguntas. Notando a minha curiosidade, ele deu um sorriso e se despediu.

-Como eu já disse, você está nas melhores mãos. Se cuida, guri! – Dizia enquanto se afastava. Pela primeira vez, eu pude notar que estávamos em frente a um portão grande feito de metal. Por entre as grades, era possível ver a estrada adiante.
   O motorista fez um sinal para uma das torres e então, com um barulho tremendo, o portão começou a se abrir. Foi quando o meu coração gelou. Acho que até o momento eu não tinha pensado que iria me arriscar de novo. Sair da segurança daquele lugar, enfrentar todos aqueles monstros novamente. E dessa vez, desarmado.
   Senti uma leve tremedeira no veículo pesado enquanto o motorista acelerava para o lado de fora do perímetro. Pela primeira vez em três dias, eu estava saindo daquela prisão. Apesar de todas as desvantagens, dessa vez eu tinha um fator que estava ao meu lado: Disposição. Há muito tempo eu não tinha descansado tão bem quando consegui fazer naquele curto espaço de tempo em que eu fiquei ‘‘internado’’.
   Os portões de metal se fechavam vagarosamente -enquanto faziam uma barulheira escandalosa- quando William saiu correndo da base apressadamente em nossa direção, parecendo ter se esquecido de alguma coisa.

-Rapaz... – Ele dizia para mim, apoiado na lateral do veículo. O médico parecia fingir estar cansado pela breve corrida que deu. –Nem pense em fugir. – Depois de um breve sorriso, acenei positivamente e Brooks deu sinal de que já estávamos liberados para partir. O carro se afastou suavemente enquanto eu observava de longe o médico voltar para dentro da base.


   Já estávamos na estrada há quase meia hora. Distraído em meus próprios pensamentos, eu brincava com o cadarço de meu tênis sem perceber. Não conseguia parar de pensar naquele vidro com conteúdo azul... E nas possibilidades que ele apresentava.

-Hey, pequeno príncipe! – O motorista parecia me chamar. Estava com o tom de voz um pouco acima do normal, para que sua voz se destacasse de todos os outros barulhos do exterior. –Para onde vamos? –
-Esse daí não tem nada de príncipe. – Respondeu o soldado que dividia a parte de trás do veículo comigo. Sorridente, ele me deu mais uma boa olhada. –E nem de pequeno – Riu para si mesmo e voltou a atenção para a metralhadora que segurava.
-É... Pode ser. – O motorista retomou a palavra. – Mas e então, para onde?
   Naquele momento eu notei que estávamos o tempo todo dirigindo numa pista fora de rota. Talvez até fora do mapa. O carro estava agora parado à margem da estrada principal. Havia fios de energia elétrica ao longo da pista. Então presumi que estávamos próximos de alguma cidade.
-Vamos para Mangaratiba. – Eu disse. – É lá que vi a mulher pela última vez.
-Mulher? O William falou para nós que era homem. Certo, pessoal? – Perguntou o motorista, e todos assentiram. Eu iria me corrigir, mas estava certo de ter falado ao Brooks de uma mulher. Devia ser alguma pegadinha dos soldados.
-Não! Que homem o quê! É mulher, o nome dela é Diana! – Disse com toda a confiança que pude demonstrar. Vi pelo retrovisor o que parecia ser um sorriso surgindo no rosto do carona.
-Que seja, então. – E o motorista pisou fundo.
-Navegador, pode me guiar até essa cidade da qual nunca ouvi falar?
   O carona assentiu com um gesto e então começou a desdobrar um mapa realmente enorme que havia tirado do bolso. Era um pedaço de papel tão grande e difícil de controlar que os esforços do navegador em decifrá-lo chegavam a atrapalhar um pouco o motorista.
-Ãnh... Pega a próxima entrada a direita e segue por mais alguns quilômetros. –
-Pelo visto isso vai demorar – Reclamou o motorista, tirando um Ipod da calça. Vendo o movimento, o atirador traseiro logo o repreendeu.

-Nada de música! Pelo menos não enquanto estivermos em terreno aberto. Contentem-se com o estardalhaço que essa porcaria de carro já faz. A gente não precisa de mais atenção ainda.

   De fato, sempre que passávamos por algum infectado, mesmo que fosse a dezenas de metros, eles se viravam curiosos para ver o que estava acontecendo. Alguns até arriscavam correr na nossa direção. Mas como era de se esperar, nenhum teve sucesso em alcançar o carro que se movia em torno de oitenta quilômetros por hora.
   Ficamos na estrada por pouco mais de uma hora, antes de chegar até o local pretendido. Tempo que era dividido entre conversa jogada fora e algumas piadas de guerra do motorista. Eu tentei me manter em silêncio o tempo todo, mas o pessoal me envolvia na conversa. Eles eram até legais, apesar de eu não saber o nome de ninguém.


   Após algum tempo, lá estávamos nós. Mangaratiba. Logo de chegada eu pude avistar alguns zumbis que vagavam sem rumo. Sob a ordem de cessar fogo do próprio atirador, o motorista e o navegador tiveram que se contentar em desviar dos inimigos.
-Procurem por um posto de gasolina. – Sugeri, simplesmente porque era o único ponto que eu conhecia da cidade. O motorista apenas grunhiu em acordo, e o navegador permaneceu em silêncio. Seu mapa era para grandes escalas, e ele não podia ajudar mais do que já tinha feito.
   Após rodar algumas vezes pela cidade, finalmente encontramos o posto abandonado por onde eu passei alguns dias antes. O motorista parou na calçada, depois de se certificar de que haviam deixado os infectados bem para trás.
-É aqui. – Falei.
   Todos desceram do carro, com as armas em punho. O mais alto, que até então dirigia o veículo, carregava um fuzil M4A1 militar. Os demais levavam consigo submetralhadoras MP5, que para mim, eram armas americanas. Ouvi leves cliques enquanto os homens preparavam as suas armas. Estavam todos relativamente relaxados.
- Qual o nome de vocês? – Eu perguntei.
-Isso não importa, mas você pode me chamar de Garoto. – Dizia o até então motorista. Ele era alto, tinha seus quarenta e tantos anos. Branco de cabelos curtos e pretos. A barba mal feita lhe sombreava boa parte do rosto. Apontou então para o navegador. – Chame ele ali de Torrada, e o outro de... Pode chamar ele do que você quiser.- Ele disse, soltando algumas breves risadas.
-Me chame de Will. – Respondeu o homem. Retribuindo a piada do colega com um sorriso.
-Beleza então, ta todo mundo apresentado. Podemos entrar agora? – Perguntou Torrada. Obviamente, ele estava nervoso de ficar ali do lado de fora, vulnerável. Torrada era o mais baixo do grupo, eu podia apostar que era também o mais novo. Eu não daria mais do que vinte e cinco anos ao rapaz. Era loiro de cabelos lisos e seus olhos eram castanhos escuros. Will, por sua vez, era de altura mediana e tinha o corpo em forma. Grandes braços como o de um lutador. Era pardo e usava um moicano.
   Sem mais demora, eu os guiei até a pequena loja de conveniências. Agora de armas apontadas, os três homens me acompanhavam com atenção máxima e o menor barulho possível. Ao chegar à porta da pequena loja, me deparei com o vidro totalmente espalhado pelo chão, em cacos. Lembranças... Doces lembranças. Daquele fato, talvez nem tão doces assim.
-Sai da frente, guri. – Falou Garoto enquanto tomava a dianteira. Parado em frente à pequena entrada, ele fez alguns sinais rápidos com a mão direita antes de entrar. Will vinha logo atrás, dando apoio. Torrada parecia mais interessado em cuidar para que eu não fugisse. Mais relaxado que os demais, ele apenas olhava em volta para certificar a retaguarda do grupo.
   De repente, Garoto correu para dentro da loja, desaparecendo na escuridão. Com a falta de energia elétrica, era quase impossível ver onde ele estava. Foi seguido por Will, que adentrou o estabelecimento mirando para o lado oposto que Garoto tinha protegido. Senti um leve empurrão de Torrada enquanto ele me conduzia para dentro. Virado de costas, o último dos rapazes apontava a arma para os becos e vielas de onde podiam sair inimigos a qualquer momento.
-Limpo. – Falou Garoto em voz alta, apenas o suficiente para ser ouvido por todos.  Baixando as armas, a equipe de elite ficou mais calma. Aproveitando a breve distração dos soldados, eu aproveitei para pegar uma caixa de pilhas na prateleira a minha direita. Enfiei os pequenos objetos no bolso do casaco e disfarcei, como se nada tivesse acontecido ali.
-E então? Onde está a Diana? – Perguntou Garoto com um olhar sério. Ele parecia estar compreendendo a minha farsa. Era melhor que eu não enrolasse. Para o meu próprio bem.
-Ela estava aqui com o pessoal dela, alguma coisa deve ter acontecido. – Comentei, apontando para as marcas de balas na parede. Marcas que eu mesmo havia feito.
-Pessoal? Por que não avisou que eles andam em grupo? A ameaça é bem maior! A gente não deveria ter vindo apenas em três pessoas.
   No momento em que Garoto começou a se questionar, eu percebi algo que deveria ter notado antes. Os corpos dos infectados cujos eu e Marcos havíamos matado alguns dias antes... Haviam sumido. Todos eles. Estavam mortos com tiros na cabeça. Será que tinham ficado imunes a isso também? Ou isso ou alguém se deu ao trabalho de tirá-los dali. Mas quem e por quê? Em seu lugar, existiam somente trilhas de sangue seco e fedorento que levavam para o exterior da loja. Moscas zumbiam enquanto voavam preguiçosamente onde deveriam estar as supostas carcaças.
-Torrada, chame reforços pelo rádio. É mais provável de que você consiga sinal lá fora. – Ordenou Garoto, e Torrada assentiu com um gesto. –Will, você fica comigo. Temos muitas pistas dentro dessa loja. Vamos dar uma geral aqui.

   Senti uma mão em meu ombro novamente, e percebi que eu não poderia escolher para onde ir. Torrada me chamava para acompanhá-lo novamente. Demos alguns passos em direção ao exterior e então paramos próximos ao veículo.
-Aqui é Raposa-Tango 671, alguém na escuta? Aqui é Raposa-Tango 671... Alguém na escuta, câmbio? – Torrada tentava contatar o comando desesperadamente. Aproveitei a oportunidade e me afastei um pouco, indo na direção da loja.
   Peguei o pacote de pilhas no meu bolso e olhei para elas durantes alguns breves segundos. Convencido do que eu deveria fazer, arremessei-as com força total no vidro da pequena loja. O resultado foi imediato. Um longo som ecoou por toda a rua. Eu arriscaria que em alguns minutos teríamos a companhia de centenas de zumbis.
-Ei! O que você pensa que está fazendo? – Gritou Torrada, realmente irritado. O som do vidro se espatifando outra vez percorreu a cidade. Eu tinha certeza de que havia cumprido o meu objetivo. Instintivamente, talvez, a arma do jovem soldado estava apontada na direção do meu peito. Isso não me agradava nem um pouco.
   De repente, outra coisa aconteceu. Algo inesperado e surpreendente. Um som alto como o de uma pancada na madeira saiu de dentro da loja.
-Parados! – gritou uma voz abafada pela distância. Eu e Torrada nos entreolhamos do lado de fora, enquanto assistíamos, impotentes, a cena que se desenrolaria a seguir.
  Foi realmente estranho quando pude ver Garoto e Will saindo da loja caminhando lentamente, com os braços para trás. “Possivelmente,” Pensei “Estão algemados”.
   Caminhando por detrás dos militares, estava uma figura de capuz verde escuro. Não parecia amigável. Notei que Torrada havia direcionado a MP5 na direção do desconhecido, enquanto outros encapuzados apareciam de diversos lugares. No alto de prédios, na janela e até mesmo em cima da loja de conveniências. Eles carregavam o que pareciam ser arcos e flechas improvisados.
   Torrada recuava vacilantemente, sem ceder a tentação de atirar, mas também sem abaixar a arma. Eu o acompanhei, hesitante, enquanto pensava no que iria acontecer conosco.
-Abaixem as armas! – Gritou o homem de cima do prédio no lado direito da rua. Abafado pela distância, ouvi a ordem como um sussurro.
   Senti um calafrio ao olhar para o beco atrás de mim. À distância, eu avistei nada mais que um leve movimento de alguma coisa. Foi o suficiente para fazer com que eu me jogasse ao chão.
   No momento seguinte, ouviu-se um estampido. Pude ver o clarão do disparo que veio do beco. Torrada caiu ao chão do meu lado, olhos vidrados. Não havia sinal de sangue. Concluí que o colete havia salvado a sua vida. Porém eu não tinha colete. Estiquei a minha mão, pegando a pistola do soldado ao meu lado. Ela estava presa por um fio de náilon ao seu uniforme. Mas isso de nada me impediu. Com velocidade, eu apontei a arma para o beco e efetuei nada menos que cinco disparos. Ao julgar pelo silêncio repentino, eu tinha derrubado o alvo.
-Pro chão! Largue a arma! Nós vamos atirar! – Gritavam os inúmeros homens misteriosos sem sincronia alguma. Convencido, me joguei ao chão com as mãos na cabeça. Torrada continuava ofegante a minha direita.
   Assisti com certa raiva outro vulto no beco sem saída. A silhueta do atirador pulou o muro e passou para o outro lado em menos de um segundo. Eu não atingi o infeliz.
   Garoto e Will foram postos de joelhos ao nosso lado. À distância, éramos observados por pelo menos uma dúzia de sobreviventes. Seria bom estar do lado deles agora.
-Quem são vocês e o que fazem na nossa cidade? – Perguntou o homem mais próximo. Ao que tudo indicava, ele havia desarmado e imobilizado sozinho Garoto e Will. Dois agentes de um grupo da elite militar.
-Raposa-Tango 671. Missão de busca e resgate. – Explicou Garoto brevemente. Notei que ele não estava ferido com marcas de agressão. Assim como Will.
-Missão de busca e resgate...- O homem desconhecido repetiu em tom de zombaria. –E quem vocês estariam buscando-resgatando?
-Indivíduo do sexo feminino, quarenta anos aproximados, primeiro nome Diana. Está com vocês? – Se apressou Torrada.
-Cala a boca! É confidencial! – Gritou Will com toda a sua voz.
   Notando o silêncio de um determinado membro daquele grupo, o encapuzado apontou para mim. Apesar de eu não poder ver seus olhos, cobertos pela sombra do capuz, sabia que havia uma expressão curiosa ali.
-E aquele ali, quem é?
-Aquela é a nossa fonte, senhor. – Explicou Garoto, e o homem grunhiu brevemente, em sinal de concordância.
-Bom, como todos vocês sabem, eu não tenho motivo para matar nenhum de vocês. Não há nenhuma sobrevivente chamada Diana na nossa pequena cidade. Nós podemos soltá-los se prometerem nunca mais nos incomodarem.
   Por um breve momento, Garoto e os outros militares se entreolharam esperançosos. Pelo que parecia, todos esperavam morrer ali.
-Como sabe que não tem nenhuma Diana aí?- Perguntei. Afinal, se o homem quisesse mesmo estragar os meus planos, tinha que ter uma justificativa.
-Eu sou o líder dos Lobos Azuis. Nós podemos garantir que procuramos em cada centímetro da nossa cidade pelos sobreviventes. E aqui não tem nenhum, ou nenhuma que não esteja no nosso grupo.

   Senti o olhar zangado de Garoto perfurando as minhas costas, enquanto éramos postos de pé pelos sobreviventes. Torrada e eu fomos revistados minuciosamente antes de deixarem que nos levantássemos. Desarmados, ficamos nos olhando por mais alguns instantes antes de sermos liberados.
-Ah... Esqueci de dizer.- Voltou a falar o homem encapuzado, com um tom de ironia. - As suas armas ficam conosco. Voltem para o seu centro logo, antes que escureça. – Dito isso, os militares se rebelaram em resposta, gritando xingamentos e ofensas. Claramente, não os agradava nem um pouco voltar desarmados.
-Vocês não estão em condições de fazer exigências, homens. – Finalizou sorrindo. Era um sorriso assustador.

-Ameaças múltiplas em raio de trezentos metros! Aproximação irregular por norte e sudoeste! – Gritou um dos Lobos Azuis de cima de um prédio. O clima de relaxamento dos encapuzados mudou de repente, e logo eles se agitavam para longe dali. Apenas o suposto líder nos encarou por mais alguns instantes.
-É melhor vocês irem. – O pequeno time de elite correu na direção do veículo, e eu me adiantei a seguí-los. Porém uma mão no ombro me impediu. O homem de capuz me virou em sua direção.
-Leve isto. – Ele disse, enquanto tirava uma pequena faca de suas vestes. –Você parece precisar mais do que eu. –
-Quarenta segundos! – Gritou um dos militares no carro.
   O encapuzado então se afastou, correndo para dentro da loja de conveniências. Parado no posto de gasolina, eu observei a faca por alguns instantes. Os raios do sol se pondo batiam na lâmina, refletindo uma poderosa luz alaranjada. Guardei o objeto cuidadosamente na cintura e corri para o carro. Aquele homem... Havia muita coisa curiosa nele.

sábado, 3 de setembro de 2011

Capítulo 13 - Revelações

   Três dias se passaram. Três dias regados a uma chuva fina e uma ventania gélida que parecia fazer o tempo ficar ainda mais frio do que já estava. Pela manhã, éramos submetidos a testes e avaliações físicas, sem falar dos exames médicos matinais. Tinha também o café da manhã, que era servido até as dez horas. As coisas eram cuidadosamente planejadas naquele lugar.
   William era o médico encarregado de mim. Ao contrário do que eu pensava, o edifício era bem grande, e possuía muitos funcionários também. É claro que eu não sabia o número certo, mas cada médico tinha uma quantidade pré-determinada de pacientes que deveriam atender.
   Durante o período da tarde, eles nos deixavam um pouco ao ar livre, como se fôssemos detentos. Talvez fosse para dar um ar mais humano ao local, ou talvez para que a gente não pirasse lá dentro. No fim, não importava muito. E assim se passavam os minutos, as horas, os dias... Três dias. Dias que mais pareciam um ano.
   O pátio de recreação era como o espaço aberto de uma prisão de segurança máxima. Grades e cercas eletrificadas se expandiam por toda a delimitação do local. O arame farpado era um aviso bem claro de que não haveria tolerância para com a desobediência. Foi de fato um alívio, quando no primeiro dia eu encontrei a todos no pátio. Graças a... Graças a eles mesmos, estavam vivos.
   O número de pessoas presas naquele lugar era bem maior do que eu havia pensado. De dimensões inimagináveis, o edifício de trinta andares também se estendia para o subsolo. Eu me lembrava de William me contando tudo aquilo.
   Sentado ao canto da cela, eu me lembrava de tudo o que havia acontecido na última semana de catástrofe total. Foi tudo de repente, aconteceu rápido demais. Pessoas morrendo ao meu redor, pessoas gritando. E a pior parte de tudo era que eu estava ficando nostálgico. Talvez louco. Louco. Eu gargalhava sozinho enquanto pensava nessa possibilidade.

-Matheus, por que está sorrindo? – Perguntou Lucas, com uma expressão de dúvida. O sol nascia havia nascido no horizonte há pouco mais que meia hora. Sim, a rotina era rígida por lá. Olhei para o meu colega de cela, tentando passar confiança.

-Nada demais, você não deve se preocupar com isso. Aliás, você não deve se preocupar com mais nada. – Eu dizia, corajosamente. – Nós dois vamos fugir daqui hoje. Aliás, é melhor avisar ao grupo todo. Cansei desse lugar.

-Como é?!

-É exatamente o que você ouviu. Eu vou embora e vocês vão vir comigo.

   Deixando o ar autoritário da última fala de lado, não tinha nada demais no que eu havia dito. Todos já esperavam um plano de fuga da minha parte, principalmente Lucas, que me conhecia bem. De qualquer forma, eu havia avisado sobre meus planos. Porém naqueles últimos dias fui impedido pelo clima ruim. Naquele dia, diferentemente dos demais, o céu estava claro, iluminado.
   Um chacoalhar de chaves foi ouvido. Ao me virar, deparei-me com um soldado uniformizado que nos convidava para o café da manhã. Lucas logo saiu da cela, acompanhado por outro funcionário.

-Preciso falar com o William. – Avisei assim que o militar olhou para mim. Depois de me ouvir, o soldado não parecia nem um pouco disposto a atender o meu pedido. Eu precisava ser um pouco mais sutil. – Eu necessito falar com o doutor Brooks imediatamente.

-E isso é jeito de falar comigo, moleque? – Perguntou o homem exaltado. Levantou a arma e avançou em minha direção, como se quisesse me dar uma coronhada com seu M4A1.

-Sanchez, se afaste do civil agora mesmo. – Dizia uma voz calma oriunda do corredor. Eu conhecia aquela voz. William apareceu por detrás dos vidros de minha cela. –Queria falar comigo, rapaz?- Perguntou diretamente a mim. Acenei positivamente com a cabeça e nos retiramos do local.
  Pude sentir o olhar com ódio daquele tal de Sanchez me perfurar as costas. Devia estar rangendo os dentes de raiva, aquele arrogante. Caminhei ao lado do médico calmamente pelos corredores, sem dizer uma palavra. Brooks, parecendo saber que a conversa era particular, me guiava para a sala de exames.

[...]
   As duas portas se abriram me dando a visão do interior da sala. Estava como sempre, arrumada. Os tubos de ensaio guardados dentro de um freezer pequeno ao canto, a maca posicionada bem no centro do ambiente. Havia também, é claro, o famoso espelho que se estendia por uma parede inteira.
   Antes que pudéssemos adentrar a sala, apareceram em nossa frente uma enfermeira e outro paciente como eu. Tinha uma aparência familiar. Era branco, meio calvo no alto da cabeça, apesar de sua juventude. Talvez fosse... Não. Era ousado demais imaginar que o meu professor de matemática ainda estivesse vivo. Seria muita coincidência.

-E então, 492, o que é tão importante? – Perguntou William para mim, despertando-me de meus pensamentos. Os funcionários costumavam chamar os pacientes pelo número de cadastro de cada um deles. Era como um procedimento padrão para evitar o apego entre eles.
-Brooks, sinceramente eu preferia que você me chamasse pelo meu nome. – Em resposta, o médico sorriu ironicamente.
-Você não tem preferências aqui. Pensei que já tivesse percebido isso. E então, o que quer?
   Respirei fundo por alguns instantes. Aquela grosseria por parte dele foi imprevisível. Mas isso não poderia me abalar nem um pouco, qualquer erro emocional poderia ser prejudicial ao meu plano.

-Eu sei a cura.
-Ãnnh? – William pareceu surpreso. Pude ver seus olhos se arregalarem por baixo de seus discretos óculos meia lua. –Cura? Você por acaso sabe alguma coisa dessa doença?
-Mais do que você imagina, porém menos do que eu queria saber. Conheci uma mulher na cidade que recebeu mais de três mordidas superficiais, e continuava sã depois de um dia inteiro. Ela não se transformou como os outros. Na verdade, a cicatrização daquelas feridas foi algo fenomenal, eu diria. – Cada palavra do que eu dizia era um blefe. Todavia, as minhas palavras pareciam surtir efeito enquanto eu olhava Brooks boquiaberto.

   Sem saber o que fazer, William me fitou por mais alguns instantes. Envolto em seus próprios pensamentos, pegou sua inseparável prancheta e começou a ler. Leu todos os escritos por um bom tempo, como se procurasse qualquer coisa que lhe ajudasse naquele momento, e então se dirigiu até o freezer no canto.
  Pegou uma amostra de um líquido qualquer que eu não reconhecia e veio até mim. Agachado ao meu lado, William falava baixo, como se não quisesse ser ouvido por mais ninguém.
-Essa daqui... - Disse ele indicando o tubo de ensaio, preenchido com um líquido azul. -... É a melhor amostra que eu tenho até agora. Eu não mostrei a ninguém ainda porque não gosto da finalidade da CCAB. Essa belezinha aqui, se você injetar em alguém, não vai matá-la ou tampouco curá-la. Os indivíduos cujos receberem uma dose disso, por menor que seja, vão ter todo o seu organismo reiniciado, como aqueles infectados lá fora. Mas terá a mente sob controle. Saberá o que está fazendo, ao invés de se comportar como um animal doentio. Imagine só as possibilidades! – Dizia ele sorrindo. – É como o elixir da vida, ou a maldição da imortalidade. Fica a critério de cada um.
   Olhei para ele durante alguns momentos. Apesar de não ter percebido, Brooks havia deixado um mistério no ar.
-Por que não gosta da CCAB?
-Não quero e nem posso falar sobre isso com você. Mas de qualquer forma, o que eu quero dizer, é que isso daqui é o meu orgulho. Todas as qualidades de um infectado, sem ser um deles. Você pode se ferir em diversos lugares do corpo sem sentir dor, sem sentir nada. Pode ficar sem respirar por tempo indeterminado. É o que eu disse. Basicamente, você é um deles sob controle. Me desculpe se estou sendo redundante.
-Ãnh... Tem algum efeito colateral? – Pude notar William escondendo um sorriso, como se admirasse a minha curiosidade pelo assunto.
-Uma leve descoloração dos olhos, aumento gradativo da agressividade e também uma perca grave de coordenação motora, principalmente para movimentos mais precisos. Mas nada que não possa ser controlado.
  Pensei por alguns instantes. Se ninguém sabia daquele novo medicamento, como Brooks o havia estudado tão objetivamente nos últimos dias? Ainda mais quando se tem trabalhado em tempo integral... Tentei segurar a minha curiosidade por um pouco mais de tempo, mas isso logo se tornou impossível.
-Como você sabe de tudo isso? Quem você usou como cobaia? – O médico não pode deixar de demonstrar certo arrependimento, misturado com dúvida.
-Eu mesmo.
-Caramba! – Exclamei surpreso. –Mas você é médico! Como pode ter uma grave falha na coordenação motora? Vidas dependem da precisão de suas mãos!
-Alto lá, garoto! Eu sou médico, não cirurgião. E é como eu disse: Nada que não possa ser controlado. – Ele respondeu, obviamente pondo um fim ao assunto. – Enfim, Matheus – Ele retomava a palavra, dando ênfase a exposição de meu nome na fala. – Eu estou disposto a te fornecer um comboio de meia dúzia dos meus melhores soldados, tudo para que você traga essa mulher até aqui. Ou pelo menos uma amostra do sangue dela. É tudo o que eu te peço. Mas agora, volte aqui com qualquer coisa pior do que essa amostra que eu já tenho e eu te mato por arriscar a vida de meus homens. Entendido?

   Engoli seco após ouvir as duras palavras saindo da boca de Brooks. Eu sabia que ele não iria tolerar uma decepção. Apesar de tudo ser um blefe, eu precisava mostrar confiança. Mais do que eu jamais imaginei, eu estava interessado por aquele vidrinho repleto de líquido azul nas mãos do doutor.

-Como vou saber que isso não é um blefe? Como vou saber se o que você tem nas mãos é mesmo uma cura ou apenas um corante?
 
   William me fitou por alguns segundos com um olhar de reprovação. Depois de alguma reflexão, ele levou uma das mãos até o rosto e pareceu, por alguns instantes, tentar tirar algo de um dos seus olhos. Assisti impotente ele tirar uma lente de contato de cor escura. Seu olhar era quase hipnotizante. Durante alguns instantes, Brooks me fitou com seu olhar vazio. A retina parecia descolada, sua íris era levemente amarela. Agora eu tinha certeza: Pelo menos ele, não estava mentindo ali.