domingo, 25 de setembro de 2011

Capitulo 14 - Os Lobos Azuis

   Um pássaro negro e mal-cheiroso relaxava sobre o cercado da construção enorme. O abutre limpava-se cuidadosamente, passando o bico por entre as penas das asas. Havia decidido descansar, pois já estava difícil de voar com aquele vento todo. Ficar aos redores daquela prisão era garantia certa de comida. Volta e meia aparecia algum cadáver do lado de fora das muralhas. A ave procurou com o olhar por alguma carniça, mas não havia nada naquela região no momento. De repente, um som alto de motor assusta a criatura,que alça vôo sumindo no azul do céu.
   O vento batia forte do lado de fora da base, balançando os cabelos lisos e despenteados de William Brooks. O doutor caminhou vagarosamente até um grupo de soldados que pareciam se preparar para uma missão. Estavam todos sorridentes e confiantes, não eram novatos no assunto.
   Sentado na caçamba de um jipe do exército, eu observava a certa distância o doutor dar as últimas explicações à equipe encarregada de me escoltar até a cidade. Poucos momentos antes, ele tinha me levado até uma enorme sala com inúmeros pertences e me devolvido as roupas com as quais fui apreendido. Porém nada mais do que isso. “Você não vai querer sair pela rua vestido de branco” Ele dizia. Agora lá estava eu, no carro. Havia uma metralhadora calibre 50 em minha frente, fixada ao veículo, mas eu não podia me distrair com isso. Precisava tentar ouvir, entre a ventania violenta, as palavras de Brooks.

-... Ainda não tenho certeza. Mas como eu já disse, vocês precisam levar esse cara até onde ele quiser. Entendido? –
   Todos ficaram na posição de sentido, e então William os liberou. Um a um, eles entraram no veículo onde eu estava. Todos de uniforme militar. Conversavam e riam alto. Os soldados ainda trocavam algumas palavras entre si quando William se dirigiu a mim.
- Garoto, aquela história de te matar é só brincadeira, ta? Acho impossível que você consiga encontrar algo melhor do que aquela amostra que eu tenho. Afinal é o próprio vírus modificado. – Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém tinha ouvido aquilo. Franzi a testa em sinal de dúvida. Mas Brooks não parecia muito interessado em responder as minhas perguntas. Notando a minha curiosidade, ele deu um sorriso e se despediu.

-Como eu já disse, você está nas melhores mãos. Se cuida, guri! – Dizia enquanto se afastava. Pela primeira vez, eu pude notar que estávamos em frente a um portão grande feito de metal. Por entre as grades, era possível ver a estrada adiante.
   O motorista fez um sinal para uma das torres e então, com um barulho tremendo, o portão começou a se abrir. Foi quando o meu coração gelou. Acho que até o momento eu não tinha pensado que iria me arriscar de novo. Sair da segurança daquele lugar, enfrentar todos aqueles monstros novamente. E dessa vez, desarmado.
   Senti uma leve tremedeira no veículo pesado enquanto o motorista acelerava para o lado de fora do perímetro. Pela primeira vez em três dias, eu estava saindo daquela prisão. Apesar de todas as desvantagens, dessa vez eu tinha um fator que estava ao meu lado: Disposição. Há muito tempo eu não tinha descansado tão bem quando consegui fazer naquele curto espaço de tempo em que eu fiquei ‘‘internado’’.
   Os portões de metal se fechavam vagarosamente -enquanto faziam uma barulheira escandalosa- quando William saiu correndo da base apressadamente em nossa direção, parecendo ter se esquecido de alguma coisa.

-Rapaz... – Ele dizia para mim, apoiado na lateral do veículo. O médico parecia fingir estar cansado pela breve corrida que deu. –Nem pense em fugir. – Depois de um breve sorriso, acenei positivamente e Brooks deu sinal de que já estávamos liberados para partir. O carro se afastou suavemente enquanto eu observava de longe o médico voltar para dentro da base.


   Já estávamos na estrada há quase meia hora. Distraído em meus próprios pensamentos, eu brincava com o cadarço de meu tênis sem perceber. Não conseguia parar de pensar naquele vidro com conteúdo azul... E nas possibilidades que ele apresentava.

-Hey, pequeno príncipe! – O motorista parecia me chamar. Estava com o tom de voz um pouco acima do normal, para que sua voz se destacasse de todos os outros barulhos do exterior. –Para onde vamos? –
-Esse daí não tem nada de príncipe. – Respondeu o soldado que dividia a parte de trás do veículo comigo. Sorridente, ele me deu mais uma boa olhada. –E nem de pequeno – Riu para si mesmo e voltou a atenção para a metralhadora que segurava.
-É... Pode ser. – O motorista retomou a palavra. – Mas e então, para onde?
   Naquele momento eu notei que estávamos o tempo todo dirigindo numa pista fora de rota. Talvez até fora do mapa. O carro estava agora parado à margem da estrada principal. Havia fios de energia elétrica ao longo da pista. Então presumi que estávamos próximos de alguma cidade.
-Vamos para Mangaratiba. – Eu disse. – É lá que vi a mulher pela última vez.
-Mulher? O William falou para nós que era homem. Certo, pessoal? – Perguntou o motorista, e todos assentiram. Eu iria me corrigir, mas estava certo de ter falado ao Brooks de uma mulher. Devia ser alguma pegadinha dos soldados.
-Não! Que homem o quê! É mulher, o nome dela é Diana! – Disse com toda a confiança que pude demonstrar. Vi pelo retrovisor o que parecia ser um sorriso surgindo no rosto do carona.
-Que seja, então. – E o motorista pisou fundo.
-Navegador, pode me guiar até essa cidade da qual nunca ouvi falar?
   O carona assentiu com um gesto e então começou a desdobrar um mapa realmente enorme que havia tirado do bolso. Era um pedaço de papel tão grande e difícil de controlar que os esforços do navegador em decifrá-lo chegavam a atrapalhar um pouco o motorista.
-Ãnh... Pega a próxima entrada a direita e segue por mais alguns quilômetros. –
-Pelo visto isso vai demorar – Reclamou o motorista, tirando um Ipod da calça. Vendo o movimento, o atirador traseiro logo o repreendeu.

-Nada de música! Pelo menos não enquanto estivermos em terreno aberto. Contentem-se com o estardalhaço que essa porcaria de carro já faz. A gente não precisa de mais atenção ainda.

   De fato, sempre que passávamos por algum infectado, mesmo que fosse a dezenas de metros, eles se viravam curiosos para ver o que estava acontecendo. Alguns até arriscavam correr na nossa direção. Mas como era de se esperar, nenhum teve sucesso em alcançar o carro que se movia em torno de oitenta quilômetros por hora.
   Ficamos na estrada por pouco mais de uma hora, antes de chegar até o local pretendido. Tempo que era dividido entre conversa jogada fora e algumas piadas de guerra do motorista. Eu tentei me manter em silêncio o tempo todo, mas o pessoal me envolvia na conversa. Eles eram até legais, apesar de eu não saber o nome de ninguém.


   Após algum tempo, lá estávamos nós. Mangaratiba. Logo de chegada eu pude avistar alguns zumbis que vagavam sem rumo. Sob a ordem de cessar fogo do próprio atirador, o motorista e o navegador tiveram que se contentar em desviar dos inimigos.
-Procurem por um posto de gasolina. – Sugeri, simplesmente porque era o único ponto que eu conhecia da cidade. O motorista apenas grunhiu em acordo, e o navegador permaneceu em silêncio. Seu mapa era para grandes escalas, e ele não podia ajudar mais do que já tinha feito.
   Após rodar algumas vezes pela cidade, finalmente encontramos o posto abandonado por onde eu passei alguns dias antes. O motorista parou na calçada, depois de se certificar de que haviam deixado os infectados bem para trás.
-É aqui. – Falei.
   Todos desceram do carro, com as armas em punho. O mais alto, que até então dirigia o veículo, carregava um fuzil M4A1 militar. Os demais levavam consigo submetralhadoras MP5, que para mim, eram armas americanas. Ouvi leves cliques enquanto os homens preparavam as suas armas. Estavam todos relativamente relaxados.
- Qual o nome de vocês? – Eu perguntei.
-Isso não importa, mas você pode me chamar de Garoto. – Dizia o até então motorista. Ele era alto, tinha seus quarenta e tantos anos. Branco de cabelos curtos e pretos. A barba mal feita lhe sombreava boa parte do rosto. Apontou então para o navegador. – Chame ele ali de Torrada, e o outro de... Pode chamar ele do que você quiser.- Ele disse, soltando algumas breves risadas.
-Me chame de Will. – Respondeu o homem. Retribuindo a piada do colega com um sorriso.
-Beleza então, ta todo mundo apresentado. Podemos entrar agora? – Perguntou Torrada. Obviamente, ele estava nervoso de ficar ali do lado de fora, vulnerável. Torrada era o mais baixo do grupo, eu podia apostar que era também o mais novo. Eu não daria mais do que vinte e cinco anos ao rapaz. Era loiro de cabelos lisos e seus olhos eram castanhos escuros. Will, por sua vez, era de altura mediana e tinha o corpo em forma. Grandes braços como o de um lutador. Era pardo e usava um moicano.
   Sem mais demora, eu os guiei até a pequena loja de conveniências. Agora de armas apontadas, os três homens me acompanhavam com atenção máxima e o menor barulho possível. Ao chegar à porta da pequena loja, me deparei com o vidro totalmente espalhado pelo chão, em cacos. Lembranças... Doces lembranças. Daquele fato, talvez nem tão doces assim.
-Sai da frente, guri. – Falou Garoto enquanto tomava a dianteira. Parado em frente à pequena entrada, ele fez alguns sinais rápidos com a mão direita antes de entrar. Will vinha logo atrás, dando apoio. Torrada parecia mais interessado em cuidar para que eu não fugisse. Mais relaxado que os demais, ele apenas olhava em volta para certificar a retaguarda do grupo.
   De repente, Garoto correu para dentro da loja, desaparecendo na escuridão. Com a falta de energia elétrica, era quase impossível ver onde ele estava. Foi seguido por Will, que adentrou o estabelecimento mirando para o lado oposto que Garoto tinha protegido. Senti um leve empurrão de Torrada enquanto ele me conduzia para dentro. Virado de costas, o último dos rapazes apontava a arma para os becos e vielas de onde podiam sair inimigos a qualquer momento.
-Limpo. – Falou Garoto em voz alta, apenas o suficiente para ser ouvido por todos.  Baixando as armas, a equipe de elite ficou mais calma. Aproveitando a breve distração dos soldados, eu aproveitei para pegar uma caixa de pilhas na prateleira a minha direita. Enfiei os pequenos objetos no bolso do casaco e disfarcei, como se nada tivesse acontecido ali.
-E então? Onde está a Diana? – Perguntou Garoto com um olhar sério. Ele parecia estar compreendendo a minha farsa. Era melhor que eu não enrolasse. Para o meu próprio bem.
-Ela estava aqui com o pessoal dela, alguma coisa deve ter acontecido. – Comentei, apontando para as marcas de balas na parede. Marcas que eu mesmo havia feito.
-Pessoal? Por que não avisou que eles andam em grupo? A ameaça é bem maior! A gente não deveria ter vindo apenas em três pessoas.
   No momento em que Garoto começou a se questionar, eu percebi algo que deveria ter notado antes. Os corpos dos infectados cujos eu e Marcos havíamos matado alguns dias antes... Haviam sumido. Todos eles. Estavam mortos com tiros na cabeça. Será que tinham ficado imunes a isso também? Ou isso ou alguém se deu ao trabalho de tirá-los dali. Mas quem e por quê? Em seu lugar, existiam somente trilhas de sangue seco e fedorento que levavam para o exterior da loja. Moscas zumbiam enquanto voavam preguiçosamente onde deveriam estar as supostas carcaças.
-Torrada, chame reforços pelo rádio. É mais provável de que você consiga sinal lá fora. – Ordenou Garoto, e Torrada assentiu com um gesto. –Will, você fica comigo. Temos muitas pistas dentro dessa loja. Vamos dar uma geral aqui.

   Senti uma mão em meu ombro novamente, e percebi que eu não poderia escolher para onde ir. Torrada me chamava para acompanhá-lo novamente. Demos alguns passos em direção ao exterior e então paramos próximos ao veículo.
-Aqui é Raposa-Tango 671, alguém na escuta? Aqui é Raposa-Tango 671... Alguém na escuta, câmbio? – Torrada tentava contatar o comando desesperadamente. Aproveitei a oportunidade e me afastei um pouco, indo na direção da loja.
   Peguei o pacote de pilhas no meu bolso e olhei para elas durantes alguns breves segundos. Convencido do que eu deveria fazer, arremessei-as com força total no vidro da pequena loja. O resultado foi imediato. Um longo som ecoou por toda a rua. Eu arriscaria que em alguns minutos teríamos a companhia de centenas de zumbis.
-Ei! O que você pensa que está fazendo? – Gritou Torrada, realmente irritado. O som do vidro se espatifando outra vez percorreu a cidade. Eu tinha certeza de que havia cumprido o meu objetivo. Instintivamente, talvez, a arma do jovem soldado estava apontada na direção do meu peito. Isso não me agradava nem um pouco.
   De repente, outra coisa aconteceu. Algo inesperado e surpreendente. Um som alto como o de uma pancada na madeira saiu de dentro da loja.
-Parados! – gritou uma voz abafada pela distância. Eu e Torrada nos entreolhamos do lado de fora, enquanto assistíamos, impotentes, a cena que se desenrolaria a seguir.
  Foi realmente estranho quando pude ver Garoto e Will saindo da loja caminhando lentamente, com os braços para trás. “Possivelmente,” Pensei “Estão algemados”.
   Caminhando por detrás dos militares, estava uma figura de capuz verde escuro. Não parecia amigável. Notei que Torrada havia direcionado a MP5 na direção do desconhecido, enquanto outros encapuzados apareciam de diversos lugares. No alto de prédios, na janela e até mesmo em cima da loja de conveniências. Eles carregavam o que pareciam ser arcos e flechas improvisados.
   Torrada recuava vacilantemente, sem ceder a tentação de atirar, mas também sem abaixar a arma. Eu o acompanhei, hesitante, enquanto pensava no que iria acontecer conosco.
-Abaixem as armas! – Gritou o homem de cima do prédio no lado direito da rua. Abafado pela distância, ouvi a ordem como um sussurro.
   Senti um calafrio ao olhar para o beco atrás de mim. À distância, eu avistei nada mais que um leve movimento de alguma coisa. Foi o suficiente para fazer com que eu me jogasse ao chão.
   No momento seguinte, ouviu-se um estampido. Pude ver o clarão do disparo que veio do beco. Torrada caiu ao chão do meu lado, olhos vidrados. Não havia sinal de sangue. Concluí que o colete havia salvado a sua vida. Porém eu não tinha colete. Estiquei a minha mão, pegando a pistola do soldado ao meu lado. Ela estava presa por um fio de náilon ao seu uniforme. Mas isso de nada me impediu. Com velocidade, eu apontei a arma para o beco e efetuei nada menos que cinco disparos. Ao julgar pelo silêncio repentino, eu tinha derrubado o alvo.
-Pro chão! Largue a arma! Nós vamos atirar! – Gritavam os inúmeros homens misteriosos sem sincronia alguma. Convencido, me joguei ao chão com as mãos na cabeça. Torrada continuava ofegante a minha direita.
   Assisti com certa raiva outro vulto no beco sem saída. A silhueta do atirador pulou o muro e passou para o outro lado em menos de um segundo. Eu não atingi o infeliz.
   Garoto e Will foram postos de joelhos ao nosso lado. À distância, éramos observados por pelo menos uma dúzia de sobreviventes. Seria bom estar do lado deles agora.
-Quem são vocês e o que fazem na nossa cidade? – Perguntou o homem mais próximo. Ao que tudo indicava, ele havia desarmado e imobilizado sozinho Garoto e Will. Dois agentes de um grupo da elite militar.
-Raposa-Tango 671. Missão de busca e resgate. – Explicou Garoto brevemente. Notei que ele não estava ferido com marcas de agressão. Assim como Will.
-Missão de busca e resgate...- O homem desconhecido repetiu em tom de zombaria. –E quem vocês estariam buscando-resgatando?
-Indivíduo do sexo feminino, quarenta anos aproximados, primeiro nome Diana. Está com vocês? – Se apressou Torrada.
-Cala a boca! É confidencial! – Gritou Will com toda a sua voz.
   Notando o silêncio de um determinado membro daquele grupo, o encapuzado apontou para mim. Apesar de eu não poder ver seus olhos, cobertos pela sombra do capuz, sabia que havia uma expressão curiosa ali.
-E aquele ali, quem é?
-Aquela é a nossa fonte, senhor. – Explicou Garoto, e o homem grunhiu brevemente, em sinal de concordância.
-Bom, como todos vocês sabem, eu não tenho motivo para matar nenhum de vocês. Não há nenhuma sobrevivente chamada Diana na nossa pequena cidade. Nós podemos soltá-los se prometerem nunca mais nos incomodarem.
   Por um breve momento, Garoto e os outros militares se entreolharam esperançosos. Pelo que parecia, todos esperavam morrer ali.
-Como sabe que não tem nenhuma Diana aí?- Perguntei. Afinal, se o homem quisesse mesmo estragar os meus planos, tinha que ter uma justificativa.
-Eu sou o líder dos Lobos Azuis. Nós podemos garantir que procuramos em cada centímetro da nossa cidade pelos sobreviventes. E aqui não tem nenhum, ou nenhuma que não esteja no nosso grupo.

   Senti o olhar zangado de Garoto perfurando as minhas costas, enquanto éramos postos de pé pelos sobreviventes. Torrada e eu fomos revistados minuciosamente antes de deixarem que nos levantássemos. Desarmados, ficamos nos olhando por mais alguns instantes antes de sermos liberados.
-Ah... Esqueci de dizer.- Voltou a falar o homem encapuzado, com um tom de ironia. - As suas armas ficam conosco. Voltem para o seu centro logo, antes que escureça. – Dito isso, os militares se rebelaram em resposta, gritando xingamentos e ofensas. Claramente, não os agradava nem um pouco voltar desarmados.
-Vocês não estão em condições de fazer exigências, homens. – Finalizou sorrindo. Era um sorriso assustador.

-Ameaças múltiplas em raio de trezentos metros! Aproximação irregular por norte e sudoeste! – Gritou um dos Lobos Azuis de cima de um prédio. O clima de relaxamento dos encapuzados mudou de repente, e logo eles se agitavam para longe dali. Apenas o suposto líder nos encarou por mais alguns instantes.
-É melhor vocês irem. – O pequeno time de elite correu na direção do veículo, e eu me adiantei a seguí-los. Porém uma mão no ombro me impediu. O homem de capuz me virou em sua direção.
-Leve isto. – Ele disse, enquanto tirava uma pequena faca de suas vestes. –Você parece precisar mais do que eu. –
-Quarenta segundos! – Gritou um dos militares no carro.
   O encapuzado então se afastou, correndo para dentro da loja de conveniências. Parado no posto de gasolina, eu observei a faca por alguns instantes. Os raios do sol se pondo batiam na lâmina, refletindo uma poderosa luz alaranjada. Guardei o objeto cuidadosamente na cintura e corri para o carro. Aquele homem... Havia muita coisa curiosa nele.

sábado, 3 de setembro de 2011

Capítulo 13 - Revelações

   Três dias se passaram. Três dias regados a uma chuva fina e uma ventania gélida que parecia fazer o tempo ficar ainda mais frio do que já estava. Pela manhã, éramos submetidos a testes e avaliações físicas, sem falar dos exames médicos matinais. Tinha também o café da manhã, que era servido até as dez horas. As coisas eram cuidadosamente planejadas naquele lugar.
   William era o médico encarregado de mim. Ao contrário do que eu pensava, o edifício era bem grande, e possuía muitos funcionários também. É claro que eu não sabia o número certo, mas cada médico tinha uma quantidade pré-determinada de pacientes que deveriam atender.
   Durante o período da tarde, eles nos deixavam um pouco ao ar livre, como se fôssemos detentos. Talvez fosse para dar um ar mais humano ao local, ou talvez para que a gente não pirasse lá dentro. No fim, não importava muito. E assim se passavam os minutos, as horas, os dias... Três dias. Dias que mais pareciam um ano.
   O pátio de recreação era como o espaço aberto de uma prisão de segurança máxima. Grades e cercas eletrificadas se expandiam por toda a delimitação do local. O arame farpado era um aviso bem claro de que não haveria tolerância para com a desobediência. Foi de fato um alívio, quando no primeiro dia eu encontrei a todos no pátio. Graças a... Graças a eles mesmos, estavam vivos.
   O número de pessoas presas naquele lugar era bem maior do que eu havia pensado. De dimensões inimagináveis, o edifício de trinta andares também se estendia para o subsolo. Eu me lembrava de William me contando tudo aquilo.
   Sentado ao canto da cela, eu me lembrava de tudo o que havia acontecido na última semana de catástrofe total. Foi tudo de repente, aconteceu rápido demais. Pessoas morrendo ao meu redor, pessoas gritando. E a pior parte de tudo era que eu estava ficando nostálgico. Talvez louco. Louco. Eu gargalhava sozinho enquanto pensava nessa possibilidade.

-Matheus, por que está sorrindo? – Perguntou Lucas, com uma expressão de dúvida. O sol nascia havia nascido no horizonte há pouco mais que meia hora. Sim, a rotina era rígida por lá. Olhei para o meu colega de cela, tentando passar confiança.

-Nada demais, você não deve se preocupar com isso. Aliás, você não deve se preocupar com mais nada. – Eu dizia, corajosamente. – Nós dois vamos fugir daqui hoje. Aliás, é melhor avisar ao grupo todo. Cansei desse lugar.

-Como é?!

-É exatamente o que você ouviu. Eu vou embora e vocês vão vir comigo.

   Deixando o ar autoritário da última fala de lado, não tinha nada demais no que eu havia dito. Todos já esperavam um plano de fuga da minha parte, principalmente Lucas, que me conhecia bem. De qualquer forma, eu havia avisado sobre meus planos. Porém naqueles últimos dias fui impedido pelo clima ruim. Naquele dia, diferentemente dos demais, o céu estava claro, iluminado.
   Um chacoalhar de chaves foi ouvido. Ao me virar, deparei-me com um soldado uniformizado que nos convidava para o café da manhã. Lucas logo saiu da cela, acompanhado por outro funcionário.

-Preciso falar com o William. – Avisei assim que o militar olhou para mim. Depois de me ouvir, o soldado não parecia nem um pouco disposto a atender o meu pedido. Eu precisava ser um pouco mais sutil. – Eu necessito falar com o doutor Brooks imediatamente.

-E isso é jeito de falar comigo, moleque? – Perguntou o homem exaltado. Levantou a arma e avançou em minha direção, como se quisesse me dar uma coronhada com seu M4A1.

-Sanchez, se afaste do civil agora mesmo. – Dizia uma voz calma oriunda do corredor. Eu conhecia aquela voz. William apareceu por detrás dos vidros de minha cela. –Queria falar comigo, rapaz?- Perguntou diretamente a mim. Acenei positivamente com a cabeça e nos retiramos do local.
  Pude sentir o olhar com ódio daquele tal de Sanchez me perfurar as costas. Devia estar rangendo os dentes de raiva, aquele arrogante. Caminhei ao lado do médico calmamente pelos corredores, sem dizer uma palavra. Brooks, parecendo saber que a conversa era particular, me guiava para a sala de exames.

[...]
   As duas portas se abriram me dando a visão do interior da sala. Estava como sempre, arrumada. Os tubos de ensaio guardados dentro de um freezer pequeno ao canto, a maca posicionada bem no centro do ambiente. Havia também, é claro, o famoso espelho que se estendia por uma parede inteira.
   Antes que pudéssemos adentrar a sala, apareceram em nossa frente uma enfermeira e outro paciente como eu. Tinha uma aparência familiar. Era branco, meio calvo no alto da cabeça, apesar de sua juventude. Talvez fosse... Não. Era ousado demais imaginar que o meu professor de matemática ainda estivesse vivo. Seria muita coincidência.

-E então, 492, o que é tão importante? – Perguntou William para mim, despertando-me de meus pensamentos. Os funcionários costumavam chamar os pacientes pelo número de cadastro de cada um deles. Era como um procedimento padrão para evitar o apego entre eles.
-Brooks, sinceramente eu preferia que você me chamasse pelo meu nome. – Em resposta, o médico sorriu ironicamente.
-Você não tem preferências aqui. Pensei que já tivesse percebido isso. E então, o que quer?
   Respirei fundo por alguns instantes. Aquela grosseria por parte dele foi imprevisível. Mas isso não poderia me abalar nem um pouco, qualquer erro emocional poderia ser prejudicial ao meu plano.

-Eu sei a cura.
-Ãnnh? – William pareceu surpreso. Pude ver seus olhos se arregalarem por baixo de seus discretos óculos meia lua. –Cura? Você por acaso sabe alguma coisa dessa doença?
-Mais do que você imagina, porém menos do que eu queria saber. Conheci uma mulher na cidade que recebeu mais de três mordidas superficiais, e continuava sã depois de um dia inteiro. Ela não se transformou como os outros. Na verdade, a cicatrização daquelas feridas foi algo fenomenal, eu diria. – Cada palavra do que eu dizia era um blefe. Todavia, as minhas palavras pareciam surtir efeito enquanto eu olhava Brooks boquiaberto.

   Sem saber o que fazer, William me fitou por mais alguns instantes. Envolto em seus próprios pensamentos, pegou sua inseparável prancheta e começou a ler. Leu todos os escritos por um bom tempo, como se procurasse qualquer coisa que lhe ajudasse naquele momento, e então se dirigiu até o freezer no canto.
  Pegou uma amostra de um líquido qualquer que eu não reconhecia e veio até mim. Agachado ao meu lado, William falava baixo, como se não quisesse ser ouvido por mais ninguém.
-Essa daqui... - Disse ele indicando o tubo de ensaio, preenchido com um líquido azul. -... É a melhor amostra que eu tenho até agora. Eu não mostrei a ninguém ainda porque não gosto da finalidade da CCAB. Essa belezinha aqui, se você injetar em alguém, não vai matá-la ou tampouco curá-la. Os indivíduos cujos receberem uma dose disso, por menor que seja, vão ter todo o seu organismo reiniciado, como aqueles infectados lá fora. Mas terá a mente sob controle. Saberá o que está fazendo, ao invés de se comportar como um animal doentio. Imagine só as possibilidades! – Dizia ele sorrindo. – É como o elixir da vida, ou a maldição da imortalidade. Fica a critério de cada um.
   Olhei para ele durante alguns momentos. Apesar de não ter percebido, Brooks havia deixado um mistério no ar.
-Por que não gosta da CCAB?
-Não quero e nem posso falar sobre isso com você. Mas de qualquer forma, o que eu quero dizer, é que isso daqui é o meu orgulho. Todas as qualidades de um infectado, sem ser um deles. Você pode se ferir em diversos lugares do corpo sem sentir dor, sem sentir nada. Pode ficar sem respirar por tempo indeterminado. É o que eu disse. Basicamente, você é um deles sob controle. Me desculpe se estou sendo redundante.
-Ãnh... Tem algum efeito colateral? – Pude notar William escondendo um sorriso, como se admirasse a minha curiosidade pelo assunto.
-Uma leve descoloração dos olhos, aumento gradativo da agressividade e também uma perca grave de coordenação motora, principalmente para movimentos mais precisos. Mas nada que não possa ser controlado.
  Pensei por alguns instantes. Se ninguém sabia daquele novo medicamento, como Brooks o havia estudado tão objetivamente nos últimos dias? Ainda mais quando se tem trabalhado em tempo integral... Tentei segurar a minha curiosidade por um pouco mais de tempo, mas isso logo se tornou impossível.
-Como você sabe de tudo isso? Quem você usou como cobaia? – O médico não pode deixar de demonstrar certo arrependimento, misturado com dúvida.
-Eu mesmo.
-Caramba! – Exclamei surpreso. –Mas você é médico! Como pode ter uma grave falha na coordenação motora? Vidas dependem da precisão de suas mãos!
-Alto lá, garoto! Eu sou médico, não cirurgião. E é como eu disse: Nada que não possa ser controlado. – Ele respondeu, obviamente pondo um fim ao assunto. – Enfim, Matheus – Ele retomava a palavra, dando ênfase a exposição de meu nome na fala. – Eu estou disposto a te fornecer um comboio de meia dúzia dos meus melhores soldados, tudo para que você traga essa mulher até aqui. Ou pelo menos uma amostra do sangue dela. É tudo o que eu te peço. Mas agora, volte aqui com qualquer coisa pior do que essa amostra que eu já tenho e eu te mato por arriscar a vida de meus homens. Entendido?

   Engoli seco após ouvir as duras palavras saindo da boca de Brooks. Eu sabia que ele não iria tolerar uma decepção. Apesar de tudo ser um blefe, eu precisava mostrar confiança. Mais do que eu jamais imaginei, eu estava interessado por aquele vidrinho repleto de líquido azul nas mãos do doutor.

-Como vou saber que isso não é um blefe? Como vou saber se o que você tem nas mãos é mesmo uma cura ou apenas um corante?
 
   William me fitou por alguns segundos com um olhar de reprovação. Depois de alguma reflexão, ele levou uma das mãos até o rosto e pareceu, por alguns instantes, tentar tirar algo de um dos seus olhos. Assisti impotente ele tirar uma lente de contato de cor escura. Seu olhar era quase hipnotizante. Durante alguns instantes, Brooks me fitou com seu olhar vazio. A retina parecia descolada, sua íris era levemente amarela. Agora eu tinha certeza: Pelo menos ele, não estava mentindo ali.