quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Capitulo 18 - Novas emoções

   Silêncio. Com a visão turva, eu enxergava nada além de uma enegrecida fumaça esvoaçar para todas as direções. Um véu negro de fuligem e cinzas me impediam de ver o azul do céu logo acima de mim. Luzes vacilantes de chamas iluminavam os escombros, deixando tudo com uma aparência avermelhada.
   A poeira tinha tomado conta de tudo, vultos enegrecidos vagavam de um lado ao outro, por entre grandes pedaços de concreto e carros revirados. Eu ouvia vozes distantes e vazias, e um zumbido forte ainda ecoava na minha cabeça. Tossia desenfreado, engasgado com a poeira que adentrava-me os pulmões.
   Meu corpo todo doía, e havia escoriações pelas minhas costas e braços. Eu sabia que em dado momento, eu tinha caído do carro que ainda corria. Meus amigos... Eu não tinha ideia de onde estavam. Lembrava apenas de ver Marcos deslizando para longe, rolando pelo asfalto, quando pulou para fora do veículo.
   Sem saber onde estava, esfreguei os meus olhos com as costas das mãos. Foi tudo em que eu consegui pensar naquele momento. Enxerguei com certa dificuldade, Marcos rastejando dentre os escombros. Minha visão hesitava, ficando turva e melhorando alternadamente. Ele estendia a mão para frente, sem nada no campo de visão.
   Apoiei os braços em uma estrutura metálica e me levantei, soltando um grunhido de esforço. Percebi que estava mancando inconscientemente, enquanto tentava andar até Marcos. Era a única pessoa conhecida que eu avistava. Ao meu redor, eu via de tudo: Carros prensados contra rochas, veículos presos debaixo de escombros, corpos dependurados nas estruturas. Pessoas gemiam e gritavam enquanto tentavam salvar suas vidas.
   Eu estava caminhando na direção de meu amigo quando notei um pedregulho se mexendo poucos metros a minha frente. Ele levantava alguns centímetros e caía novamente, como se estivesse sendo forçado por baixo. Inicialmente me assustei e parei de andar, mas logo disparei uma leve corrida até o local.
   Apressado, eu senti a dor nos joelhos quando me joguei no chão duro, com as articulações dobradas. Uma onda de choque se propagou por toda a minha perna, mas eu não liguei. Tentava ajudar desesperado quem quer que fosse. Podia ser Renan, ou Amanda...
   Eu puxava a pedra para cima e para trás, fazendo com que ela se desencaixasse do restante. Era tão pesada que os meus músculos doíam pelo esforço. Era como se fosse impossível tirá-la dali, até que por um milagre, o impedimento deslizou sobre outra rocha e desobstruiu a passagem. De imediato, uma fumaça branca saiu do lugar e se dispersou.

-Lucas! - Gritou um jovem empoeirado. Empoeirado era pouco, ele estava completamente cinza mesmo. Ainda tossia quando ajudei-o a sair do buraco. Estava tão diferente que eu demorei alguns segundos para reconhecer David.

-Ãnh... Eu sou o Matheus. - Respondi brevemente. Mas ele não estava me ouvindo, apoiou-se em uma estrutura de metal enferrujada e esticou o braço para dentro do buraco de onde saíra.

-Segura na minha mão! - Ele gritou. No momento seguinte, assisti surpreso o rapaz puxar Michele para cima, com uma só mão, rangendo os dentes de esforço. A garota largou-se no chão, caindo com o corpo mole. 
Parecia exausta. Usou as últimas de suas forças para agradecer ao jovem, que acabara de tirar a moça dali.
   David havia se largado no concreto ao lado de Michele, com a respiração ofegante. Seu peito subia e descia a cada inspiração. Michele olhava para ele, que estava de olhos fechados. Era impossível saber no que o rapaz estava pensando.
   De repente, um braço se esticou para fora do buraco e se agarrou no chão. Com uma força tremenda, Renan se puxou para fora. Suspirando de dor, rolou para o lado. Todo o seu braço esquerdo estava coberto de queimaduras e bolhas. Corri até ele de olhos arregalados, sem saber o que fazer.
“É impossível” Eu dizia para mim mesmo “O Renan nunca se machuca”. Agachei próximo ao meu amigo e tirei minha camisa. Sacudi-a fortemente para tirar a poeira, e então amarrei em torno da sua ferida, enquanto ele cerrava os dentes.

-Está tudo bem... Salve os outros. - Dizia Renan, enquanto se levantava. Estava quase tão sujo quanto eu. -Eu vou ficar bem, você sabe. - Disse ele com um sorriso, se esforçando para não deixar que a dor lhe superasse.

   Ajudei meu amigo a se levantar, enquanto nós olhávamos em volta. Soldados pegavam suas armas e andavam observando o que tinha acontecido. A fumaça baixou, e eu percebi que ainda não estávamos à céu aberto. Acima de nossas cabeças, um grande pedaço contorcido e rachado de concreto representava o que restou do tunel. Uma luz se via a uns cinquenta metros a frente.
   Algumas pessoas mancavam, outras estavam seriamente feridas, de forma que nem vale a pena comentar. Muitas tinham morrido. Olhei para o caminho de onde viemos. Havia nada mais que uma pilha de rochas gigantes, do tamanho de ônibus. Os escombros me tampavam totalmente a visão de alguma parte da base militar que fugimos.

-Por aqui. - Disse uma voz atrás de mim. Me deparei com Lucas de pé e ofegante, com arranhões leves no rosto. Marcos, que eu vira rastejando alguns momentos atrás, estava apoiado em seu ombro, parecia desacordado. Amanda se encontrava parada atrás dos dois, aparentemente ilesa. Ela fitava o pequeno ponto no fim do túnel, de onde saía uma agradável luz esbranquiçada, que passava a sensação de tranquilidade e esperança.

   David e Michele, que até poucos segundos atrás estavam deitados e conversando baixinho entre eles, tinham levantado. Assim que começamos a andar, eles já estavam atrás de nós, com a passada um pouco mais lenta. Falavam tranquilamente entre si, trocando sorrisos.
   De repente, fomos parados por um homem de aparência ruim. Era um militar de vestes rasgadas e sujas. Apontava seu rifle em nossa direção, quase sem aguentar o peso da própria arma. Andava mancando em nossa direção.

-Nenhum paciente... - Ele tossia. -Pode deixar a base vivo. - Falava o homem, enquanto tentava com o braço esquerdo destravar a arma.

-Que legal! - Exclamou Renan. - E eu achando que iria ficar sem a M16 que eu tinha encontrado! -

   Meu amigo se aproximou do homem com um olhar alegre. Eu sabia que o militar não tinha a menor chance, mesmo com Renan ferido. Olhei sem piscar para a rápida luta, se é que poderia se considerar uma luta.
Ao perceber a movimentação em sua direção, o militar ergueu a arma e disparou uma rajada de tiros que ecoou por todo o túnel. Porém Renan previsualizou o movimento e se esquivou, como se deslizando para o lado. Com um único chute, a arma saiu completamente dos braços do soldado, que gemeu de dor ao sentir a coronha do rifle bater em seu rosto. Caiu sentado, o homem. Como que esquecido do agressor, meu amigo simplesmente andou até a arma e a pegou. A essa altura, o soldado enlouquecido já estava desacordado, com seu corpo largado debilmente pelo chão.

-Estão todos bem? - Renan perguntou, andando calmamente ao meu lado. Seu braço tinha uma aparência horrível, diferentemente do que a expressão dele demonstrava. Renan tinha um semblante calmo, como se nada tivesse acontecido. Antes de começarmos a caminhada, ele tinha tirado a blusa e enrolado-a no ferimento, para evitar infecções. Com o seu casaco, fez algo semelhante a um gesso, que deixava o seu braço ferido pendurado em seu pescoço por um fio de tecido.

-Na medida do possível. - Respondeu David, que eu até agora não tinha ouvido falar.

-Eu acho... - Dizia uma voz mais grave, da minha frente. -Que a gente deu sorte.- Marcos dizia, interrompendo a voz a cada pico de dor que sentia.

-Sorte? - Perguntou Lucas, que o carregava. Por um instante, ele interrompeu a passada. -Nós perdemos um amigo. Dois dos nossos melhores homens estão incapacitados! Você acha que isso é sorte? -

   Todos se abalaram com as fortes palavras de Lucas. Suas expressões surpresas mesclavam algo entre “Pegou pesado” e “Você não precisava ter dito isso”. De repente, um riso abafado cresceu em meio ao silêncio. Renan tapava o rosto com a própria mão, enquanto soltava uma gostosa gargalhada.

-Eu não estou incapacitado, cara! - Disse ele, casualmente.

-Olhe para o seu braço, você acha que a gente não vê essas bolhas aí?- Insistia Lucas. Lembrei-me que ele não conhecia o lado durão do meu amigo.

-Tudo se resume no que a gente sabe e no que a gente não sabe. - Respondeu Renan, dessa vez com um rosto sério. - Por exemplo: Eu sei que posso te matar mesmo com o meu braço todo ferrado. - Vi o rosto de Lucas se contorcer de raiva, e ele já abria a boca para falar algo. -... Mas o que eu não sei, - Continuou Renan. -É se eu poderia conviver comigo mesmo sabendo que eu matei um amigo meu só porque ele me chamou de “incapacitado”. -

   O silêncio reinou outra vez. Nesse momento, já estavam todos parados em um círculo mal feito. Os membros do grupo trocavam olhares entre si. Michele começou a assobiar uma música alegre, completamente desinteressada no assunto que era discutido. Lucas fechou o punho. Renan ainda o olhava de esguelha, sem dar sequer atenção ao jovem irritado.

-Todos nós perdemos amigos, Lucas. - Disse Renan simplesmente, deixando o ar desafiador de lado. Era agora um Renan triste, mas decidido. Lucas parecia surpreso com a repentina mudança da discussão. -Todos nós perdemos parentes... Mas isso não é motivo para perder a calma, ameaçando assim a sobrevivência de todos os outros pelos quais você vem zelando. -

   Marcos se soltou de Lucas e dobrou levemente a perna direita, ao tocar o chão com ela. Deu para perceber onde era sua ferida. Uma mancha de sangue encharcava toda a sua calça militar. (Sim, ele pegou um uniforme do exército, junto com o jipe). Sem olhar para nós, deu um passo a frente, na direção da luz. Todos se entreolharam, e entenderam sem trocar uma palavra, que deveriam imitar o gesto. Recomeçaram todos a caminhar, deixando Lucas para trás, com um olhar perdido e cabisbaixo.
   Eu era o que estava mais atrás do grupo. Com passos pequenos e vacilantes, me aproximei dele. Ao olhar para mim, vi lágrimas surgirem em seus olhos. Eu nada disse, e ele tampouco. Dei um tapa de leve em suas costas, e convidei-o a nos acompanhar.
   Uma fogueira crepitava ao canto da estrada. Nós havíamos saído do túnel há algumas horas atrás. Nosso grupo ria e conversava descontraído, enquanto eu permanecia deitado sobre um pedaço de papelão jogado no acostamento. Acima de mim, um céu estrelado cobria todo o céu. Uma brisa suave soprava meu rosto, me dando uma boa impressão sobre o dia seguinte.
   Amanda e Lucas tinham buscado por mantimentos o resto da tarde que tiveram com luz do sol. Em nosso pequeno acampamento, tínhamos garrafas de água e amendoim que dariam para... Menos de um dia. Mas eramos muitos, e tínhamos uns aos outros. Ninguém parecia assustado ou desanimado, além de mim.
   Agora, conversavam os dois perto da fogueira. O fogo avermelhado refletia fortemente nos olhos chorosos do meu amigo. Amanda parecia consolá-lo com algumas palavras doces de afeto. Como sempre, tinha aquele ar feliz, que me trazia certa paz. Eu jamais me permitia olhar para ela por muito tempo, sua beleza era desconcertante, de forma que eu não conseguia controlar mais minha fala. Estaria eu apaixonado? Pouco provável, isso não poderia ser verdade.
   De um lado a outro, Marcos andava com um cigarro entre os dedos. “Cinco dias sem fumar não é pra qualquer um” Ele dizia sem parar. Michele e David pareciam ter realmente se introsado nas últimas horas. Conversavam mais isolados do restante do grupo, com um ar leve e descontraído.
Renan, como eu, tinha se isolado. Em outro lugar, mais para a escuridão. Eu mal distinguia o seu casaco de capuz a alguns metros de distância noite adentro, onde ele se encontrava sentado no capô de um carro, abraçando as próprias pernas, com o olhar perdido.

-O que será de nós agora? - Perguntou Amanda, sentando em minha frente. Carregava consigo duas garrafas de água. Ao sentar-se, me ofereceu uma delas, que aceitei de bom grado. Tinha como sempre aquele olhar vivo e brilhante, que me animava instantaneamente.

-Eu não sei. - Respondi, retribuindo o olhar com um sorriso. Abri a garrafa e dei uma golada.

-Isso sim é novidade. - Disse ela rindo. - Você sempre sabe o que dizer, o que fazer. -

-Ãnh? Não, esse é o Ren...

-Não, estou falando de você mesmo! - Falava ela, sorrindo. -Você pode estar sempre no seu canto, desanimado, mas quando surge algum problema, é também o primeiro que se esforça para resolver.

-Não, eu nunca sei...

-Você é incrível... - Dizia ela, um pouco mais timida agora. Algo que ela falou ou iria falar parecia deixá-la envergonhada. -Eu gosto de você. - Disse baixinho, quase num sussurro. Amanda não sorria, não demonstrava emoção. Seu rosto, rosado, parecia ainda mais belo. Ela me encarava com aqueles grandes olhos castanhos, esperando ansiosa por algum tipo de resposta.
   Por um momento, um silêncio pairou sobre a cena. À nossa volta, ninguém mais parecia ter ouvido o que ela falara. Gosta de mim? Era muita sorte para ser verdade.

-Eu acho que... - De repente, estávamos nos beijando.

   Eu não sei exatamente quando aconteceu, ou como, mas já estava acontecendo. Ela tinha lábios doces e macios, que me envolviam de tal forma, que eu já tinha desistido de resistir antes mesmo de tentar. Se aquilo era um sonho, eu não iria querer acordar nunca mais.
   Antes que eu pudesse pensar, minhas mãos se envolviam em sua cintura. Eu sentia o calor de seu corpo, a doçura de sua pele. Eu sentia suas mãos deslizarem pela minha camisa...

-Hey, Matheus! Eu vou precisar de voc... - Marcos parou de falar, observando o que tinha acontecido. Assustados, eu e Amanda nos separamos imediatamente. Olhávamos para ele nervosos, eu sabia que eu pelo menos, estava também feliz.

-Ah – Dizia ele, incomodado por nossos olhares – Sinto que interrompi alguma coisa...

-Não, não interrompeu nada. - Apressou-se Amanda a dizer, enquanto se levantava. -Eu já estava de saída.

-Anh... Então tá. - Falou Marcos, um tanto desconfiado. -Matheus, se importa em vir comigo um instante? Preciso de alguém para me ajudar a fazer outra fogueira.
   Concordei com um aceno de cabeça, e olhei disfarçadamente para Amanda, que se afastava sorrindo. Dei um sorriso para mim mesmo, enquanto levantava. Naquela noite, nada de ruim poderia estragar a minha felicidade.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Capitulo 17 - A última fuga

   O caos era completo. De um lado a outro da base, soldados e civis corriam desesperados se esquivando dos infectados raivosos. Pessoas caindo... Sendo pisoteadas. No meio da confusão, reparei que os atiradores disparavam agora contra todos os fugitivos, além dos desmortos. Civis caíam em plena fuga, rolando pelo chão áspero do exterior, envoltos em gritos e morte.
   Quando Renan me viu, um sorriso surgiu em seu rosto instantaneamente. Era como rever um velho amigo, um amigo de infância. Pareciam anos, o tempo que passei sem vê-lo. Para ser sincero, não esperava encontrá-lo novamente. Pelo menos não vivo.
-Matheus! - Ele disse, surpreso. Em meio ao pânico e correria, ele só aumentou um pouco a velocidade da passada em minha direção, carregando o fuzil M16 que pegara de um soldado. Apoiava a arma no ombro, como se já estivesse bem familiarizado com ela.
   Cumprimentou-me com um abraço apertado que me deixou sem fôlego. A sua felicidade estava estampada no rosto, tal como a minha. Por um momento, as pessoas no carro ficaram sem palavras. O único que também conhecia o Renan era Lucas, que no momento estava mais preocupado com um zumbi que se aproximava pela lateral.

-Fez amigos, hein? - Perguntou Renan, descontraído. Tinha um sorriso fácil, diferente do Renan que eu conhecia antes. Subindo na caçamba do jipe, ele olhou em volta e percebeu o que não tínhamos notado até então. Enquanto Marcos manobrava velozmente por dentro do cercado, acabamos por perceber que não tinha nenhuma saída visível. Outros carros que tentavam sair ao redor acabavam por bater em alguma coisa ou dirigir desgovernados pelo pátio. Lembro de ver uma mulher ser arremessada no ar a uns três metros de altura, quando atingida por um blindado.
    Os portões estavam todos fechados, e as grades, sendo abertas por centenas de desmortos carnívoros. Estávamos numa ilha de morte. Sem pensar muito bem, saltei pelo beiral da caçamba e corri na direção de uma das torres. Vi um desmorto em minha frente se adiantar na minha direção e ouvi um disparo. A cabeça dele estourou em um vermelho vivo, derrubando-o. Foi tão simples e rápido que eu sequer parei minha corrida. Renan estava me seguindo, e me dando cobertura com o rifle de assalto.
   Ao entrar pela pequena porta de ferro no térreo, me deparei com uma longa escada em espiral que subia em círculos intermináveis até o ponto de onde o atirador se posicionava. Na minha mente, lá também deveria ficar um painel que controlasse os portões. Renan não me perguntou nada, simplesmente me seguia, checando os arredores.
   Cheguei já cansado ao ponto de vigília. Como eu imaginei, um longo painel eletrônico se estendia por toda a pequena sala circular. Na varanda, um homem uniformizado e de colete disparava com uma arma de luneta em seus alvos por todo o pátio. Ele matava humanos e desmortos, indiferente. Fiz um gesto para Renan manter o silêncio, e puxei o homem para trás pelas roupas repentinamente,  tapando-lhe a boca. Ele gemeu e lutou por pouco tempo. No momento seguinte, havia sido arremessado pela outra varanda do lado oposto. Com gritos de desespero, ele fez sua curta jornada até o chão. E então os gritos cessaram. Sua arma estava agora em minhas mãos.

-Nossa. - Foi tudo o que Renan disse, com uma expressão impressionada no rosto. - Achei que você não fosse de matar inocentes. -

   Calado pelo ar de acusação na frase, eu nada respondi. Desviei o olhar e comecei imediatamente a apertar todos os botões que eu julgava serem os corretos. O rifle sniper balançava pendurado em minhas costas pela bandoleira.

-Inocentes... Não mato inocentes. - Respondi com algum atraso. Renan olhou mais uma vez para o corpo estendido do militar no chão há alguns metros e entendeu o que eu quis dizer. Ele acenou com a cabeça com uma expressão de “tem razão”.
   Eu continuava a apertar alguns botões quando ouvi um som terrivelmente diferente cortando toda a confusão. Era um barulho como se mil trombetas fossem tocadas juntas e descompassadas, como o metal de um navio se torcendo antes de ceder. Olhei pela varanda para ver o que estava acontecendo.
   Era inimaginável. Do piso no pátio, uma parte do chão afundava, deixando um vão escuro a frente. O pedaço de terra descia diagonalmente enquanto o vão só aumentava. Fiquei mais perplexo ainda ao perceber que formava uma rampa. Uma ladeira que levava a nada além da escuridão. Ao parar de se mover, um apito soou alto por toda a base. Como o de um caminhão dando ré, mas ainda mais alto que isso.
   Olhei para Renan, e tive a oportunidade de vê-lo boquiaberto pela primeira vez. Meu amigo não retribuiu o olhar, continuava observando aquela cena inacreditável. Alguns segundos depois, lâmpadas se acenderam dentro do buraco e piscaram algumas vezes, mas logo estavam estáveis. Só se via poeira dentro da passagem.
-É... É um túnel. - Falou Renan, quase sorrindo. Estava tão pasmo quanto eu.
Trocamos um rápido olhar, e entendemos um o pensamento do outro. Tão rápido quanto chegamos ali, estávamos saindo. Corríamos de volta para o jipe quando nos encontramos com Lucas e João subindo as escadas em espiral.
-O que estão fazendo aqui? - Perguntei.
-Queremos ajudar! - Responderam em um coro. Notei que Renan sorria mais uma vez, de cabeça baixa.
-Está tudo resolvido, agora corram para o jipe que é a melhor forma de ajudar! - Respondi.
   Éramos quatro correndo para fora da pequena torre. Carros atravessavam o pátio a toda a velocidade na direção da rampa, arrebentando de vez as cercas e grades. Civis e infectados voavam por todos os lados, atropelados sem misericórdia. Os gritos agora vinham de cada canto da base. Os desmortos tinham arrumado um jeito de chegar às torres, de onde os soldados agora atiravam uns contra os outros.
   Marcos dirigia o carro com habilidade, e freou o veículo uns vinte metros a nossa frente. Renan cobria nossa corrida com o fuzil, enquanto corríamos em velocidade uniforme para o carro. Faltavam cinco metros. Cinco metros...
   Tudo aconteceu rápido demais. Ao mesmo tempo, pareceu acontecer em câmera lenta, diante de meus olhos. João e Lucas corriam a minha frente. De forma paranoica, João olhava em volta, procurando por zumbis ou o que fosse.

-Lucas! - Ele gritou de repente, se jogando contra o amigo, de peito aberto e braços esticados.

   A cena foi quase toda visual. Um jato de sangue respingou para os lados. O tiro que acertou João quase não foi ouvido em meio à confusão. Atordoado, o ferido olhou para o próprio peito, incrédulo. Chegou a ver e encostar a mão no buraco escuro que a bala formou entre suas costelas. Segundos depois, ele caía ajoelhado no asfalto quente. O olhar se desfocando, a respiração cada vez mais lenta.

-Nãããão! - Lucas gritou, agarrando o amigo antes que ele pudesse cair de lado no chão. Os dois de olhos lacrimejados. João não parecia triste, nem arrependido... Nem irritado. Parecia livre.
-At-até a morte... -Disse ele, olhando para Lucas. Nesse momento, Lucas chorou ainda mais emocionado. Demorou alguns instantes até que pudesse responder.

   Renan se jogou na frente dos dois amigos e se abaixou, disparando com o M16 em todos os lugares onde via militares. Inúmeros soldados foram abatidos, enquanto ele soltava rajadas e mais rajadas de morte.

-Até a morte. - Respondeu Lucas, sem ligar para nada do que acontecia em volta. O rosto contorcido pela mais profunda tristeza e lamentação. Lágrimas escorriam desenfreadas pelo seu rosto.

-Precisamos sair daqui! - Falei. Lucas desabou em lágrimas, olhando para o já desacordado João, que ainda de olhos abertos, olhava o pôr do sol. Ele tinha uma expressão tranquila, diferente do resto de nós. Vi Lucas colocar gentilmente o corpo de seu amigo no chão, e nesse momento até eu deixei cair uma lágrima.

   Demos alguns passos em direção ao jipe, e eu pude ver Lucas olhando para trás, uma última vez. João continuava deitado lá, imóvel. Com a expressão serena. Nenhum infectado tinha vindo até ele. Nada se disse no carro. Marcos, engatando a marcha, adiantou-se na direção da rampa.

-Esterilização total em 10... 9... 8... 7... - A voz gravada de uma mulher falava novamente. Sua voz saía de todas as caixas de som espalhadas pelo pátio e pelas torres. Marcos avançava com toda a velocidade que o veículo aguentava. Nós nos segurávamos da melhor forma que podíamos, na caçamba.

   O carro não entrou calmamente na rampa. Ele simplesmente voou buraco adentro. Por causa da velocidade, perdemos totalmente o contato com o chão assim que entramos na passagem.
-3... 2... 1... 0. Esterilização iniciada. -
   Nada se ouviu. De forma muda e silenciosa, tudo ficou branco. Como em um relâmpago ou algo parecido. A imagem me voltou aos olhos, e em seguida um som ensurdecedor tomou-nos de completo. Eram como mil granadas explodindo ao lado de seu ouvido. Em menos de um segundo, tudo o que eu ouvia era um zumbido sinistro e ameaçador. Tudo o que eu via ia tomando uma cor avermelhada. O túnel tremia como se estivesse prestes a desabar a qualquer momento.
   Uma língua de fogo entrava pela parte de trás do túnel, em uma velocidade inacreditável. Era uma nuvem avermelhada e incrivelmente quente que engolia a todos que não saíam do caminho. Homens gritavam enquanto seus veículos eram sugados por aquela massa de ar quente e napalm.

-Vai! - Gritei, sem ouvir a própria voz. Eu podia sentir o veículo titubear, derrapando em vários trechos do caminho acidentado. Todos mantinham os olhos arregalados. Com exceção de Lucas, e do David. Os dois pareciam envoltos nas próprias lamentações, sem ligar para o mundo.
   Uma luz branca e tranquila estava a uns cem metros à nossa frente. Era a saída. O carro acelerava, mas o fogo era mais rápido. Tudo tremeu mais forte, a carroceria do veículo estalava como se fosse desmanchar. Poeira caiu por todos os lados. O som se tornou assutadoramente mais alto, era como o rugido de uma fera, prestes a devorar sua presa. Uma última tremedeira, uma última olhada para trás. O fogo estava a menos de vinte metros do veículo... E de repente eu não enxergava mais nada. Tudo mergulhou na mais profunda escuridão.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

História Paralela - Renan Lima

   A rua estava fria e deserta. Escuridão adentro, uma figura solitária caminhava levando nada mais que uma pá em seus braços. Tinha também uma mochila em bom estado nas costas, mas que de fato não continha nenhuma arma. Seguia por uma pista deserta, cheia de carros que ainda pegavam fogo e iluminavam a cidade enegrecida numa luz vermelha e vacilante.
   Há alguns minutos, tinha se despedido do seu melhor amigo. Deixara ele com a mãe em uma loja de roupas no centro da cidade, torcendo pelo melhor. Agora era a hora de ele próprio buscar pela sua família. Tinha quase certeza de que o seu pai sobreviveria. Porém nada sabia a respeito da mãe.
   Renan olhou para trás somente quando pensou ter ouvido um som de motor. Sorriu para si mesmo, enquanto cobria a cabeça com um capuz. “Pelo menos eles vão ficar bem” pensou ao lembrar do ônibus de evacuação que deixara seu amigo esperando. Porém essa certeza logo foi embora quando avistou zumbis saindo de diversos locais. Renan se empoleirou atrás do capô de um carro enguiçado enquanto os desmortos saíam de becos e vielas, correndo em transe na direção do som de motor. Por mais que quisesse ajudar, o rapaz nada poderia fazer. Eles estavam por conta própria.
   Um dos zumbis, porém, notou Renan enquanto passava rente ao veículo abandonado. Hipnotizado, correu na direção do jovem, sedento por sua carne. Renan manteve a calma e lembrou-se do treinamento que tivera. Por alguns segundos pareceu que não reagiria. Porém não se sabe quando, talvez no último segundo, o rapaz se moveu tão rapidamente que foi impossível acompanhá-lo com o olhar. Em um momento, o desmorto tinha conseguido colocar as mãos na camisa dele, e no outro, estava jogado com o rosto contra o asfalto. O jovem apanhou uma barra enferrujada que estava no canto e o posicionou na nuca do infectado, que se contorcia disposto a morder qualquer coisa que conseguisse. Renan usou a pá como um martelo gigante, e deu apenas uma pancada na parte de trás da barra, com a parte de madeira. O desmorto silenciou na hora.
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   O jovem rapaz caminhou solitário por uma longa distância, protegido pela escuridão. Olhou para seu relógio de pulso já quase sem bateria. Os números estavam meio apagados, porém ao que tudo indicavam, eram cerca de três horas da manhã. Abatido pelo cansaço, Renan sabia que precisava de um lugar para dormir. E aquele pequeno bar do outro lado da rua parecera ideal para isso.
   Ao se aproximar, o garoto pôde ver mais claramente o interior do ambiente, por entre tábuas de madeira sobre o vidro. O lugar parecia ter sido barricado por alguém, e sendo assim, era promessa de segurança. Por precaução, talvez, Renan decidiu não incomodar o sobrevivente que estivesse ali dentro. Olhou para a parede do lugar, com o olhar concentrado e analisou-o de um lado a outro.
   Como que decidido, Renan deu um passo na direção do estabelecimento e pegou firmemente um buraco na madeira exterior. Pôs um pé na maçaneta da porta de entrada e deu impulso. O rapaz escalou o bar, empoleirando-se nas telhas do lugar. Antes de adormecer, viu ao longe um trio de encapuzados que atravessaram a rua silenciosamente, se distanciando dele. Feliz por ainda existirem pessoas normais, ele se rendeu ao sono.
   Acordou com o sol a pino. A forte luz do dia queimava cada centímetro de seu rosto, o que o fez virar a cabeça rapidamente. Pensou por um momento em Matheus e Rosana, que naquele momento deveriam estar a salvo em algum lugar bem distante. E dormindo em camas macias, ao invés de passar a noite em um telhado de bar.
   Renan olhou mais atentamente as telhas e percebeu uma chaminé ao canto. Na escuridão da noite passada, nem tinha reparado nesse detalhe. Lembrou-se da barricada que encontrou na entrada do lugar, e na esperança de encontrar sobreviventes lá dentro. Sem pensar muito mais tempo, ele jogou sua sacola de mantimentos chaminé abaixo. E em seguida pulou ele mesmo. Mal pensado.
   A queda foi rápida e impetuosa. Renan espatifou-se em cinzas e carvão. Ficou coberto de pó preto até o último fio de cabelo. Tossia como um asmático, quando resolveu sair da lareira. De repente se via dentro de uma pequena loja, que mais parecia uma padaria. Havia um balcão ao seu lado, e logo a frente um bocado de mesinhas de madeira, para fins sociais. Ao canto um sofá vermelho enorme, acostado na parede. Uma TV estava ligada no alto. Porém uma coisa o surpreendeu ainda mais: A três passos de distância, uma mulher de uns quarenta e tantos anos encarava-o com uma expressão ainda mais assustada que a dele.
-É um deles? - Ela perguntou, dirigindo a voz para o sofá. Levantou-se dali, um senhor também de idade, com um pequeno suspiro de esforço.
-Bom... A não ser que aqueles monstros tenham aprendido a invadir abrigos no melhor estilo papai noel... É um humano. - Falou o senhor de idade, abaixando os seus óculos fundo de garrafa para analisar melhor o pequeno projeto de gente, preto como carvão. -Meu nome é Antônio. E essa é Suzana. -
-Ãnh... - Começou o garoto, mas foi impedido por um forte acesso de tosse.
-Aqui – Dizia a mulher, que trazia consigo um copo de água. -Beba isto. - Ofereceu com um sorriso.
   Renan não fez cerimônia e bebeu o líquido de uma só golada, satisfeito por ter água gelada para tomar. Imediatamente, já se sentia um pouco melhor. Levantou-se sem dificuldades e bateu nas próprias roupas, tentando em vão se livrar de toda aquela sujeira.
-Vocês não teriam um pouco de carne seca aí? - Perguntou, enquanto dava uma olhada nas prateleiras.
-Carne seca? - Repetiu o idoso, incrédulo. -Onde você acha que estamos? Num bar? -
-Com todo o respeito, senhor... Foi isso mesmo que eu achei. Onde estamos, afinal?
-Numa padaria, filho. - Esclareceu a mulher, que puxava uma cadeira para se sentar. - Não em qualquer uma, mas na melhor do bairro. Prove um de nossos pães doces! - Ofereceu, apontando para suculentos doces na vitrine do balcão. Agradecido, Renan também pegou um de bom grado. Quando iria se afastar do balcão, porém, avistou um homem no chão. Um homem uniformizado como funcionário da padaria. Tinha um enorme rombo na parte de trás da cabeça, que formara uma poça de sangue no azulejo. Percebendo o seu ar de surpresa, talvez, a mulher se adiantou a explicar a situação:
-Era um deles. - Ela disse, com olhar arrependido. - Um daqueles monstros. Ele tentou me matar e... E... -
-Eu tive que lhe arrancar os miolos. - Interrompeu o idoso, vendo que a mulher começava a irromper em lágrimas. -Mas nenhum de nós teve coragem de tirá-lo daqui porque...
-Ele é o meu filho! O meu filho! - Dito isso, Suzana correu chorosa para os fundos da padaria.
   Por alguns segundos, Antônio pareceu triste, um pouco envergonhado até. Mas essa sensação desapareceu da cabeça de Renan assim que ele puxou uma bela espingarda de dois canos por detrás do sofá avermelhado.
-Essa belezinha aqui... - Dizia orgulhoso da arma, nem sequer olhava para Renan. - É o que nos manteve vivos até agora. -
-Tinha mais alguém aqui? - Perguntou o jovem, tentando desviar o foco da conversa.
-Tinha sim. Uma garota chamada Karen.
-O que houve com ela?
-Foi embora. - Dizia Suzana, que se aproximava novamente, limpando os olhos com um lenço.
-Embora? Por quê? Aqui é tão seguro!
-Não é tão seguro quanto parece, meu jovem.
- Aliás, qual o seu nome? - Perguntou Antônio.
-Renan. Que houve com a garota?
-Ah! Nada de mais! - Dizia Suzana, pensativa. Era como se em sua mente estivesse revivendo os momentos. - Passou um homem aqui, um tal de Caio. E quis levá-la com ele. Eram dois pombinhos.
-Ficaram bem, os dois? - Perguntou Renan, agora até um pouco mais interessado no casal ousado.
-Ninguém sabe. - Respondeu o idoso. - Mas a minha sugestão é que não duraram nem dez minutos lá fora. Era um medroso, sabe? Esse Caíque...
-É Caio, seu velho caduco! - Corrigiu Suzana, enquanto gargalhava. Renan a achava corajosa simplesmente por zombar de um homem armado. Não sabia se faria o mesmo.
   O clima era bem amigável dentro da padaria. Aquelas pessoas simples não pareciam assassinas. E ao mesmo tempo, também não pareciam preocupadas em relação a tudo o que acontecia lá fora. Era uma sensação única estar naquele ambiente tranquilo.
-O exército está agindo, sabia? - Disse Suzana, enquanto aumentava o volume da TV.
   No noticiário, um repórter vestia um colete a prova de balas de cor azul. Atrás dele, soldados disparavam em todas as direções. Pessoas corriam assustadas de um lado a outro. Ao fundo, passavam helicópteros deixando mais soldados no campo de batalha. A câmera tremia.


Tropas militares foram acionadas e já começaram o cerco na cidade do Rio de Janeiro, apesar de existirem indícios de casos em outros lugares do... O que é isso?”


   Mais a frente, um grupo de pessoas encapuzadas corria na direção de um furgão preto. Carregando apenas armas brancas, os homens e mulheres pareciam deslizar pelas ruas, até o veículo. Não se viam os golpes, mas qualquer indivíduo que entrasse em seu caminho era simplesmente derrubado.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Os lobos azuis – Renan disse para si mesmo, tão baixo que nem o próprio ouviu suas palavras. No momento seguinte, tomado por uma coragem descomunal, ele começou a enfiar pães e outros alimentos dentro do seu saco imundo de suprimentos.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Renan, pelo que percebo você vai seguir viagem. - Disse Antônio, reparando nos maus modos do garoto.
-Bem... Sim. -
-Não precisa ir assim. - Disse ele. Renan não sabia se o idoso estava se referindo ao estado de seu corpo, ainda negro de cinzas e carvão ou ao fato de ele estar pegando comida dos dois sobreviventes. No final, acabou entendendo que era um pouco dos dois. -Vá tomar um banho, filho. Eu preparo a sua mala. -
-Banho? - Renan não tomava banho desde o dia anterior, e pela manhã cedo, quando se preparou para ir à escola. Desde então, todo o tipo de sujeira tinha se acumulado na sua pele e em suas roupas. Porém ele trazia na sacola um conjunto a mais, que pegara na loja onde se despediu de Matheus.
-Isso mesmo. Tem um pequeno banheiro nos fundos. Era para os funcionários mesmo. - Dizia o idoso. - Mas você pode usá-lo. -


   De fato, o banheiro era bem simples. Havia um espelho bem sujo sobre a pia, uma privada já sem tampa e o chuveiro não tinha sequer uma cortinazinha para fechar. Restou mesmo fechar a porta, que funcionava por ferrolho, e não maçaneta.
   Porém todo o pessimismo foi embora quando a água quente molhou-lhe o rosto. Esquentou agradavelmente suas costas. Naqueles dez minutos que passou se banhando, Renan sentia felicidade. Era como se nada mais pudesse abatê-lo. Ele estava renovado. Lembrou-se então do que Renato lhe falara há algum tempo. “Se qualquer coisa der errado” ele dizia, com seu ar calmo. “Todos os Lobos se reunirão em Mangaratiba.”
   Ao sair do banho, foi surpreendido por uma nova mochila. Antônio havia preparado tudo o que lhe possuía em uma mochila estudantil. Renan estava coberto da cintura para baixo em uma toalha azul marinho muito macia. Vestiu-se ainda no banheiro, antes de ir novamente até os anfitriões.
   Caminhou até lá de mochila nas costas, pronto para partir. Chegou na sala e se deparou com os dois, que aguardavam de pé entre as mesas na entrada. Antônio já havia retirado grande parte das tábuas de madeira que barricavam a porta, e já estava tudo pronto para sua saída.
-Vá com Deus, filho. Espero que consiga encontrar sua família. -
   Pela tarde, os dois haviam conversado bastante. Trocaram ideias de sobrevivência, pontos de resgate e papearam sobre todo o tipo de coisa. Renan já sabia sobre um tal Fortaleza Norte, e a Fortaleza Oeste... Sabia também de alguns grupos de sobrevivência e um tal de William também, que vivia aparecendo na TV. William Eckle Brooks.
   Feliz e surpreso, Renan viu que já havia escurecido. Seria uma viagem tranquila e fresca pela escuridão noturna. Checou visualmente sua calça jeans e olhou para o casaco preto que vestia. Vagarosamente, puxou o capuz até que lhe cobrisse o rosto em sombras.
-Mangaratiba. - Repetiu para si mesmo em um tom sombrio. - É para lá que eu vou. -