domingo, 4 de maio de 2014

Capitulo 21 - Uma -nem tão- Calma Viagem

   Estrada. De tempos em tempos, Marcos era forçado a contornar alguns veículos abandonados, o quê nos forçava a sair da pista. Uma ou duas vezes, isso significou termos que sair do próprio carro para desatolá-lo. E isso se repetiu algumas vezes. Lembro muito bem, porque meu corpo já estava dolorido antes de começar o esforço. Empurrar um carro naquele estado foi fenomenal.
    Depois umas duas horas, a situação se acalmou, e a pista limpou. É um saco não saber as horas... Juro que daria tudo para ter o meu relógio de volta.
   Após algum tempo rodando, ficava cada vez mais raro encontrar qualquer veículo na estrada. Bem clima de interiorzão mesmo. Pegamos um retorno que levava a uma rota secundária, e em alguns trechos nem asfalto tinha. A grama alta esvoaçava às margens da rua de barro. Acima de nós, um céu azul se estendia ao horizonte.
   Dentro do carro, a situação era engraçada: Michelle e David estavam do meu lado, procurando em vão por uma posição confortável. Nós havíamos ajeitado algumas coisas para que ficássemos com o espaço bem dividido. Agora o violão estava no banco de trás com Renan e Lucas, e o meu rifle estava entre os meus joelhos. Mesmo assim, alguma coisa simplesmente não nos deixava ficar a vontade ali. E eu tinha quase certeza que isso era referente as garrafas d'água mal fechadas -depois eu descobri que uma delas estava furada mesmo- que ficavam pingando em nossos colos.
Eu estava bem. Olhei para trás e encontrei Renan com o violão em seu colo. Ele tinha retirado o pano que cobria o seu braço machucado, e eu pude ver o quê tinha acontecido com ele. Para ser bem sincero, preferia não ter visto. Por todo o membro, uma coloração vermelho vivo se estendia, e em algumas partes haviam pedaços de pele que pareciam costurados ao seu corpo, grudados desarmonicamente ao seu braço. Em alguns lugares, bolhas enormes e esbranquiçadas se eriçavam ameaçadoramente da sua pele. Não parecia saudável. Ele, no entanto, não demonstrava preocupação. Seu olhar estava distante, e ele acariciava o violão. Passava suavemente os dedos pelas cordas, sentindo alguma coisa que só ele sabia o quê era.
   Desejei que eu tivesse algo a dizer. Qualquer coisa agradável e verdadeira que pudesse ser dita. Cheguei a abrir a boca uma ou duas vezes, mas nada disse. Lucas percebeu isso, e se virou à janela sorrindo ironicamente. “Não há nada de bom pra ser falado” ele parecia pensar. Me virei para a frente de novo. Certamente essa minha movimentação tinha incomodado a Michelle, com o espaço apertado, porque ela estava olhando para mim com uma cara não muito feliz. Disse um “perdão” quase inaudível, voltando o meu olhar para a janela.
   Acompanhei os pássaros voando, círculos de abutres no céu. As nuvens iam e vinham. O Sol vagarosamente atravessando o espaço aberto, até beijar o chão. E assim, com um céu de brilho alaranjado e inocente, eu vi o dia virar noite; o azul do céu tornar-se um negro puro e salpicado de estrelas. Eu não via um céu tão lindo assim havia muitos anos. Era noite, finalmente. Um perfeito céu noturno.
   Os negros contornos dos morros no horizonte eram uma visão agradável. Cheguei a me perguntar se em algum lugar daquela imensidão verde haveria um só infectado. Eu tinha certeza de quê a mata era um lugar seguro, pelo menos para eu viver sozinho... Afinal eu sabia o suficiente de técnicas de sobrevivência. Mas não estava sozinho. Eu tinha amigos, e queria mantê-los vivos... Nada de morar na floresta.
   Antes que pudesse evitar, eu me peguei pensando em João. Eu via e revia na minha cabeça o momento em que ele foi atingido por um tiro, na minha frente. Em meus pensamentos, ele caía em câmera lenta, de joelhos. Me olhava nos olhos, implorando viver. E então tombava, o rosto beijando o asfalto. “É sua culpa” Ele dizia, já deitado. A sua voz ecoava mais alto do que eu queria que o fizesse. Eu era forçado a ouvir as mesmas palavras infinitas vezes, e vê-lo caindo infinitas vezes. De repente ele não era mais ele, e sim a minha mãe. Minha mãe. O cabelo molhado em sangue, os olhos lacrimejados. O quão decepcionada ela estaria comigo, naquele momento...
   Limpei uma lágrima, com as costas da mão. Torci para que ninguém tivesse visto aquele momento de fraqueza, me odiando por tê-lo vivido outra vez. Nos últimos dias, isso tinha acontecido com frequência. Tentando desesperadamente me salvar da própria imaginação, eu comecei a olhar em volta, procurando qualquer coisa que me despertasse a atenção, que me deixasse preocupado ou algo assim. Para minha infelicidade, eu encontrei.
   À nossa frente, nada além de mato. A estrada se estendia infinitamente rumo ao horizonte. Atrás de nós, a cena era quase a mesma, exceto que não se via muito longe, porque tínhamos acabado de descer uma pequena elevação do terreno. E no meio de toda essa solidão, nosso carro corria sozinho. A luz de reserva da gasolina estava acesa.

-Irmão – Chamei por Marcos, que se virou com um grunhido interrogativo. - Tá acabando a gasolina- Eu disse enquanto apontava para o painel. Ele observou e concordou com a cabeça.

-É... Já tá acesa faz um tempo. Por isso eu tô andando devagar. - Ele respondeu simplesmente. Eu admirava a capacidade que ele tinha de manter a calma, nessas situações. Me parecia óbvio que não chegaríamos nem perto da cidade.

-Pelos meus cálculos, vamos parar a uns setenta quilômetros de Mangaratiba. - Disse Amanda, segurando o mapa.

-Quê cálculos? - Eu perguntei. Mas ninguém deu a mínima para a minha pergunta.

-Isso dá mais do quê meio dia de caminhada. -Disse Renan. -Quero dizer, sem peso extra. - Essa última parte foi seguida de um olhar significativo para o violão em seu colo. Já eu, olhei para o rifle que eu tinha seguro entre as pernas.

-Na melhor das hipóteses, seria um dia inteiro. - Eu disse. - Mas nós vamos ter que parar para descansar, passar a noite.

-Dois dias e meio, então. - Sugeriu David. - É um tempo aceitável. - Enquanto ele dizia, eu e Renan concordamos com a cabeça, satisfeitos. Dois dias e meio significava que não precisaríamos manter marcha forçada, mas sim uma jornada realmente descansada e tranquila. Afinal, quem estava com pressa?

-Ei, ei – Dizia Andrei. - Não se afobem, vocês. Cês ainda não sabem o quanto eu posso andar com essa belezinha. – ele dava palmadinhas no volante – Meu pai sempre disse que é possível dar uma volta ao mundo... com meio tanque! -

E nesse exato momento, o motor engasgou. Ele tossiu, ronronou, fez todos os barulhos que um motor pode fazer. E então, simplesmente, morreu. Todos em silêncio, o carro andou por mais alguns metros, já sem fazer mais esforço algum. E então parou.

-Mundo pequeno, o do seu pai. - Disse David, simplesmente. Confesso que abafei uma pequena risada, olhando pela janela. E o silêncio engoliu a todos nós.
[…]
   A noite era fria e serena. O céu do interior era completamente estrelado, de forma que chegava a iluminar um pouco as coisas. Porém, sem a luz confiável do Sol, decidimos passar a noite naquele mesmo lugar. Nos ajeitamos da melhor maneira que podíamos, o quê não foi muito. A brisa gelada do sereno penetrava por entre os vidros do carro, nossas respirações embaçando as janelas. Meus olhos não fechavam por muito tempo. Quando não eram os pesadelos ou a dor no pescoço, eu tinha um terrível sentimento de que tinha um maníaco sedento de sangue estaria pronto para me pegar, o outro lado da janela. E então foi isso. Assim se passaram longas horas. A pior noite da minha vida.
Vi o Sol aparecer no horizonte, com profundas olheiras no rosto. O ar ainda era frio. Tão frio que as minhas mãos doíam. Não me lembro de ter passado tanto desconforto na minha vida. O nariz escorria, por causa do mau tempo. E meu pescoço doía também... A posição que escolhi para passar a noite parecia que iria condenar o meu dia inteiro.
   Diferente de mim, os outros pareciam estar dormindo profundamente. Até mesmo Renan. Apesar de as condições não serem tão favoráveis ao sono, o frio era. Eu próprio estava com muito sono, mas não consegui dormir. E assim, depois de algumas horas sozinho com meu próprio silêncio, vi o pessoal acordando em volta de mim. Amanda se virou para mim e deu uma piscadela encorajadora. Dei ali um dos meus raros sorrisos.
   Se passaram algumas horas de procrastinação ainda dentro do carro. Conversamos, todos ainda lentos de sono. Vozes roucas e preguiçosas. O frio aos poucos passou, e o dia prometia esquentar até demais. Saímos do carro e arrumamos tudo. Eu improvisei, com a camiseta do Renan, uma bolsa para as garrafas de água. O violão ficaria para trás. O carro ficaria para trás. Muitas coisas também ficariam.
   Decidimos por unanimidade que carregaríamos as duas armas conosco. E quem diria? Ninguém as queria carregar. Parecia que isso ia de novo caber a mim e ao Renan. E aconteceria isso mesmo se o Marcos não se oferecesse para carregar uma delas. É claro, a do Renan. Afinal, ele estava machucado. Então foi isso, os filhos da mãe realmente me deixaram carregando um rifle pesado pra caralho pela estrada infinita. Eu não reclamei tanto quanto o meu pescoço.
Partimos.
[…]
   Haviam se passado algumas horas de caminhada. Estávamos subindo uma pequena inclinação na estrada. Já era a terceira ou quarta vez que fazíamos algo parecido. Além do pescoço, meus ombros doíam. E as minhas costas. Chegamos ao topo do morrinho felizes por ver a cidade já no horizonte. Os prédios só nos apareciam como manchinhas brancas longes pra caramba, mas estavam lá. E entre nós e a cidade, uma estrada longa e reta na maior parte.
   A má notícia eram os carros. Havia carros. Bastante deles, na verdade. Como enfrentamos no dia anterior, havia um congestionamento de carros abandonados. Dessa vez, dava pra ver alguns infectados caminhando entre eles, também.

-Fodeu. - Disse alguém. Poderia ser qualquer um dizendo. Talvez tenha sido eu. Quem sabe?

-Precisamos de um plano.

-Nós precisamos – Respondia Marcos – Descansar. -


sábado, 28 de julho de 2012

Capitulo 20 - Nenhum lugar é seguro


Devia ser mais ou menos meio dia, e o sol ardia miseravelmente. Tudo o quê restara da fogueira eram algumas cinzas em brasa, que o vento soprava soltando uns pedacinhos de fuligem com ele. David e Michele voltaram a tempo de se deliciarem com a carne do esquilo que Renan tinha preparado. Ninguém comeu muito -e não foi por falta de fome-, não era como estar completamente saciado. Mas era bom sentir algo forrando o estômago, pelo menos, depois de quase um dia inteiro de jejum. O quê eu não daria por um verdadeiro banquete de natal.

-Onde vocês estavam? - Perguntou Amanda, com uma expressão preocupada. David e Michele tinham manchas de sangue nas roupas, mas nenhuma marca de ferimento ou mordidas.

-Não muito longe, estávamos subindo a estrada. - Respondeu Michele, enquanto passava a mão por suas mechas vermelhas.

-Sejamos mais diretos então... - Começou Renan, que tinha se levantado e agora passava caminhando lentamente por eles. Tinha um tom de voz interessado, mas que se mantinha calmo e firme. -O que vocês estavam fazendo? - Dessa vez, antes de responderem, eles se entreolharam sorrindo.

-Estávamos caçando. -Eles responderam em coro. Renan me olhou com uma expressão interrogativa. Eu dei de ombros, com um pequeno sorriso surgindo no canto da boca. Tinha certeza que Renan também achava graça naquilo.

-Caçando zumbis. - Completou David, com um sorriso bem aberto.

-Vocês estão loucos?! - Se aproximava Marcos, limpando as mãos sujas de graxa, em um pano não tão limpo. Parecia um daqueles mecânicos de borracharia. -Vocês ameaçaram a nossa segurança! Não podemos simplesmente nos separar para cada um fazer o que quer! -

-Nós não fizemos barulho! - Respondeu Michele. Marcos a olhou seriamente, e então se virou para Renan, que apesar de ser mais novo do que ele, já era quase considerado como um dos líderes do grupo.

-Algum de vocês podia ter se ferido, ou coisa pior. O que você acha, Renan? -

-Eu acho... - Começou ele, num tom calmo como sempre. -Que da próxima vez que forem se divertir, é melhor me chamarem também. Estou começando a ficar entendiado aqui. - Rindo, o Renan me deu um leve tapa nas costas, me convidando para sair dali. Michele e David sorriram aliviados, enquanto iam para o outro lado do acampamento. Marcos ficou parado ali, frustrado. Era como se ninguém entendesse o que estava fazendo. Será que somente ele entendia os prejuízos dessas ações idiotas?

-Acho que você deixou alguém irritado. - Eu disse, olhando sobre o ombro para Marcos enquanto nós dois nos afastávamos. Renan estava em minha frente, pegando o fuzil M16 do chão. Olhou para mim sorrindo e me entregou o meu rifle.

-Ele tem que aprender a se divertir. Aliás, você também. - Disse ele, e começou a caminhar estrada abaixo.
-Onde vamos? - Perguntei ainda checando a munição e as travas de segurança de minha arma.
-Vamos atrás do Lucas. - Respondeu ele simplesmente. -De preferência antes que ele se mate. - Acrescentou com um sorriso irônico.

Demos alguns passos por entre os veículos abandonados, olhando para dentro deles em busca de alguma coisa, ou alguém. Tudo parecia morto, o lugar estava abandonado até mesmo pelos desmortos, que agora pareciam estar pegando o hábito de andarem juntos.
Em minha frente, Renan foi aos poucos diminuindo a velocidade de seus passos, até parar por completo. Tinha o olhar perdido, como se tivesse algo que ele queria dizer. Ele olhou para mim e respirou profundamente, seu rosto estava tenso, demonstrava um misto de hesitação e excitação.

-Os Lobos querem você de volta no grupo. - Disse simplesmente. Me mantive calado por alguns instantes, apenas absorvendo a mensagem.

-O quê?!

-Eu disse a eles que você reagiria assim, mas não foi minha ordem. Eu passei em Mangaratiba. - Enquanto ele falava, lembrei que eu também havia passado por lá, e visto alguns Lobos na cidade. Estava abrindo a boca para falar quando ele me interrompeu com um gesto.

  • Sim, eu sei. - Disse ele. - Passei lá na mesma época que você, antes que pergunte quando foi. Você me viu, e aliás, atirou em mim também. - Renan pausou o discurso para rir.

A princípio eu estranhei o que ele falou, mas então me veio a memória a imagem de um vulto que aparecera no beco, e com um só tiro derrubara o soldado a meu lado. Aquele era Renan, esse tempo todo.
Eu balançava a cabeça de um lado para o outro, sorrindo sarcasticamente para mim mesmo. Eles tinham lembrado de mim, finalmente.

-Não importa. Eu estou fora, foi o que disse a eles da última vez.

-Da última vez... - Dizia Renan, calmamente. -As pessoas não andavam pelas ruas tentando matar umas as outras. E aliás, pessoas como nós nunca mudam. Você aceite isso ou não. -

-Eu mudei. - Respondi em voz alta, de cabeça baixa. Renan me olhou com uma expressão imparcial e então sorriu desviando o olhar.

Meu amigo me deixou ali, olhando para o chão, enquanto ele pegou sua arma e se afastou pelo caminho que estávamos seguindo. Perdido em meus próprios pensamentos, eu percebi que não adiantaria em nada pensar naquilo agora.
Começamos então a descer a estrada, com um passo acelerado. O Sol desaparecia e aparecia novamente, por trás das nuvens. O dia nublado clareava tudo com uma angustiante luz esbranquiçada.
Enquanto caminhávamos, eu avistei o que parecia ser um vulto humano caminhando por entre os carros, a cerca de duzentos metros a nossa frente. Fiz sinal para que Renan parasse de andar e olhei pela luneta do rifle de longa distância.
Meu amigo tomou cobertura atrás de uma motocicleta caída. Um olhar tenso que me encarava esperando por alguma informação. Olhei pela lente e vi, ao longe, a confirmação da ameaça. Era um militar... Infectado. Mancava lentamente em nossa direção. Iríamos nos encontrar com ele em alguns minutos.
-É um deles. - Falei para Renan, que não tinha a visão do que estava acontecendo ainda.
-Não atire. - Ele respondeu. - Vamos matá-lo silenciosamente, e seguir caminho. - Dito isso, ele recomeçou a caminhar em direção ao lugar apontado como o que Lucas estaria. Ainda parado, eu observava o desmorto. Por trás dele, sutilmente, outro saiu por trás de um carro. Passei a mira para eles, instintivamente, e avistei mais alguns que vinham pela esquerda da pista. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, já eram dezenas deles dentro da minha visão, e mais continuavam a chegar.
-Para! - Sussurrei para Renan, em um tom de urgência. Ele olhou para trás e eu apontei para a estrada. Uma grande massa sem forma se deslocava pelo asfalto em nossa direção, caminhando lentamente.
-Não temos como passar. - Falei, ainda focado na mira. A cada segundo, apareciam mais se deslocando em nossa direção. Em algum lugar atrás deles, ou ainda entre os zumbis e nós, Lucas estava a poucos momentos de uma morte horrível.
Renan me encarava, sem dizer nada. Como era de seu costume, às vezes ele simplesmente decidia sentar e observar o que eu faria em seguida. Se eu estivesse tentando mostrar que ainda estava calmo, seria um desastre total. Minha respiração ficou pesada, a mira tremia como se tivesse sido jogada dentro de um liquidificador ligado, e eu começava a suar frio.
Retirei o pente e o recoloquei na arma apenas para chegar as munições. Puxei o ferrolho lateral e fiz a mira nos desmortos, que pareciam brotar de lugares cada vez mais próximos. O som do mecanismo da arma me acalmou instantaneamente. Ainda não tinha sequer destravado o rifle quando senti uma mão rígida e gélida me segurando pelo ombro. Meu coração gelou.

-Eles são muitos. - Disse uma voz familiar atrás de mim. Lucas estava de pé, segurando um violão negro e brilhante em uma mão, e com a outra sobre o meu ombro, em uma postura tranquilizadora. -Precisamos sair daqui antes que eles nos percebam. Com um grupo desse tamanho, estaremos todos mortos antes mesmo que a nossa munição acabe. -
Renan olhou para mim e assentiu com a cabeça, como sempre silencioso. Sua M16 encostada ao peito, parecia presa diretamente em seu coração. Lembrei, nesse momento, de alguns meses atrás, quando Renan se agarrava à sua faca sempre que estava nervoso em alguma missão.
-Quanto tempo, Matheus? - Perguntou ele. Fazia tempo que ninguém me perguntava algo assim. Logo apareceu em minha mente a imagem de um treino de Análise e Previsão, um dos exercícios mais comuns dos que tínhamos que enfrentar. Analisei pela luneta a velocidade de aproximação dos agressores, o percurso até nós e também algumas tantas variáveis mínimas que acabariam por fazer a diferença.
-Entre dois e três minutos. - Respondi, abaixando a arma. -Avise a todos que eu quero todos prontos pra partir daqui em trinta segundos. - Disse para Lucas, enquanto pendurava a arma em meus ombros pela bandoleira.
-Renan, eu e você...
-Eu sei. - Ele cortou a minha fala, um sorriso se espalhando por seu rosto. - Nós vamos atrasar eles.

-Não dessa vez. - Respondi, percebendo que tinha acabado com a felicidade de meu amigo. -A gente precisa montar um perímetro em volta do acampamento enquanto eles arrumam as coisas. Podem ter mais desses monstros por perto. Algum que a gente não tenha visto. -
Ele me olhou por alguns segundos, assimilando o que eu tinha falado. Renan devia estar pensando que veríamos outros desmortos antes, se existissem mais por perto. Porém, para minha felicidade, ele logo compreendeu a situação. Destravou sua M16 e correu na direção de Lucas, que tinha saído dali há alguns instantes.
Ouvi os seus passos se afastando por detrás dos carros destruídos e fumaça. Voltei meu olhar para a multidão que marchava lentamente ao nosso encontro. Vacilante, dei alguns passos para trás sem desviar o olhar daquela horda de canibais. Eu precisava encontrar um lugar elevado para me posicionar e vasculhar o perímetro. Alguns metros a minha direita, havia um caminhão pipa deitado de lado no asfalto. Havia o risco de ele estar vazando gasolina ou qualquer coisa, mas se fosse para explodir, já teria explodido. Pelo menos foi assim que eu pensei ao subir nele, escalando a parte do motorista.
Tomei posição no meio do vagão de carga e girei trezentos e sessenta graus lentamente com a arma em riste, enquanto procurava por hostis. Nada além de carros abandonados e sujeira de pessoas que pareciam ter saído às pressas de seus veículos.
-Limpo! - Ouvi Renan gritar ao longe. Acenei com a cabeça para mim mesmo, contente por realmente termos o tempo necessário para fugir dali sem nenhuma baixa.
-Limpo! - Respondi da minha posição.
Travei e abaixei a arma, respirando profundamente. Em seguida levantei e dei mais uma olhada em volta, de pé ainda sobre o caminhão. Com tudo realmente deserto, desci com um só pulo e rumei o acampamento.
Michele estava fazendo ligação direta em uma minivan enquanto o resto do pessoal se apressava a colocar as coisas que traziam consigo para dentro do veículo. Marcos, por outro lado, tinha pego o violão de Lucas, e estava sentado com ele sobre um toco de árvore, aparentemente o afinando. Imaginei se ele realmente tocava violão, porque seria a terceira pessoa naquele grupo. Renan era um guitarrista nato, que tinha aulas a quase dois anos. E eu tinha começado a aprender violão sozinho quando tudo começou.
Fui acordado do meu devaneio repentino quando ouvi o motor da minivan ligar, fazendo um barulho alto e não muito agradável.

-Consegui! - Exclamou Michele animada enquanto pulava o banco de trás. Marcos tirou o violão do peito e o colocou no banco de trás, com os demais, enquanto ele subia para o do motorista.

-Renan, partindo em dez segundos! - Gritei para meu amigo, que estava do outro lado do veículo ainda checando os arredores.

Ouvi uma porta se abrir e presumi que ele tinha entrado. Subi então na minivan e percebi o quão apertada ela era, de fato. Nós nos espremíamos ali dentro, sem contar com as coisas esquisitas sobre nossos colos. Garrafas de água soltas, um rifle de longo alcance, um violão, algumas baterias e também um rádio.
Eu começava a ver os zumbis surgindo por detrás de alguns carros a distância quando Marcos tirou a minivan dali, dirigindo com cautela pela estrada amarrotada de carros abandonados. Os infectados se tornaram cada vez mais pequenos pela janela de trás, até que então desapareceram de vez. Andrei agora tinha um cigarro apagado em sua boca. Pelo visto, tinha perdido o outro isqueiro que achara, porque apalpava seus bolsos em vão.

-Merda. Essas coisinhas somem mais do que qualquer coisa! -
-Não mais do que palhetas – Disse Renan rapidamente, e um sorriso surgiu no rosto de Marcos e no meu. De alguma forma, elas realmente desapareciam de vista na primeira oportunidade que tinham.

-Pessoal, a gente pelo menos tem um lugar pra ir? - Perguntou Lucas, da parte de trás da minivan, onde ele estava com Renan e Amanda.
-É verdade, não dá pra ficar andando por aí sem rumo. - Disse Michele, sentada ao meu lado. Tinha a cabeça apoiada no ombro de David, que acariciava sua mão.

Senti o olhar de Renan em mim mesmo sem olhar para ele. Eu tinha certeza que ele esperava uma resposta minha, e sorri para mim mesmo. Talvez, fosse realmente a coisa mais esperta a se fazer agora.

-Mangaratiba. Eu soube de um grupo de resistência lá. -

-Isso não é o que eu vi quando estivemos lá da primeira vez. - Respondeu Marcos.

-Você está falando dos encapuzados? - Perguntou Amanda.

-Como sabe deles?

-Eu estava lá antes de vocês chegarem, esqueceu? Eles me ajudaram a encontrar vocês. Disseram que não queriam estranhos com eles. O que te faz pensar que mudaram de ideia?

As últimas palavras de Amanda ressoaram em minha mente por alguns segundos. Mas na verdade, tudo era claro, as respostas estavam na minha cabeça. Eu só não sabia se deveria ou não falar. Mas Renan, para variar, não pensou duas vezes antes de falar o que pensava.

-Não somos estranhos. -

Sorri para mim mesmo, antes de perceber que todos nos olhavam com cara de curiosidade. Renan não parecia muito disposto a dar explicações, e tampouco estava eu. Aos poucos, a atenção foi se dispersando, e milagrosamente, Marcos achou seu isqueiro. Agora quem tinha um ar mais calmo e leve era ele, que tinham abaixado seu vidro e já soltava algumas baforadas de fumaça para fora.

-É, pessoal. Parece que temos um destino.-

domingo, 22 de abril de 2012

Capitulo 19 - A última música


   O dia amanheceu nublado, mas com uma temperatura agradável. Eu estava sentado sobre o capô enferrujado de um velho Chevette branco. Em minhas mãos, um rifle de longa distância. Apertei o botão na lateral do longo rifle e o cartucho caiu. Segurei-o com a já pronta mão esquerda e olhei as balas douradas calibre 50. Ao ver os projéteis reluzindo à luz do sol, ainda repousados em seus devidos lugares, senti a fraqueza do meu corpo, ao imaginar uma daquelas balas passando por meu estômago. Com um clique, recoloquei o pente na arma, puxando em seguida o ferrolho em sua lateral. Uma das balas deslizou para dentro do cano, pronta para ser disparada. Retirei-a manualmente do fio, e pela centésima vez, comecei a repetir o processo. O olhar vagando entre o mecanismo e o horizonte da paisagem. De onde uma fumaça negra se erguia em enormes filetes escuros no céu esbranquiçado.
   O rifle, que eu carregava comigo desde que saímos de uma das torres da base militar e médica agora destruída, era de um modelo desconhecido. “É um Barret” tinha dito Renan há alguns minutos, quando passara por mim com alguns esquilos mortos por ele. Todavia, eu ainda não acreditava, porque apesar do calibre, era uma arma relativamente leve em comparação a sugestão do meu amigo.
   Ouvi ainda distraído alguns tiros abafados pela distância. Mais pareciam estalos de um objeto qualquer. Era como estar ao lado de uma zona de guerra. Mas aquilo era normal, com o passar do tempo, apenas se tornava mais raro. Agora tinham menos pessoas ainda vivas para atirar.

-Matheus, dá uma ajuda aqui com a fogueira – Falou a Amanda, passando por mim com alguns gravetos. Marcos e Lucas tinham dado uma volta a pé pelas redondezas, procurando por qualquer coisa útil na estrada. Michele e David haviam sumido há algum tempo, mas nada indicava que não estivessem bem. Aliás, deviam estar se divertindo...
   Como o tempo mostrou, eu era uma das poucas pessoas que não fazia nada além de olhar em volta e pensar na própria vida. Eu era um inútil, mas as pessoas pareciam não perceber isso. Desci do capô e andei atrás de Amanda. Deixei a poderosa arma ao lado da M16 do meu amigo, as duas inclinadas apoiadas em um pequeno toco de madeira.

-Espero que o que aconteceu ontem não mude nada entre nós. - Disse Amanda de repente.
-Ãnh... Mudar o quê? A gente não se conhece há muito tempo...
-Você não entendeu! - Cortou ela. - O que eu estou dizendo é que não vou parar de correr pela minha vida se você ficar para trás ou algo assim. Não vou por minha própria segurança em risco só porque eu gosto de você, e espero que aja assim também. - Finalizou, me olhando fixamente.
-Então você gosta de mim? - Perguntei descontraído.
-Não é esse o ponto! - Disse ela, sorrindo. Me deu um tapa no ombro, sem muita força, e nos beijamos mais uma vez. Não demorou muito para que esquecêssemos daquele assunto.
Fazer uma fogueira, sinceramente, era bem mais difícil do que parecia. Depois de umas vinte tentativas frustradas e inúmeros pequenos cortes nas mãos, foi animador quando vimos Marcos se aproximar com um isqueiro.

- Dá uma angústia, sabem? - Disse ele, enquanto entregava o acendedor para Amanda. - Saber que o meu querido Zippo está em algum lugar daqueles escombros... - Falava tristemente, enquanto olhava sobre o ombro para a nuvem negra de fumaça que se erguia atrás do morro.
-Quem é Zippo? - Sussurrou Amanda, como se tivesse perdido alguma coisa importante.
-O isqueiro dele. - Respondi, com um sorriso. -Cadê o Lucas? Achei que ele estava com você. -
-Ah... - Marcos retornava ao mundo real. - Bom, o caro Lucas encontrou um violão. E está brincando com ele na estrada, a uns oitocentos metros a frente. Eu disse para ele que não era seguro tocar por aqui.-
-Um violão? - Perguntamos em coro eu e Amanda. Não sei porque exatamente, mas aquilo me deixara animado.
   Olhei na direção indicada, mas tudo o que eu via eram carros abandonados e grosseiramente deixados para trás. Em alguns lugares, pequenos focos de incêndio erguiam nuvens de fumaça que impediam ainda mais a visão.
   Senti o cheiro do esquilo começando a assar na fogueira, e Renan nos olhava do outro lado da fogueira, largado no chão confortavelmente. Seu braço ainda coberto por uma camiseta e pendurado no seu pescoço como num gesso. Sem camisa, ele tinha o olhar perdido, que voava da cidade no horizonte para as nuvens esbranquiçadas que se moviam preguiçosamente pelo céu.
Caminhei até ele deixando Marcos conversando com a Amanda sobre o que ele e Lucas tinham conseguido no passeio. Renan notou minha aproximação desde o primeiro passo, eu tinha certeza, mas seu olhar não se desviou nem por um instante.
-O que foi? - Perguntou ele sem olhar para mim. Eu me agachei, meio que sentando nos meus próprios calcanhares para olhá-lo no mesmo nível. Seu olhar se moveu lentamente até encontrar o meu.

-O que houve? - Perguntei, com uma expressão neutra. Há algumas horas, eu percebia que tinha algo errado com o meu amigo. Algo que o perturbava.

-Sinceramente... - Seus olhos negros focaram em mim, sem emoção aparente. - O meu braço. Ele está fodido, cara.

Desviei o olhar por um instante. Nunca antes eu tinha visto o Renan admitir uma fraqueza, nem sequer chegar perto disso. Mas agora... Ele falava como se estivesse derrotado, completamente inutilizado pela sua ferida no braço.

-Uma vez... - Comecei eu, lembrando de um tempo que agora parecia distante. De um tempo onde crianças corriam pelas ruas e jogavam bola sem medo de fazer barulhos ou qualquer tipo de desconfiança. -Você me disse que nunca podemos ficar para baixo. Porque o mundo nos derrota ainda mais ou algo assim. - Eu falei com toda a convicção, da forma mais profunda que pude. Renan, apesar disso, apenas riu por alguns segundos, antes de falar alguma coisa.

-Nem pra lembrar do que eu falei, cara? - Ele parou novamente para soltar uma breve risada. - Eu disse: “Para te derrubarem, terão que te matar primeiro. Para te matar, terão que matar seus amigos primeiro. E para matar nossos amigos, é melhor tentarem com no mínimo cinco exércitos.”

Por um momento eu refleti sobre as palavras ditas. Agora, não parecia haver sentido falar tal coisa em tempos tão comuns.

-E pra que você falou isso, mesmo? - Perguntei

-Ah, sei lá. - Disse Renan com o olhar perdido novamente. Mas dessa vez, havia um quê de felicidade em sua expressão. - Acho que você tinha brigado com o namorado de uma daquelas garotas que gostavam da gente. -

Novamente rimos, gostosamente. Por aquele curto momento, tudo era tranquilo. Naquele breve instante, pudemos esquecer que todas aquelas pessoas de quem falávamos estavam mortas, que Luís morreu ao tentar seguir nossos passos, e João pelo mesmo motivo. Esquecemo-nos por alguns segundos que Michele e David estavam desaparecidos, e o Lucas, afinal, ninguém sabia onde estava.


   Uma melodia agradável soava não muito longe. De forma lenta e continua, um grupo incontável de infectados marchava em sua direção. Os acordes doces e suaves da música não faziam diferença para a audição já prejudicada dos desmortos. Grunhiam cambaleavam enquanto continuam a caminhar pelo asfalto do dia quente. Com queimaduras por todo o corpo, soldados e civis mordidos se aproximavam cada vez mais do pequeno grupo na estrada. Alguns metros a frente, um jovem tocava violão despreocupadamente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

História Paralela# - Parte 2: Renan Lima

   Pela parede exterior, se viu uma grande mancha de sangue ao lado da entrada. Naquele condominio de casas seguro, as moradias não tinham muros, e o quintal era aberto. As portas de entrada feitas de vidro deixavam o lugar ainda mais bonito e charmoso ao olhar de visitantes ou futuros compradores dos imóveis.
   O som do silêncio era uma tortura. A porta de vidro da entrada tinha sido completamente destruída. A cortina branca esvoaçava ao ritmo do vento. Renan caminhava apreensivo, ouvia somente o estalar dos cacos de vidro que se partiam sob seus passos. A sua volta, uma cena de desespero adormecida. Ele sabia que algo havia acontecido ali, mas agora, não fazia diferença.
   Andando de forma lenta e continua, ele adentrou sua casa. Não havia sinal de seus pais, em lugar nenhum. Não haviam bilhetes, mas também não existiam corpos ali. Sua família simplesmente desapareceu em meio ao caos.
   Por todos os lugares, estavam roupas largadas dobradas ou não. Porta-retratos sem suas fotos, talheres pelo chão. O ventilador de teto continuava ligado, agitando levemente os tecidos espalhados.
   Subiu pelas escadas, hesitante. Prendia a respiração para poder ouvir melhor qualquer coisa, o que acabou por mergulhá-lo num silêncio ainda mais profundo e desesperador. Com nada em mãos, o jovem não esperava encontrar nenhum infectado em sua casa. Aliás, rezava para não achar. Seria pelo menos um bom sinal em meio a tudo aquilo.
   Adentrou o seu quarto, e se deparou com uma cena inacreditável. Era um lugar normal. A cama bagunçada, com sua guitarra em cima... Todo o caos parecia não ter chegado até lá. Sentou-se, ainda em silêncio e pôs a cabeça entre as mãos.
   Por um momento, pensou que todos estivessem mortos. Mas então percebeu que não haviam corpos na casa, e nem infectados por perto. De fato, quando caminhou pelo seu condominio, tudo parecia estranhamente abandonado. Mas outra coisa era interessante: As fotos da casa... Sumiram.

“Saqueadores não teriam levado as fotos” Renan pensou consigo mesmo.

   Levantou-se hesitante da cama. Havia abandonado Matheus por nada. Deixou de ir para a evacuação por uma esperança falsa. Agora estaria condenado por isso. Ainda atordoado, ligou a televisão no canal de noticias.
   Na tela, um âncora americano falava por trás da mesa. Renan, que tinha um inglês fluente, conseguia entender sem dificuldade tudo o que o homem falava.

No Brasil, a infecção tomou proporções inimagináveis. William E. Brooks disse em sua coletiva mais cedo que deu por encerradas as operações de evacuação das cidades afetadas. Em Nova York, uma ameaça ainda não confirmada fez com que um prédio fosse posto em estado de quarentena...

   A cena saiu do estúdio para uma imagem de helicóptero de um prédio aparentemente comum, completamente cercado pela polícia. Era noite, e as sirenes do chão iluminavam praticamente toda a cena. Enquanto o helicóptero de noticias sobrevoava a cena, era possível ver outras luzes pelo céu. De repente, um tiro. Abalado pelo susto, a câmera tremeu por alguns instantes, como que desfocalizada.
   Renan desligou a TV e pôs o controle remoto sobre uma das prateleiras de seu quarto. Pensou em montar abrigo em sua própria casa, mas logo percebeu que não seria uma boa ideia. Percebera alguns instantes atrás que a água fora cortada, e os suprimentos do lugar davam para poucos dias.
   Caminhou de volta à sala. Em cima da estante, um porta-retratos estava virado para baixo. Renan pegou-o com cuidado e viu, contente, uma foto de sua família. Apesar da rachadura no canto superior direito, pôde ver no rosto de sua mãe, o motivo de ele estar ali.
   À esquerda, sua mãe, Clara, sorria alegremente para a câmera. Renan estava ao centro, com um largo sorriso, que deixava seus olhos quase fechados. No canto da direita, seu pai olhava para outro lugar que não a câmera, e tinha um sorriso bem discreto, quase imperceptível. O rosto paterno era também familiar por outros motivos. Por sorte, Renan havia sido criado por Renato. Um dos poucos privilegiados que podia recrutar jovens para os Lobos Azuis.
   Surpreso, Renan viu cair por entre a moldura um pedaço de papel dobrado. O pequeno objeto caiu graciosamente, deslizando no ar de um lado para o outro. O olhar incrédulo de Renan o acompanhando. Sem ousar desviar o olhar, ele se agachou para pegar o papelzinho.
   Em seu verso, viu por entre as marcas da dobradura a caligrafia fina e delicada de sua mãe, porém escrita sem muito capricho, atravessando linhas e comendo letras. Foi tomado instantaneamente por uma onda de felicidade, e sentiu novamente um sorriso tomar-lhe o rosto. Sem tempo a perder, começou a ler o bilhete.

Renan,
Se você está lendo isso, é porque a essa altura nós já partimos. Os amigos do seu pai confirmaram que Mangaratiba é seguro. Não há nenhuma dessas criaturas por lá. Beijos de sua mãe,
Clara”

   A mensagem era curta e direta. Renan leu o trecho “Mangaratiba é seguro” repetidas vezes, sem acreditar no que estava vendo. Então ele estava certo, era para lá que deveria ir. No fim, sua vinda até a casa dos pais não foi uma total perda de tempo. Renan pegou de seu quarto um taco de beisebol pequeno e compacto, que causava um grande estrago. Que perguntassem a Matheus, que já fora tantas vezes agredido com ele, no meio das brincadeiras violentas dos amigos.
   Água e comida, como sempre, foram procurados e estocados. No final, Renan saía de casa com mais coisas do que imaginava, além de estar seguro de que agora tudo ficaria bem. Saiu pela porta de vidro e observou mais uma vez, o veículo estacionado em frente a sua casa. Uma moto de cor azul metálica: A Kawasaki Ninja de um dos vizinhos. Renan não demorou para achar dentro da casa do Seu Antônio a chave do veículo que ele não mais utilizaria. Quando Renan entrou em sua casa, tudo o que o vizinho queria era um pedaço da sua carne. Mas com seu perfil característico, o garoto nem passou perto de ser mordido. Seu Antônio acabou no chão da sua sala de estar, morto de verdade, com uma chave de fenda enfiada em um dos olhos.
   Mas agora isso era passado. O futuro estava na moto, e em Mangaratiba. Um lugar normal, cheio de Lobos. Se desse sorte, talvez o ônibus de evacuação tivesse ido para lá. E Matheus estivesse ao lado de seu pai, Renato, perguntando onde estaria seu amigo. Não fazia diferença. Breve, Renan estaria lá também.










Para mais informações sobre o caso em Nova York: www.livrodezumbis.blogspot.com

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Capitulo 18 - Novas emoções

   Silêncio. Com a visão turva, eu enxergava nada além de uma enegrecida fumaça esvoaçar para todas as direções. Um véu negro de fuligem e cinzas me impediam de ver o azul do céu logo acima de mim. Luzes vacilantes de chamas iluminavam os escombros, deixando tudo com uma aparência avermelhada.
   A poeira tinha tomado conta de tudo, vultos enegrecidos vagavam de um lado ao outro, por entre grandes pedaços de concreto e carros revirados. Eu ouvia vozes distantes e vazias, e um zumbido forte ainda ecoava na minha cabeça. Tossia desenfreado, engasgado com a poeira que adentrava-me os pulmões.
   Meu corpo todo doía, e havia escoriações pelas minhas costas e braços. Eu sabia que em dado momento, eu tinha caído do carro que ainda corria. Meus amigos... Eu não tinha ideia de onde estavam. Lembrava apenas de ver Marcos deslizando para longe, rolando pelo asfalto, quando pulou para fora do veículo.
   Sem saber onde estava, esfreguei os meus olhos com as costas das mãos. Foi tudo em que eu consegui pensar naquele momento. Enxerguei com certa dificuldade, Marcos rastejando dentre os escombros. Minha visão hesitava, ficando turva e melhorando alternadamente. Ele estendia a mão para frente, sem nada no campo de visão.
   Apoiei os braços em uma estrutura metálica e me levantei, soltando um grunhido de esforço. Percebi que estava mancando inconscientemente, enquanto tentava andar até Marcos. Era a única pessoa conhecida que eu avistava. Ao meu redor, eu via de tudo: Carros prensados contra rochas, veículos presos debaixo de escombros, corpos dependurados nas estruturas. Pessoas gemiam e gritavam enquanto tentavam salvar suas vidas.
   Eu estava caminhando na direção de meu amigo quando notei um pedregulho se mexendo poucos metros a minha frente. Ele levantava alguns centímetros e caía novamente, como se estivesse sendo forçado por baixo. Inicialmente me assustei e parei de andar, mas logo disparei uma leve corrida até o local.
   Apressado, eu senti a dor nos joelhos quando me joguei no chão duro, com as articulações dobradas. Uma onda de choque se propagou por toda a minha perna, mas eu não liguei. Tentava ajudar desesperado quem quer que fosse. Podia ser Renan, ou Amanda...
   Eu puxava a pedra para cima e para trás, fazendo com que ela se desencaixasse do restante. Era tão pesada que os meus músculos doíam pelo esforço. Era como se fosse impossível tirá-la dali, até que por um milagre, o impedimento deslizou sobre outra rocha e desobstruiu a passagem. De imediato, uma fumaça branca saiu do lugar e se dispersou.

-Lucas! - Gritou um jovem empoeirado. Empoeirado era pouco, ele estava completamente cinza mesmo. Ainda tossia quando ajudei-o a sair do buraco. Estava tão diferente que eu demorei alguns segundos para reconhecer David.

-Ãnh... Eu sou o Matheus. - Respondi brevemente. Mas ele não estava me ouvindo, apoiou-se em uma estrutura de metal enferrujada e esticou o braço para dentro do buraco de onde saíra.

-Segura na minha mão! - Ele gritou. No momento seguinte, assisti surpreso o rapaz puxar Michele para cima, com uma só mão, rangendo os dentes de esforço. A garota largou-se no chão, caindo com o corpo mole. 
Parecia exausta. Usou as últimas de suas forças para agradecer ao jovem, que acabara de tirar a moça dali.
   David havia se largado no concreto ao lado de Michele, com a respiração ofegante. Seu peito subia e descia a cada inspiração. Michele olhava para ele, que estava de olhos fechados. Era impossível saber no que o rapaz estava pensando.
   De repente, um braço se esticou para fora do buraco e se agarrou no chão. Com uma força tremenda, Renan se puxou para fora. Suspirando de dor, rolou para o lado. Todo o seu braço esquerdo estava coberto de queimaduras e bolhas. Corri até ele de olhos arregalados, sem saber o que fazer.
“É impossível” Eu dizia para mim mesmo “O Renan nunca se machuca”. Agachei próximo ao meu amigo e tirei minha camisa. Sacudi-a fortemente para tirar a poeira, e então amarrei em torno da sua ferida, enquanto ele cerrava os dentes.

-Está tudo bem... Salve os outros. - Dizia Renan, enquanto se levantava. Estava quase tão sujo quanto eu. -Eu vou ficar bem, você sabe. - Disse ele com um sorriso, se esforçando para não deixar que a dor lhe superasse.

   Ajudei meu amigo a se levantar, enquanto nós olhávamos em volta. Soldados pegavam suas armas e andavam observando o que tinha acontecido. A fumaça baixou, e eu percebi que ainda não estávamos à céu aberto. Acima de nossas cabeças, um grande pedaço contorcido e rachado de concreto representava o que restou do tunel. Uma luz se via a uns cinquenta metros a frente.
   Algumas pessoas mancavam, outras estavam seriamente feridas, de forma que nem vale a pena comentar. Muitas tinham morrido. Olhei para o caminho de onde viemos. Havia nada mais que uma pilha de rochas gigantes, do tamanho de ônibus. Os escombros me tampavam totalmente a visão de alguma parte da base militar que fugimos.

-Por aqui. - Disse uma voz atrás de mim. Me deparei com Lucas de pé e ofegante, com arranhões leves no rosto. Marcos, que eu vira rastejando alguns momentos atrás, estava apoiado em seu ombro, parecia desacordado. Amanda se encontrava parada atrás dos dois, aparentemente ilesa. Ela fitava o pequeno ponto no fim do túnel, de onde saía uma agradável luz esbranquiçada, que passava a sensação de tranquilidade e esperança.

   David e Michele, que até poucos segundos atrás estavam deitados e conversando baixinho entre eles, tinham levantado. Assim que começamos a andar, eles já estavam atrás de nós, com a passada um pouco mais lenta. Falavam tranquilamente entre si, trocando sorrisos.
   De repente, fomos parados por um homem de aparência ruim. Era um militar de vestes rasgadas e sujas. Apontava seu rifle em nossa direção, quase sem aguentar o peso da própria arma. Andava mancando em nossa direção.

-Nenhum paciente... - Ele tossia. -Pode deixar a base vivo. - Falava o homem, enquanto tentava com o braço esquerdo destravar a arma.

-Que legal! - Exclamou Renan. - E eu achando que iria ficar sem a M16 que eu tinha encontrado! -

   Meu amigo se aproximou do homem com um olhar alegre. Eu sabia que o militar não tinha a menor chance, mesmo com Renan ferido. Olhei sem piscar para a rápida luta, se é que poderia se considerar uma luta.
Ao perceber a movimentação em sua direção, o militar ergueu a arma e disparou uma rajada de tiros que ecoou por todo o túnel. Porém Renan previsualizou o movimento e se esquivou, como se deslizando para o lado. Com um único chute, a arma saiu completamente dos braços do soldado, que gemeu de dor ao sentir a coronha do rifle bater em seu rosto. Caiu sentado, o homem. Como que esquecido do agressor, meu amigo simplesmente andou até a arma e a pegou. A essa altura, o soldado enlouquecido já estava desacordado, com seu corpo largado debilmente pelo chão.

-Estão todos bem? - Renan perguntou, andando calmamente ao meu lado. Seu braço tinha uma aparência horrível, diferentemente do que a expressão dele demonstrava. Renan tinha um semblante calmo, como se nada tivesse acontecido. Antes de começarmos a caminhada, ele tinha tirado a blusa e enrolado-a no ferimento, para evitar infecções. Com o seu casaco, fez algo semelhante a um gesso, que deixava o seu braço ferido pendurado em seu pescoço por um fio de tecido.

-Na medida do possível. - Respondeu David, que eu até agora não tinha ouvido falar.

-Eu acho... - Dizia uma voz mais grave, da minha frente. -Que a gente deu sorte.- Marcos dizia, interrompendo a voz a cada pico de dor que sentia.

-Sorte? - Perguntou Lucas, que o carregava. Por um instante, ele interrompeu a passada. -Nós perdemos um amigo. Dois dos nossos melhores homens estão incapacitados! Você acha que isso é sorte? -

   Todos se abalaram com as fortes palavras de Lucas. Suas expressões surpresas mesclavam algo entre “Pegou pesado” e “Você não precisava ter dito isso”. De repente, um riso abafado cresceu em meio ao silêncio. Renan tapava o rosto com a própria mão, enquanto soltava uma gostosa gargalhada.

-Eu não estou incapacitado, cara! - Disse ele, casualmente.

-Olhe para o seu braço, você acha que a gente não vê essas bolhas aí?- Insistia Lucas. Lembrei-me que ele não conhecia o lado durão do meu amigo.

-Tudo se resume no que a gente sabe e no que a gente não sabe. - Respondeu Renan, dessa vez com um rosto sério. - Por exemplo: Eu sei que posso te matar mesmo com o meu braço todo ferrado. - Vi o rosto de Lucas se contorcer de raiva, e ele já abria a boca para falar algo. -... Mas o que eu não sei, - Continuou Renan. -É se eu poderia conviver comigo mesmo sabendo que eu matei um amigo meu só porque ele me chamou de “incapacitado”. -

   O silêncio reinou outra vez. Nesse momento, já estavam todos parados em um círculo mal feito. Os membros do grupo trocavam olhares entre si. Michele começou a assobiar uma música alegre, completamente desinteressada no assunto que era discutido. Lucas fechou o punho. Renan ainda o olhava de esguelha, sem dar sequer atenção ao jovem irritado.

-Todos nós perdemos amigos, Lucas. - Disse Renan simplesmente, deixando o ar desafiador de lado. Era agora um Renan triste, mas decidido. Lucas parecia surpreso com a repentina mudança da discussão. -Todos nós perdemos parentes... Mas isso não é motivo para perder a calma, ameaçando assim a sobrevivência de todos os outros pelos quais você vem zelando. -

   Marcos se soltou de Lucas e dobrou levemente a perna direita, ao tocar o chão com ela. Deu para perceber onde era sua ferida. Uma mancha de sangue encharcava toda a sua calça militar. (Sim, ele pegou um uniforme do exército, junto com o jipe). Sem olhar para nós, deu um passo a frente, na direção da luz. Todos se entreolharam, e entenderam sem trocar uma palavra, que deveriam imitar o gesto. Recomeçaram todos a caminhar, deixando Lucas para trás, com um olhar perdido e cabisbaixo.
   Eu era o que estava mais atrás do grupo. Com passos pequenos e vacilantes, me aproximei dele. Ao olhar para mim, vi lágrimas surgirem em seus olhos. Eu nada disse, e ele tampouco. Dei um tapa de leve em suas costas, e convidei-o a nos acompanhar.
   Uma fogueira crepitava ao canto da estrada. Nós havíamos saído do túnel há algumas horas atrás. Nosso grupo ria e conversava descontraído, enquanto eu permanecia deitado sobre um pedaço de papelão jogado no acostamento. Acima de mim, um céu estrelado cobria todo o céu. Uma brisa suave soprava meu rosto, me dando uma boa impressão sobre o dia seguinte.
   Amanda e Lucas tinham buscado por mantimentos o resto da tarde que tiveram com luz do sol. Em nosso pequeno acampamento, tínhamos garrafas de água e amendoim que dariam para... Menos de um dia. Mas eramos muitos, e tínhamos uns aos outros. Ninguém parecia assustado ou desanimado, além de mim.
   Agora, conversavam os dois perto da fogueira. O fogo avermelhado refletia fortemente nos olhos chorosos do meu amigo. Amanda parecia consolá-lo com algumas palavras doces de afeto. Como sempre, tinha aquele ar feliz, que me trazia certa paz. Eu jamais me permitia olhar para ela por muito tempo, sua beleza era desconcertante, de forma que eu não conseguia controlar mais minha fala. Estaria eu apaixonado? Pouco provável, isso não poderia ser verdade.
   De um lado a outro, Marcos andava com um cigarro entre os dedos. “Cinco dias sem fumar não é pra qualquer um” Ele dizia sem parar. Michele e David pareciam ter realmente se introsado nas últimas horas. Conversavam mais isolados do restante do grupo, com um ar leve e descontraído.
Renan, como eu, tinha se isolado. Em outro lugar, mais para a escuridão. Eu mal distinguia o seu casaco de capuz a alguns metros de distância noite adentro, onde ele se encontrava sentado no capô de um carro, abraçando as próprias pernas, com o olhar perdido.

-O que será de nós agora? - Perguntou Amanda, sentando em minha frente. Carregava consigo duas garrafas de água. Ao sentar-se, me ofereceu uma delas, que aceitei de bom grado. Tinha como sempre aquele olhar vivo e brilhante, que me animava instantaneamente.

-Eu não sei. - Respondi, retribuindo o olhar com um sorriso. Abri a garrafa e dei uma golada.

-Isso sim é novidade. - Disse ela rindo. - Você sempre sabe o que dizer, o que fazer. -

-Ãnh? Não, esse é o Ren...

-Não, estou falando de você mesmo! - Falava ela, sorrindo. -Você pode estar sempre no seu canto, desanimado, mas quando surge algum problema, é também o primeiro que se esforça para resolver.

-Não, eu nunca sei...

-Você é incrível... - Dizia ela, um pouco mais timida agora. Algo que ela falou ou iria falar parecia deixá-la envergonhada. -Eu gosto de você. - Disse baixinho, quase num sussurro. Amanda não sorria, não demonstrava emoção. Seu rosto, rosado, parecia ainda mais belo. Ela me encarava com aqueles grandes olhos castanhos, esperando ansiosa por algum tipo de resposta.
   Por um momento, um silêncio pairou sobre a cena. À nossa volta, ninguém mais parecia ter ouvido o que ela falara. Gosta de mim? Era muita sorte para ser verdade.

-Eu acho que... - De repente, estávamos nos beijando.

   Eu não sei exatamente quando aconteceu, ou como, mas já estava acontecendo. Ela tinha lábios doces e macios, que me envolviam de tal forma, que eu já tinha desistido de resistir antes mesmo de tentar. Se aquilo era um sonho, eu não iria querer acordar nunca mais.
   Antes que eu pudesse pensar, minhas mãos se envolviam em sua cintura. Eu sentia o calor de seu corpo, a doçura de sua pele. Eu sentia suas mãos deslizarem pela minha camisa...

-Hey, Matheus! Eu vou precisar de voc... - Marcos parou de falar, observando o que tinha acontecido. Assustados, eu e Amanda nos separamos imediatamente. Olhávamos para ele nervosos, eu sabia que eu pelo menos, estava também feliz.

-Ah – Dizia ele, incomodado por nossos olhares – Sinto que interrompi alguma coisa...

-Não, não interrompeu nada. - Apressou-se Amanda a dizer, enquanto se levantava. -Eu já estava de saída.

-Anh... Então tá. - Falou Marcos, um tanto desconfiado. -Matheus, se importa em vir comigo um instante? Preciso de alguém para me ajudar a fazer outra fogueira.
   Concordei com um aceno de cabeça, e olhei disfarçadamente para Amanda, que se afastava sorrindo. Dei um sorriso para mim mesmo, enquanto levantava. Naquela noite, nada de ruim poderia estragar a minha felicidade.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Capitulo 17 - A última fuga

   O caos era completo. De um lado a outro da base, soldados e civis corriam desesperados se esquivando dos infectados raivosos. Pessoas caindo... Sendo pisoteadas. No meio da confusão, reparei que os atiradores disparavam agora contra todos os fugitivos, além dos desmortos. Civis caíam em plena fuga, rolando pelo chão áspero do exterior, envoltos em gritos e morte.
   Quando Renan me viu, um sorriso surgiu em seu rosto instantaneamente. Era como rever um velho amigo, um amigo de infância. Pareciam anos, o tempo que passei sem vê-lo. Para ser sincero, não esperava encontrá-lo novamente. Pelo menos não vivo.
-Matheus! - Ele disse, surpreso. Em meio ao pânico e correria, ele só aumentou um pouco a velocidade da passada em minha direção, carregando o fuzil M16 que pegara de um soldado. Apoiava a arma no ombro, como se já estivesse bem familiarizado com ela.
   Cumprimentou-me com um abraço apertado que me deixou sem fôlego. A sua felicidade estava estampada no rosto, tal como a minha. Por um momento, as pessoas no carro ficaram sem palavras. O único que também conhecia o Renan era Lucas, que no momento estava mais preocupado com um zumbi que se aproximava pela lateral.

-Fez amigos, hein? - Perguntou Renan, descontraído. Tinha um sorriso fácil, diferente do Renan que eu conhecia antes. Subindo na caçamba do jipe, ele olhou em volta e percebeu o que não tínhamos notado até então. Enquanto Marcos manobrava velozmente por dentro do cercado, acabamos por perceber que não tinha nenhuma saída visível. Outros carros que tentavam sair ao redor acabavam por bater em alguma coisa ou dirigir desgovernados pelo pátio. Lembro de ver uma mulher ser arremessada no ar a uns três metros de altura, quando atingida por um blindado.
    Os portões estavam todos fechados, e as grades, sendo abertas por centenas de desmortos carnívoros. Estávamos numa ilha de morte. Sem pensar muito bem, saltei pelo beiral da caçamba e corri na direção de uma das torres. Vi um desmorto em minha frente se adiantar na minha direção e ouvi um disparo. A cabeça dele estourou em um vermelho vivo, derrubando-o. Foi tão simples e rápido que eu sequer parei minha corrida. Renan estava me seguindo, e me dando cobertura com o rifle de assalto.
   Ao entrar pela pequena porta de ferro no térreo, me deparei com uma longa escada em espiral que subia em círculos intermináveis até o ponto de onde o atirador se posicionava. Na minha mente, lá também deveria ficar um painel que controlasse os portões. Renan não me perguntou nada, simplesmente me seguia, checando os arredores.
   Cheguei já cansado ao ponto de vigília. Como eu imaginei, um longo painel eletrônico se estendia por toda a pequena sala circular. Na varanda, um homem uniformizado e de colete disparava com uma arma de luneta em seus alvos por todo o pátio. Ele matava humanos e desmortos, indiferente. Fiz um gesto para Renan manter o silêncio, e puxei o homem para trás pelas roupas repentinamente,  tapando-lhe a boca. Ele gemeu e lutou por pouco tempo. No momento seguinte, havia sido arremessado pela outra varanda do lado oposto. Com gritos de desespero, ele fez sua curta jornada até o chão. E então os gritos cessaram. Sua arma estava agora em minhas mãos.

-Nossa. - Foi tudo o que Renan disse, com uma expressão impressionada no rosto. - Achei que você não fosse de matar inocentes. -

   Calado pelo ar de acusação na frase, eu nada respondi. Desviei o olhar e comecei imediatamente a apertar todos os botões que eu julgava serem os corretos. O rifle sniper balançava pendurado em minhas costas pela bandoleira.

-Inocentes... Não mato inocentes. - Respondi com algum atraso. Renan olhou mais uma vez para o corpo estendido do militar no chão há alguns metros e entendeu o que eu quis dizer. Ele acenou com a cabeça com uma expressão de “tem razão”.
   Eu continuava a apertar alguns botões quando ouvi um som terrivelmente diferente cortando toda a confusão. Era um barulho como se mil trombetas fossem tocadas juntas e descompassadas, como o metal de um navio se torcendo antes de ceder. Olhei pela varanda para ver o que estava acontecendo.
   Era inimaginável. Do piso no pátio, uma parte do chão afundava, deixando um vão escuro a frente. O pedaço de terra descia diagonalmente enquanto o vão só aumentava. Fiquei mais perplexo ainda ao perceber que formava uma rampa. Uma ladeira que levava a nada além da escuridão. Ao parar de se mover, um apito soou alto por toda a base. Como o de um caminhão dando ré, mas ainda mais alto que isso.
   Olhei para Renan, e tive a oportunidade de vê-lo boquiaberto pela primeira vez. Meu amigo não retribuiu o olhar, continuava observando aquela cena inacreditável. Alguns segundos depois, lâmpadas se acenderam dentro do buraco e piscaram algumas vezes, mas logo estavam estáveis. Só se via poeira dentro da passagem.
-É... É um túnel. - Falou Renan, quase sorrindo. Estava tão pasmo quanto eu.
Trocamos um rápido olhar, e entendemos um o pensamento do outro. Tão rápido quanto chegamos ali, estávamos saindo. Corríamos de volta para o jipe quando nos encontramos com Lucas e João subindo as escadas em espiral.
-O que estão fazendo aqui? - Perguntei.
-Queremos ajudar! - Responderam em um coro. Notei que Renan sorria mais uma vez, de cabeça baixa.
-Está tudo resolvido, agora corram para o jipe que é a melhor forma de ajudar! - Respondi.
   Éramos quatro correndo para fora da pequena torre. Carros atravessavam o pátio a toda a velocidade na direção da rampa, arrebentando de vez as cercas e grades. Civis e infectados voavam por todos os lados, atropelados sem misericórdia. Os gritos agora vinham de cada canto da base. Os desmortos tinham arrumado um jeito de chegar às torres, de onde os soldados agora atiravam uns contra os outros.
   Marcos dirigia o carro com habilidade, e freou o veículo uns vinte metros a nossa frente. Renan cobria nossa corrida com o fuzil, enquanto corríamos em velocidade uniforme para o carro. Faltavam cinco metros. Cinco metros...
   Tudo aconteceu rápido demais. Ao mesmo tempo, pareceu acontecer em câmera lenta, diante de meus olhos. João e Lucas corriam a minha frente. De forma paranoica, João olhava em volta, procurando por zumbis ou o que fosse.

-Lucas! - Ele gritou de repente, se jogando contra o amigo, de peito aberto e braços esticados.

   A cena foi quase toda visual. Um jato de sangue respingou para os lados. O tiro que acertou João quase não foi ouvido em meio à confusão. Atordoado, o ferido olhou para o próprio peito, incrédulo. Chegou a ver e encostar a mão no buraco escuro que a bala formou entre suas costelas. Segundos depois, ele caía ajoelhado no asfalto quente. O olhar se desfocando, a respiração cada vez mais lenta.

-Nãããão! - Lucas gritou, agarrando o amigo antes que ele pudesse cair de lado no chão. Os dois de olhos lacrimejados. João não parecia triste, nem arrependido... Nem irritado. Parecia livre.
-At-até a morte... -Disse ele, olhando para Lucas. Nesse momento, Lucas chorou ainda mais emocionado. Demorou alguns instantes até que pudesse responder.

   Renan se jogou na frente dos dois amigos e se abaixou, disparando com o M16 em todos os lugares onde via militares. Inúmeros soldados foram abatidos, enquanto ele soltava rajadas e mais rajadas de morte.

-Até a morte. - Respondeu Lucas, sem ligar para nada do que acontecia em volta. O rosto contorcido pela mais profunda tristeza e lamentação. Lágrimas escorriam desenfreadas pelo seu rosto.

-Precisamos sair daqui! - Falei. Lucas desabou em lágrimas, olhando para o já desacordado João, que ainda de olhos abertos, olhava o pôr do sol. Ele tinha uma expressão tranquila, diferente do resto de nós. Vi Lucas colocar gentilmente o corpo de seu amigo no chão, e nesse momento até eu deixei cair uma lágrima.

   Demos alguns passos em direção ao jipe, e eu pude ver Lucas olhando para trás, uma última vez. João continuava deitado lá, imóvel. Com a expressão serena. Nenhum infectado tinha vindo até ele. Nada se disse no carro. Marcos, engatando a marcha, adiantou-se na direção da rampa.

-Esterilização total em 10... 9... 8... 7... - A voz gravada de uma mulher falava novamente. Sua voz saía de todas as caixas de som espalhadas pelo pátio e pelas torres. Marcos avançava com toda a velocidade que o veículo aguentava. Nós nos segurávamos da melhor forma que podíamos, na caçamba.

   O carro não entrou calmamente na rampa. Ele simplesmente voou buraco adentro. Por causa da velocidade, perdemos totalmente o contato com o chão assim que entramos na passagem.
-3... 2... 1... 0. Esterilização iniciada. -
   Nada se ouviu. De forma muda e silenciosa, tudo ficou branco. Como em um relâmpago ou algo parecido. A imagem me voltou aos olhos, e em seguida um som ensurdecedor tomou-nos de completo. Eram como mil granadas explodindo ao lado de seu ouvido. Em menos de um segundo, tudo o que eu ouvia era um zumbido sinistro e ameaçador. Tudo o que eu via ia tomando uma cor avermelhada. O túnel tremia como se estivesse prestes a desabar a qualquer momento.
   Uma língua de fogo entrava pela parte de trás do túnel, em uma velocidade inacreditável. Era uma nuvem avermelhada e incrivelmente quente que engolia a todos que não saíam do caminho. Homens gritavam enquanto seus veículos eram sugados por aquela massa de ar quente e napalm.

-Vai! - Gritei, sem ouvir a própria voz. Eu podia sentir o veículo titubear, derrapando em vários trechos do caminho acidentado. Todos mantinham os olhos arregalados. Com exceção de Lucas, e do David. Os dois pareciam envoltos nas próprias lamentações, sem ligar para o mundo.
   Uma luz branca e tranquila estava a uns cem metros à nossa frente. Era a saída. O carro acelerava, mas o fogo era mais rápido. Tudo tremeu mais forte, a carroceria do veículo estalava como se fosse desmanchar. Poeira caiu por todos os lados. O som se tornou assutadoramente mais alto, era como o rugido de uma fera, prestes a devorar sua presa. Uma última tremedeira, uma última olhada para trás. O fogo estava a menos de vinte metros do veículo... E de repente eu não enxergava mais nada. Tudo mergulhou na mais profunda escuridão.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

História Paralela - Renan Lima

   A rua estava fria e deserta. Escuridão adentro, uma figura solitária caminhava levando nada mais que uma pá em seus braços. Tinha também uma mochila em bom estado nas costas, mas que de fato não continha nenhuma arma. Seguia por uma pista deserta, cheia de carros que ainda pegavam fogo e iluminavam a cidade enegrecida numa luz vermelha e vacilante.
   Há alguns minutos, tinha se despedido do seu melhor amigo. Deixara ele com a mãe em uma loja de roupas no centro da cidade, torcendo pelo melhor. Agora era a hora de ele próprio buscar pela sua família. Tinha quase certeza de que o seu pai sobreviveria. Porém nada sabia a respeito da mãe.
   Renan olhou para trás somente quando pensou ter ouvido um som de motor. Sorriu para si mesmo, enquanto cobria a cabeça com um capuz. “Pelo menos eles vão ficar bem” pensou ao lembrar do ônibus de evacuação que deixara seu amigo esperando. Porém essa certeza logo foi embora quando avistou zumbis saindo de diversos locais. Renan se empoleirou atrás do capô de um carro enguiçado enquanto os desmortos saíam de becos e vielas, correndo em transe na direção do som de motor. Por mais que quisesse ajudar, o rapaz nada poderia fazer. Eles estavam por conta própria.
   Um dos zumbis, porém, notou Renan enquanto passava rente ao veículo abandonado. Hipnotizado, correu na direção do jovem, sedento por sua carne. Renan manteve a calma e lembrou-se do treinamento que tivera. Por alguns segundos pareceu que não reagiria. Porém não se sabe quando, talvez no último segundo, o rapaz se moveu tão rapidamente que foi impossível acompanhá-lo com o olhar. Em um momento, o desmorto tinha conseguido colocar as mãos na camisa dele, e no outro, estava jogado com o rosto contra o asfalto. O jovem apanhou uma barra enferrujada que estava no canto e o posicionou na nuca do infectado, que se contorcia disposto a morder qualquer coisa que conseguisse. Renan usou a pá como um martelo gigante, e deu apenas uma pancada na parte de trás da barra, com a parte de madeira. O desmorto silenciou na hora.
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   O jovem rapaz caminhou solitário por uma longa distância, protegido pela escuridão. Olhou para seu relógio de pulso já quase sem bateria. Os números estavam meio apagados, porém ao que tudo indicavam, eram cerca de três horas da manhã. Abatido pelo cansaço, Renan sabia que precisava de um lugar para dormir. E aquele pequeno bar do outro lado da rua parecera ideal para isso.
   Ao se aproximar, o garoto pôde ver mais claramente o interior do ambiente, por entre tábuas de madeira sobre o vidro. O lugar parecia ter sido barricado por alguém, e sendo assim, era promessa de segurança. Por precaução, talvez, Renan decidiu não incomodar o sobrevivente que estivesse ali dentro. Olhou para a parede do lugar, com o olhar concentrado e analisou-o de um lado a outro.
   Como que decidido, Renan deu um passo na direção do estabelecimento e pegou firmemente um buraco na madeira exterior. Pôs um pé na maçaneta da porta de entrada e deu impulso. O rapaz escalou o bar, empoleirando-se nas telhas do lugar. Antes de adormecer, viu ao longe um trio de encapuzados que atravessaram a rua silenciosamente, se distanciando dele. Feliz por ainda existirem pessoas normais, ele se rendeu ao sono.
   Acordou com o sol a pino. A forte luz do dia queimava cada centímetro de seu rosto, o que o fez virar a cabeça rapidamente. Pensou por um momento em Matheus e Rosana, que naquele momento deveriam estar a salvo em algum lugar bem distante. E dormindo em camas macias, ao invés de passar a noite em um telhado de bar.
   Renan olhou mais atentamente as telhas e percebeu uma chaminé ao canto. Na escuridão da noite passada, nem tinha reparado nesse detalhe. Lembrou-se da barricada que encontrou na entrada do lugar, e na esperança de encontrar sobreviventes lá dentro. Sem pensar muito mais tempo, ele jogou sua sacola de mantimentos chaminé abaixo. E em seguida pulou ele mesmo. Mal pensado.
   A queda foi rápida e impetuosa. Renan espatifou-se em cinzas e carvão. Ficou coberto de pó preto até o último fio de cabelo. Tossia como um asmático, quando resolveu sair da lareira. De repente se via dentro de uma pequena loja, que mais parecia uma padaria. Havia um balcão ao seu lado, e logo a frente um bocado de mesinhas de madeira, para fins sociais. Ao canto um sofá vermelho enorme, acostado na parede. Uma TV estava ligada no alto. Porém uma coisa o surpreendeu ainda mais: A três passos de distância, uma mulher de uns quarenta e tantos anos encarava-o com uma expressão ainda mais assustada que a dele.
-É um deles? - Ela perguntou, dirigindo a voz para o sofá. Levantou-se dali, um senhor também de idade, com um pequeno suspiro de esforço.
-Bom... A não ser que aqueles monstros tenham aprendido a invadir abrigos no melhor estilo papai noel... É um humano. - Falou o senhor de idade, abaixando os seus óculos fundo de garrafa para analisar melhor o pequeno projeto de gente, preto como carvão. -Meu nome é Antônio. E essa é Suzana. -
-Ãnh... - Começou o garoto, mas foi impedido por um forte acesso de tosse.
-Aqui – Dizia a mulher, que trazia consigo um copo de água. -Beba isto. - Ofereceu com um sorriso.
   Renan não fez cerimônia e bebeu o líquido de uma só golada, satisfeito por ter água gelada para tomar. Imediatamente, já se sentia um pouco melhor. Levantou-se sem dificuldades e bateu nas próprias roupas, tentando em vão se livrar de toda aquela sujeira.
-Vocês não teriam um pouco de carne seca aí? - Perguntou, enquanto dava uma olhada nas prateleiras.
-Carne seca? - Repetiu o idoso, incrédulo. -Onde você acha que estamos? Num bar? -
-Com todo o respeito, senhor... Foi isso mesmo que eu achei. Onde estamos, afinal?
-Numa padaria, filho. - Esclareceu a mulher, que puxava uma cadeira para se sentar. - Não em qualquer uma, mas na melhor do bairro. Prove um de nossos pães doces! - Ofereceu, apontando para suculentos doces na vitrine do balcão. Agradecido, Renan também pegou um de bom grado. Quando iria se afastar do balcão, porém, avistou um homem no chão. Um homem uniformizado como funcionário da padaria. Tinha um enorme rombo na parte de trás da cabeça, que formara uma poça de sangue no azulejo. Percebendo o seu ar de surpresa, talvez, a mulher se adiantou a explicar a situação:
-Era um deles. - Ela disse, com olhar arrependido. - Um daqueles monstros. Ele tentou me matar e... E... -
-Eu tive que lhe arrancar os miolos. - Interrompeu o idoso, vendo que a mulher começava a irromper em lágrimas. -Mas nenhum de nós teve coragem de tirá-lo daqui porque...
-Ele é o meu filho! O meu filho! - Dito isso, Suzana correu chorosa para os fundos da padaria.
   Por alguns segundos, Antônio pareceu triste, um pouco envergonhado até. Mas essa sensação desapareceu da cabeça de Renan assim que ele puxou uma bela espingarda de dois canos por detrás do sofá avermelhado.
-Essa belezinha aqui... - Dizia orgulhoso da arma, nem sequer olhava para Renan. - É o que nos manteve vivos até agora. -
-Tinha mais alguém aqui? - Perguntou o jovem, tentando desviar o foco da conversa.
-Tinha sim. Uma garota chamada Karen.
-O que houve com ela?
-Foi embora. - Dizia Suzana, que se aproximava novamente, limpando os olhos com um lenço.
-Embora? Por quê? Aqui é tão seguro!
-Não é tão seguro quanto parece, meu jovem.
- Aliás, qual o seu nome? - Perguntou Antônio.
-Renan. Que houve com a garota?
-Ah! Nada de mais! - Dizia Suzana, pensativa. Era como se em sua mente estivesse revivendo os momentos. - Passou um homem aqui, um tal de Caio. E quis levá-la com ele. Eram dois pombinhos.
-Ficaram bem, os dois? - Perguntou Renan, agora até um pouco mais interessado no casal ousado.
-Ninguém sabe. - Respondeu o idoso. - Mas a minha sugestão é que não duraram nem dez minutos lá fora. Era um medroso, sabe? Esse Caíque...
-É Caio, seu velho caduco! - Corrigiu Suzana, enquanto gargalhava. Renan a achava corajosa simplesmente por zombar de um homem armado. Não sabia se faria o mesmo.
   O clima era bem amigável dentro da padaria. Aquelas pessoas simples não pareciam assassinas. E ao mesmo tempo, também não pareciam preocupadas em relação a tudo o que acontecia lá fora. Era uma sensação única estar naquele ambiente tranquilo.
-O exército está agindo, sabia? - Disse Suzana, enquanto aumentava o volume da TV.
   No noticiário, um repórter vestia um colete a prova de balas de cor azul. Atrás dele, soldados disparavam em todas as direções. Pessoas corriam assustadas de um lado a outro. Ao fundo, passavam helicópteros deixando mais soldados no campo de batalha. A câmera tremia.


Tropas militares foram acionadas e já começaram o cerco na cidade do Rio de Janeiro, apesar de existirem indícios de casos em outros lugares do... O que é isso?”


   Mais a frente, um grupo de pessoas encapuzadas corria na direção de um furgão preto. Carregando apenas armas brancas, os homens e mulheres pareciam deslizar pelas ruas, até o veículo. Não se viam os golpes, mas qualquer indivíduo que entrasse em seu caminho era simplesmente derrubado.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Os lobos azuis – Renan disse para si mesmo, tão baixo que nem o próprio ouviu suas palavras. No momento seguinte, tomado por uma coragem descomunal, ele começou a enfiar pães e outros alimentos dentro do seu saco imundo de suprimentos.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Renan, pelo que percebo você vai seguir viagem. - Disse Antônio, reparando nos maus modos do garoto.
-Bem... Sim. -
-Não precisa ir assim. - Disse ele. Renan não sabia se o idoso estava se referindo ao estado de seu corpo, ainda negro de cinzas e carvão ou ao fato de ele estar pegando comida dos dois sobreviventes. No final, acabou entendendo que era um pouco dos dois. -Vá tomar um banho, filho. Eu preparo a sua mala. -
-Banho? - Renan não tomava banho desde o dia anterior, e pela manhã cedo, quando se preparou para ir à escola. Desde então, todo o tipo de sujeira tinha se acumulado na sua pele e em suas roupas. Porém ele trazia na sacola um conjunto a mais, que pegara na loja onde se despediu de Matheus.
-Isso mesmo. Tem um pequeno banheiro nos fundos. Era para os funcionários mesmo. - Dizia o idoso. - Mas você pode usá-lo. -


   De fato, o banheiro era bem simples. Havia um espelho bem sujo sobre a pia, uma privada já sem tampa e o chuveiro não tinha sequer uma cortinazinha para fechar. Restou mesmo fechar a porta, que funcionava por ferrolho, e não maçaneta.
   Porém todo o pessimismo foi embora quando a água quente molhou-lhe o rosto. Esquentou agradavelmente suas costas. Naqueles dez minutos que passou se banhando, Renan sentia felicidade. Era como se nada mais pudesse abatê-lo. Ele estava renovado. Lembrou-se então do que Renato lhe falara há algum tempo. “Se qualquer coisa der errado” ele dizia, com seu ar calmo. “Todos os Lobos se reunirão em Mangaratiba.”
   Ao sair do banho, foi surpreendido por uma nova mochila. Antônio havia preparado tudo o que lhe possuía em uma mochila estudantil. Renan estava coberto da cintura para baixo em uma toalha azul marinho muito macia. Vestiu-se ainda no banheiro, antes de ir novamente até os anfitriões.
   Caminhou até lá de mochila nas costas, pronto para partir. Chegou na sala e se deparou com os dois, que aguardavam de pé entre as mesas na entrada. Antônio já havia retirado grande parte das tábuas de madeira que barricavam a porta, e já estava tudo pronto para sua saída.
-Vá com Deus, filho. Espero que consiga encontrar sua família. -
   Pela tarde, os dois haviam conversado bastante. Trocaram ideias de sobrevivência, pontos de resgate e papearam sobre todo o tipo de coisa. Renan já sabia sobre um tal Fortaleza Norte, e a Fortaleza Oeste... Sabia também de alguns grupos de sobrevivência e um tal de William também, que vivia aparecendo na TV. William Eckle Brooks.
   Feliz e surpreso, Renan viu que já havia escurecido. Seria uma viagem tranquila e fresca pela escuridão noturna. Checou visualmente sua calça jeans e olhou para o casaco preto que vestia. Vagarosamente, puxou o capuz até que lhe cobrisse o rosto em sombras.
-Mangaratiba. - Repetiu para si mesmo em um tom sombrio. - É para lá que eu vou. -