Estávamos do lado de fora da base, em frente a um grande portão de metal negro. Por cima dos muros, que mediam mais de dez metros de altura, homens armados apontavam suas submetralhadoras para nosso veículo. O muro era de um marrom desbotado, sem pintura alguma. Provavelmente ninguém teve tempo para detalhes, quando a base foi construída.
O portão se abriu vagarosamente, com um rangido tremendo. Garoto calmamente afundou o pé no acelerador e entrou devagar no pátio da instalação. Por um momento, todo o interior me pareceu deserto. Aquilo não era comum.
-Onde foram todos? - Perguntei. Will simplesmente riu da minha pergunta, como se fosse até um pouco ingênua.
-Você logo verá.- Ele respondeu.
Pela primeira vez, notei que todas as torres de vigilância eram conectadas por muros largos ou pontes erguidas com cordas. Eram passagens, para que os atiradores pudessem se comunicar ou pelo menos correr para outro lugar.
Avistei uma pequena movimentação por trás de uma das grades. No momento seguinte, fomos cercados por dez, talvez vinte soldados armados que apontavam suas armas em nossa direção. Um deles fazia sinal para que os demais não disparassem, enquanto ele se aproximava da janela do motorista.
Garoto acendeu um cigarro, usando a mão esquerda para abrigar o fogo da brisa que entrava pela minha janela quebrada. O homem baixou o lenço que tinha sobre o rosto e bateu no vidro com o nó dos dedos. Nesse momento, o motorista girava a manivela da janela, num movimento lento e preguiçoso.
-Ricardo! - Exclamou o homem surpreso. - Cadê o seu carro? -
-Houve um acidente. - Respondeu Garoto amargamente, enquanto soltava uma baforada de fumaça. -Perdemos um dos nossos. -
O homem que veio até nós olhou para seus homens e fez um gesto com os braços. No momento seguinte, os demais soldados baixaram as armas e se dispersaram pelo pátio, de volta para suas tarefas rotineiras. O portão novamente começou a se mover, dessa vez fechando-se, com seu característico e incômodo rangido.
-Eu sinto muito. - Disse o homem simplesmente, enquanto se apoiava na janela do carro.
-Está tudo bem. - Respondeu Garoto, sem muita sinceridade. -Leva esse garoto à cela dele. E chame o Doutor Brooks para ir visitá-lo.
-Entendido.
O soldado fez uma reverência militar rápida e deu a volta no veículo, abrindo minha porta. Deixou que eu saísse antes de falar qualquer coisa.
-Por favor, me acompanhe. - Disse então, enquanto começava a caminhar na direção do prédio principal. No caminho, ele ia recolocando o pedaço de pano que cobria a parte inferior de seu rosto.
Olhei mais uma vez para cima. Naquele momento, um atirador caminhava tranquilamente por um muro enquanto bebia água de uma garrafa de plástico. Em suas costas, um pesado rifle de longa distância equipado de uma luneta.
-Bem pensado. - Falei para mim mesmo enquanto observava aquele aglomerado de pontes que se erguia acima de nossas cabeças. Notei que nesse momento o soldado que me acompanhava lançou um olhar interrogativo em minha direção, o homem já abria a boca para fazer um comentário.
-Isso mesmo – Eu disse , antes mesmo que algum som saísse de sua boca. - Eu falo sozinho. -
Passamos por uma das entradas com portas automáticas de concreto. Dois soldados montavam guarda ao lado dela. Notei que um deles acenou para seu colega, que me guiava. O homem então retribuiu, e continuamos caminhando. Logo após entrarmos, eu pude escutar a porta se fechando logo atrás de nós.
Fui conduzido por um longo corredor iluminado até uma porta de vidro escuro. Notei que aqueles corredores por dentro do prédio eram praticamente idênticos entre eles, seria muito fácil se perder por ali. A porta era de um azul forte, que impedia a minha visão do outro lado. O soldado se virou e abriu uma gaveta ao lado da porta.
-Por favor, coloque as suas roupas aqui. - Dizia ele, apontando para minha vestimenta e o compartimento. -Você vai passar agora por uma esterilização. Não há nada a temer, tudo bem? -
Fitei-o por alguns instantes, sem saber como reagir. Esterilização me lembrava nada menos que fogo. Queimar algo sempre foi a melhor forma de esterilizá-lo, e se a minha lógica estivesse correta, eu preferia ficar bem sujo mesmo.
-Por favor, coloque as roupas aqui. - O homem insistiu, levantando os olhos impaciente. -É só uma chuveirada.
-Foi o que disseram aos judeus. - Respondi, enquanto tirava minha camiseta. Ao me abaixar para tirar os calçados, senti algo frio roçar-me as costas. Lembrei da faca que estava presa na cintura da calça.
-Algo errado? - O soldado perguntou.
-Bom... Eu vou me despir aqui. - Respondi. -Você se importa de olhar para outro lado por alguns instantes?- Perguntei, com um sorriso mal disfarçado.
-Desculpe, senhor. É o procedimento. Você pode estar carregando uma arma, ou uma faca... E isso seria perigoso.
-Ah... Sim. - Respondi desviando o olhar. “Malditos protocolos de segurança”
-Jorge! - Gritou uma voz do final do corredor. Era Will, que carregava consigo uma pesada sacola. -O Brooks quer te ver no gabinete dele. Disse que é importante. -Acrescentou enfaticamente.
-Eu já vou. - Respondeu Jorge, voltando o olhar para mim. Nesse momento, Will saiu da nossa visão, seguindo o seu caminho. Nesse meio tempo de distração, minha calça jeans já estava dobrada e compactamente guardada na gaveta, embrulhando a faca que eu trouxera.
[…]
“Era uma sala quente e aconchegante. Os móveis de madeira e o clima tradicional mantinham um ambiente agradável. Renato havia me chamado para a sala logo após o treinamento com facas. Ele estava sentado, atrás de sua imponente mesa de carvalho. Segurava uma caneta em uma mão, e a outra estava pousada sobre uma pesada caixa sobre a mesa.
-Então, eu vi o seu desempenho hoje. - Começou ele. -Nada mal, realmente.-
-Eu fui treinado pelo melhor, senhor. - Agradeci. “Nada mal”, vindo de Renato, era quase como uma admiração profunda.
-Eu sei. - Respondeu sem cerimônias. -E hoje, estamos aqui para melhorar as coisas. Hoje você completa o seu treinamento de dois anos.- Enquanto ele falava, eu me lembrava das inúmeras vezes em que fui forçado a treinar pontaria, equilíbrio e combates, em diversas simulações. Era um sonho estar a ali, na minha formação.
-Eu lhe abri as portas, garoto. - Ele continuou.- Resta você entrar. -
Ao dizer isso, Renato abriu a caixa que mantinha sob sua mão. Dentro do recipiente, havia uma pistola, com um silenciador ao lado. Um casaco de cor escura estava cuidadosamente dobrado dentro da caixa, com o capuz a mostra. Além disso, eu sabia que em algum lugar dali também estariam uma faca de arremesso e um Ás de espadas. Isso mesmo, a carta do baralho.
-Repita as minhas palavras, filho. - Disse Renato, enquanto punha minha mão direita no meu peito.
-Nós trabalhamos na escuridão... Para servir ao bem.
-Nós trabalhamos na escuridão para servir ao bem. - Repeti, com minha voz ligeiramente mais aguda.
-Tudo o que fazemos, é para o bem maior. Pois o mundo tende ao caos, e a natureza do homem..
-É a destruição. - Completei. Nesse momento, vi pela primeira vez Renato sorrir.
-Bem-vindo aos lobos azuis. - Ele disse simplesmente. -Agora chame Renan aqui. Acho que ele também já está pronto. -
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Jorge se despediu logo após me deixar sob a responsabilidade de dois novos recrutas. Alguns minutos antes, havia me levado à sala de trocas, onde precisei experimentar novas roupas brancas e sem graça. Além de deixar as minhas vestes por lá. Dessa vez, me ocupei em guardar o caminho até aquela sala. “Segunda a direita, terceira à esquerda e segue reto.” Repetia o pensamento em minha mente enquanto os dois homens me algemavam.
Pelo que me parecia, também era norma do lugar algemar os pacientes -ou detentos- quando eles se encontravam muito no interior do prédio. Como perto de salas importantes ou de pessoas importantes. Chegou a mim a informação de que o doutor Brooks, por exemplo, estava a menos de dois corredores de mim naquele momento, providenciando pilotos de helicópteros. Sejam lá o que fossem, os recrutas não eram bons em guardar segredos.
-Andando. - Disse um deles, enquanto me empurrava o ombro. Apesar de tentar demonstrar confiança, a voz fina do militar não passava o ar de autoridade que se esperaria de um oficial. Com passos longos e lentos, comecei a caminhada em direção à minha cela.
Finalmente era o fim do aprisionamento. Todo o plano foi baseado em nada mais do que três passos. Passo 1: Sair do estabelecimento. Esse foi até mais fácil do que eu esperava, e consegui fazê-lo logo na primeira tentativa. Passo 2: Atrair a atenção dos infectados para a base da CCAB. Apesar de ser um pouco mais complicado, toda o nosso desespero de volta certamente atraíra centenas de desmortos famintos. Ou senão, pelo menos o som dos disparos de Garoto guiavam eles em nossa direção agora mesmo. Passo 3: Fuga em massa. Iríamos teoricamente nos valer de toda a desorientação dos homens, que estariam lutando contra os zumbis invasores e então escapar dessa maldita base. E agora, finalmente, faltava pouco tempo para a grande fuga.
Viramos no corredor de minha cela, que eu reconheci assim que chegamos. A terceira luz do corredor piscava a cada três segundos, e esse foi o meu sinal. Notei que o homem a minha esquerda ia aos poucos diminuindo a passada, ficando para trás. Ouvi o som de chaves e então percebi que me soltariam as algemas. Só faltava uma coisa: Os zumbis.
De repente, o som de um tiro chegou aos nossos ouvidos. Fora abafado pela construção, porém ainda era um barulho bem audível. Os recrutas se entreolharam, sem saber ao certo como reagir. O tempo de paz foi pequeno: Após o primeiro disparo, pouco demorou para que outros fossem ouvidos ao redor da base. Dentro de alguns segundos, uma chuva de fogo era ouvida, oriunda do exterior.
-Atenção todas as unidades... Ameaça iminente nível 5 nos portões de acesso A-1 e B-3. - Dizia uma voz vacilante, dos rádios. A voz era cortada por chiados e tiros que por vezes abafavam o sinal. Requisitando apoio imedi... Ah meu deus! - Tudo o que se ouviu foi um grunhido e mais alguns tiros. Por fim, o sinal sumiu de uma forma tão rápida quanto veio, nos envolvendo em um silêncio agonizante. Chegou a hora.
O período de tempo antes de uma ação ousada é sempre o mais tenso possível. Você começa a suar frio... a respiração fica pesada... O coração parece dar grandes pulos dentro do peito. Quando a adrenalina está no máximo, a imortalidade parece real. Passo três em ação.
Em um só movimento, dei um salto e passei os braços ainda algemados para a frente do corpo. Surpreendido pela movimentação brusca, o soldado ao meu lado começava a preparar um golpe quando foi atingido em cheio no rosto pelo meu cotovelo. Ouvi os passos se aproximando de mim, antes de ver o homem golpear. Deslizei para a esquerda em um passo largo, e o pontapé do soldado passou a alguns centímetros de meu corpo. O recruta nunca havia sido preparado para combates, como eu. Ficou sem reação alguma quando, com um rápido movimento, acertei-lhe um chute na boca do estômago e em seguida cabeceei sua têmpora. O homem caiu duro como pedra no chão do corredor. O silêncio tomou conta novamente. Fora uma luta rápida e silenciosa.
Dois homens desacordados em minha frente. Inúmeros gritos de “viva” eclodiam de várias celas, enquanto o tiroteio continuava lá fora. Iluminado pela luz da lâmpada que piscava, um molho de chaves esperava por mim. Analisei-o com atenção. Uma chave estava mais separada das demais, provavelmente a que o soldado preparou para me soltar. Foi um alívio ter acertado. Fiquei demasiadamente mais feliz quando as algemas saíram na primeira tentativa.
De mãos livres, corri ao encontro dos meus amigos e comecei a testar as chaves. Assim que consegui soltar Marcos, ele me agradeceu e tomou uma chave para si.
-Essa é a chave mestra. - Disse ele, e em seguida me deu o pequeno objeto. - Salve seus amigos. Eu vou liberar o caminho. -
Não havia tempo para discussão. Tudo o que posso dizer é que fiquei feliz em saber que existia uma chave mestra. Corri pelos corredores abrindo não só a porta dos meus colegas, mas a de todos os que eu alcançava. Logo os corredores eram uma correria só de sobreviventes desesperados pela liberdade.
-Matheus! - Gritou Amanda, enquanto eu abria sua cela. Ao desobstruir a passagem, a menina se jogou em meus braços, me deixando sem reação. -Obrigada! Essa é a Michele, é gente boa. - Disse ela, apontando para sua companheira de cela. Era uma moça bonita, de cabelos encaracolados e castanhos, de mechas vermelhas.
-Prazer. - Ela disse. Acenei levemente com a cabeça, e chamei-as para fora da cela. No momento seguinte, o clima calmo do interior mudou. De repente, um sonoro alarme soou, e luzes vermelhas iluminaram o local.
-O que é agora? - Perguntei para ninguém, exatamente.
-Alerta de ruptura do perímetro. Medidas de autoproteção iniciadas. - Falou uma voz feminina artificial. A voz vinha ao mesmo tempo de todos os lugares, e não significava algo bom.
-Matheus! - Gritou Marcos, do outro lado do corredor. Trazia consigo João e Lucas. - Vamos embora daqui, os portões estão se fechando! - A voz feminina continuava falando ininterruptamente a mesma mensagem.
Sem mais demora, nos adiantamos a correr para a saída mais próxima, sem sequer passar pela sala de roupas. “Às vezes” pensei comigo mesmo “nem todo o plano dá certo”. Continuamos correndo até que chegamos a um aglomerado de pessoas de branco, como nós. Estavam todas paradas de pé, olhando para um grupo de três soldados que estava a alguns passos da saída. Todos em silêncio.
-Mais um passo de qualquer um e nós abriremos fogo! - Gritou o mais alto deles.
-Sai daí, nós queremos sair! - Gritou Marcos, ainda mantendo a calma.
No momento seguinte, ouviu-se um forte baque de metal contra metal. Ao olhar para trás, vimos que uma parede de ferro sólido havia descido do teto, bloqueando a passagem de retardatários. Ao ver que seriam presas ali dentro, gritos dominaram o ambiente, e as pessoas correram desesperadas na direção dos soldados.
Não demorou, eles abriram fogo contra a multidão desesperada, derrubando inocentes. Porém a massa de gente não cessou e atravessou a saída, levando as armas dos oficiais. Os soldados foram mortos pelos pacientes em pânico. E o caos tomou conta.
Zumbis corriam atrás de suas presas. Homens passavam de um lado para o outro nas torres de vigília, enquanto disparavam contra a massa de infectados que já tinham adentrado o ambiente. As grades de metal tinham sido contorcidas como plástico macio, e os desmortos entravam sem parar.
Os atiradores disparavam contra infectados que se adiantavam contra todos presentes. Alguns tentavam partir de carro. Porém um som em especial de hélices me chamou a atenção. Olhei para trás e para cima, visando o terraço do prédio principal. Fiquei chocado ao ver o rosto de Brooks pela portinhola do helicóptero que decolava. Por um momento, pensei tê-lo visto acenar para mim, algo como um “até mais”. Em instantes, o helicóptero se distanciava de nós, seguindo o curso do vento.
-Matheus! - Marcos gritava para mim. Enquanto eu olhava ao redor, todos haviam entrado em um jipe vermelho e antigo. Não era um veículo militar, parecia um carro apreendido mesmo. Marcos estava como motorista, e os demais na garupa. Corri até eles enquanto balas zuniam em volta de mim. Ao que tudo indicava, agora os atiradores estavam acertando tudo o que se movia.
-Quem é este?- Perguntei ao ver um desconhecido encolhido na garupa, segurando fortemente o que parecia ser um colar.
-O nome dele é David. - Disse Amanda, enquanto fechava a porta do carona. - O carro é dele. - Acenei em concordância, sem dizer palavra. Nesse momento, algo me chamou a atenção. Há cerca de dez metros de distância de onde estávamos, havia uma briga acontecendo.
Um garoto solitário enfrentava nada menos do que três soldados que tentavam imobilizá-lo. Fiquei imóvel ao ver que ele não precisava de ajuda alguma. Um a um, os militares caíam, atingidos por chutes, socos ou coronhadas de suas próprias armas. Lentamente, ao ver todos ao chão, o rapaz se abaixou e pegou um fuzil M16 de um dos combatentes. Ao olhar em nossa direção, fiquei ainda mais surpreso. Vestia uma calça jeans surrada e um casaco azul.
-Renan. -