O dia amanheceu nublado, mas com
uma temperatura agradável. Eu estava sentado sobre o capô
enferrujado de um velho Chevette branco. Em minhas mãos, um rifle de
longa distância. Apertei o botão na lateral do longo rifle e o
cartucho caiu. Segurei-o com a já pronta mão esquerda e olhei as
balas douradas calibre 50. Ao ver os projéteis reluzindo à luz do
sol, ainda repousados em seus devidos lugares, senti a fraqueza do
meu corpo, ao imaginar uma daquelas balas passando por meu estômago.
Com um clique, recoloquei o pente na arma, puxando em seguida o
ferrolho em sua lateral. Uma das balas deslizou para dentro do cano,
pronta para ser disparada. Retirei-a manualmente do fio, e pela
centésima vez, comecei a repetir o processo. O olhar vagando entre o mecanismo e o horizonte da paisagem. De onde uma fumaça negra se erguia em enormes filetes escuros no céu esbranquiçado.
O rifle, que eu carregava comigo
desde que saímos de uma das torres da base militar e médica agora
destruída, era de um modelo desconhecido. “É um Barret” tinha
dito Renan há alguns minutos, quando passara por mim com alguns
esquilos mortos por ele. Todavia, eu ainda não acreditava, porque
apesar do calibre, era uma arma relativamente leve em comparação a
sugestão do meu amigo.
Ouvi ainda distraído alguns
tiros abafados pela distância. Mais pareciam estalos de um objeto
qualquer. Era como estar ao lado de uma zona de guerra. Mas aquilo
era normal, com o passar do tempo, apenas se tornava mais raro. Agora
tinham menos pessoas ainda vivas para atirar.
-Matheus, dá uma ajuda aqui com a
fogueira – Falou a Amanda, passando por mim
com alguns gravetos. Marcos e Lucas tinham dado uma volta a pé pelas
redondezas, procurando por qualquer coisa útil na estrada. Michele e
David haviam sumido há algum tempo, mas nada indicava que não
estivessem bem. Aliás, deviam estar se divertindo...
Como o tempo mostrou, eu era uma
das poucas pessoas que não fazia nada além de olhar em volta e
pensar na própria vida. Eu era um inútil, mas as pessoas pareciam
não perceber isso. Desci do capô e andei atrás de Amanda. Deixei a
poderosa arma ao lado da M16 do meu amigo, as duas inclinadas
apoiadas em um pequeno toco de madeira.
-Espero que o que aconteceu ontem
não mude nada entre nós. - Disse Amanda de repente.
-Ãnh... Mudar o quê? A gente não
se conhece há muito tempo...
-Você não entendeu! - Cortou ela.
- O que eu estou dizendo é que não vou parar de correr pela minha
vida se você ficar para trás ou algo assim. Não vou por minha
própria segurança em risco só porque eu gosto de você, e espero
que aja assim também. - Finalizou, me olhando fixamente.
-Então você gosta de mim? - Perguntei descontraído.
-Não é esse o ponto! - Disse ela,
sorrindo. Me deu um tapa no ombro, sem muita força, e nos beijamos
mais uma vez. Não demorou muito para que esquecêssemos daquele
assunto.
Fazer uma fogueira, sinceramente,
era bem mais difícil do que parecia. Depois de umas vinte tentativas
frustradas e inúmeros pequenos cortes nas mãos, foi animador quando
vimos Marcos se aproximar com um isqueiro.
- Dá uma angústia, sabem? - Disse
ele, enquanto entregava o acendedor para Amanda. - Saber que o meu
querido Zippo está em algum lugar daqueles escombros... - Falava
tristemente, enquanto olhava sobre o ombro para a nuvem negra de
fumaça que se erguia atrás do morro.
-Quem é Zippo? - Sussurrou Amanda,
como se tivesse perdido alguma coisa importante.
-O isqueiro dele. - Respondi, com
um sorriso. -Cadê o Lucas? Achei que ele estava com você. -
-Ah... - Marcos retornava ao mundo
real. - Bom, o caro Lucas encontrou um violão. E está brincando com
ele na estrada, a uns oitocentos metros a frente. Eu disse para ele
que não era seguro tocar por aqui.-
-Um violão? - Perguntamos em coro
eu e Amanda. Não sei porque exatamente, mas aquilo me deixara
animado.
Olhei na direção indicada, mas
tudo o que eu via eram carros abandonados e grosseiramente deixados
para trás. Em alguns lugares, pequenos focos de incêndio erguiam
nuvens de fumaça que impediam ainda mais a visão.
Senti o cheiro do esquilo
começando a assar na fogueira, e Renan nos olhava do outro lado da
fogueira, largado no chão confortavelmente. Seu braço ainda coberto
por uma camiseta e pendurado no seu pescoço como num gesso. Sem
camisa, ele tinha o olhar perdido, que voava da cidade no horizonte
para as nuvens esbranquiçadas que se moviam preguiçosamente pelo
céu.
Caminhei até ele deixando Marcos
conversando com a Amanda sobre o que ele e Lucas tinham conseguido no
passeio. Renan notou minha aproximação desde o primeiro passo, eu
tinha certeza, mas seu olhar não se desviou nem por um instante.
-O que foi? - Perguntou ele sem
olhar para mim. Eu me agachei, meio que sentando nos meus próprios
calcanhares para olhá-lo no mesmo nível. Seu olhar se moveu
lentamente até encontrar o meu.
-O que houve? - Perguntei, com uma
expressão neutra. Há algumas horas, eu percebia que tinha algo
errado com o meu amigo. Algo que o perturbava.
-Sinceramente... - Seus olhos negros
focaram em mim, sem emoção aparente. - O meu braço. Ele está
fodido, cara.
Desviei o olhar por um instante.
Nunca antes eu tinha visto o Renan admitir uma fraqueza, nem sequer
chegar perto disso. Mas agora... Ele falava como se estivesse
derrotado, completamente inutilizado pela sua ferida no braço.
-Uma vez... - Comecei eu,
lembrando de um tempo que agora parecia distante. De um tempo onde
crianças corriam pelas ruas e jogavam bola sem medo de fazer
barulhos ou qualquer tipo de desconfiança. -Você me disse que nunca
podemos ficar para baixo. Porque o mundo nos derrota ainda mais ou
algo assim. - Eu falei com toda a convicção, da forma mais profunda
que pude. Renan, apesar disso, apenas riu por alguns segundos, antes
de falar alguma coisa.
-Nem pra lembrar do que eu falei,
cara? - Ele parou novamente para soltar uma breve risada. - Eu disse:
“Para te derrubarem, terão que te matar primeiro. Para te
matar, terão que matar seus amigos primeiro. E para matar nossos
amigos, é melhor tentarem com no mínimo cinco exércitos.”
Por um momento eu refleti sobre
as palavras ditas. Agora, não parecia haver sentido falar tal coisa
em tempos tão comuns.
-E pra que você falou isso, mesmo?
- Perguntei
-Ah, sei lá. - Disse Renan com o
olhar perdido novamente. Mas dessa vez, havia um quê de felicidade
em sua expressão. - Acho que você tinha brigado com o namorado de
uma daquelas garotas que gostavam da gente. -
Novamente rimos, gostosamente.
Por aquele curto momento, tudo era tranquilo. Naquele breve instante,
pudemos esquecer que todas aquelas pessoas de quem falávamos estavam
mortas, que Luís morreu ao tentar seguir nossos passos, e João pelo
mesmo motivo. Esquecemo-nos por alguns segundos que Michele e David
estavam desaparecidos, e o Lucas, afinal, ninguém sabia onde estava.
Uma melodia agradável soava não muito longe. De forma lenta e continua, um grupo incontável de infectados
marchava em sua direção. Os acordes doces e suaves da música não faziam diferença para a audição já prejudicada dos desmortos. Grunhiam cambaleavam enquanto continuam a caminhar
pelo asfalto do dia quente. Com queimaduras por todo o corpo,
soldados e civis mordidos se aproximavam cada vez mais do pequeno
grupo na estrada. Alguns metros a frente, um jovem tocava violão despreocupadamente.