domingo, 22 de abril de 2012

Capitulo 19 - A última música


   O dia amanheceu nublado, mas com uma temperatura agradável. Eu estava sentado sobre o capô enferrujado de um velho Chevette branco. Em minhas mãos, um rifle de longa distância. Apertei o botão na lateral do longo rifle e o cartucho caiu. Segurei-o com a já pronta mão esquerda e olhei as balas douradas calibre 50. Ao ver os projéteis reluzindo à luz do sol, ainda repousados em seus devidos lugares, senti a fraqueza do meu corpo, ao imaginar uma daquelas balas passando por meu estômago. Com um clique, recoloquei o pente na arma, puxando em seguida o ferrolho em sua lateral. Uma das balas deslizou para dentro do cano, pronta para ser disparada. Retirei-a manualmente do fio, e pela centésima vez, comecei a repetir o processo. O olhar vagando entre o mecanismo e o horizonte da paisagem. De onde uma fumaça negra se erguia em enormes filetes escuros no céu esbranquiçado.
   O rifle, que eu carregava comigo desde que saímos de uma das torres da base militar e médica agora destruída, era de um modelo desconhecido. “É um Barret” tinha dito Renan há alguns minutos, quando passara por mim com alguns esquilos mortos por ele. Todavia, eu ainda não acreditava, porque apesar do calibre, era uma arma relativamente leve em comparação a sugestão do meu amigo.
   Ouvi ainda distraído alguns tiros abafados pela distância. Mais pareciam estalos de um objeto qualquer. Era como estar ao lado de uma zona de guerra. Mas aquilo era normal, com o passar do tempo, apenas se tornava mais raro. Agora tinham menos pessoas ainda vivas para atirar.

-Matheus, dá uma ajuda aqui com a fogueira – Falou a Amanda, passando por mim com alguns gravetos. Marcos e Lucas tinham dado uma volta a pé pelas redondezas, procurando por qualquer coisa útil na estrada. Michele e David haviam sumido há algum tempo, mas nada indicava que não estivessem bem. Aliás, deviam estar se divertindo...
   Como o tempo mostrou, eu era uma das poucas pessoas que não fazia nada além de olhar em volta e pensar na própria vida. Eu era um inútil, mas as pessoas pareciam não perceber isso. Desci do capô e andei atrás de Amanda. Deixei a poderosa arma ao lado da M16 do meu amigo, as duas inclinadas apoiadas em um pequeno toco de madeira.

-Espero que o que aconteceu ontem não mude nada entre nós. - Disse Amanda de repente.
-Ãnh... Mudar o quê? A gente não se conhece há muito tempo...
-Você não entendeu! - Cortou ela. - O que eu estou dizendo é que não vou parar de correr pela minha vida se você ficar para trás ou algo assim. Não vou por minha própria segurança em risco só porque eu gosto de você, e espero que aja assim também. - Finalizou, me olhando fixamente.
-Então você gosta de mim? - Perguntei descontraído.
-Não é esse o ponto! - Disse ela, sorrindo. Me deu um tapa no ombro, sem muita força, e nos beijamos mais uma vez. Não demorou muito para que esquecêssemos daquele assunto.
Fazer uma fogueira, sinceramente, era bem mais difícil do que parecia. Depois de umas vinte tentativas frustradas e inúmeros pequenos cortes nas mãos, foi animador quando vimos Marcos se aproximar com um isqueiro.

- Dá uma angústia, sabem? - Disse ele, enquanto entregava o acendedor para Amanda. - Saber que o meu querido Zippo está em algum lugar daqueles escombros... - Falava tristemente, enquanto olhava sobre o ombro para a nuvem negra de fumaça que se erguia atrás do morro.
-Quem é Zippo? - Sussurrou Amanda, como se tivesse perdido alguma coisa importante.
-O isqueiro dele. - Respondi, com um sorriso. -Cadê o Lucas? Achei que ele estava com você. -
-Ah... - Marcos retornava ao mundo real. - Bom, o caro Lucas encontrou um violão. E está brincando com ele na estrada, a uns oitocentos metros a frente. Eu disse para ele que não era seguro tocar por aqui.-
-Um violão? - Perguntamos em coro eu e Amanda. Não sei porque exatamente, mas aquilo me deixara animado.
   Olhei na direção indicada, mas tudo o que eu via eram carros abandonados e grosseiramente deixados para trás. Em alguns lugares, pequenos focos de incêndio erguiam nuvens de fumaça que impediam ainda mais a visão.
   Senti o cheiro do esquilo começando a assar na fogueira, e Renan nos olhava do outro lado da fogueira, largado no chão confortavelmente. Seu braço ainda coberto por uma camiseta e pendurado no seu pescoço como num gesso. Sem camisa, ele tinha o olhar perdido, que voava da cidade no horizonte para as nuvens esbranquiçadas que se moviam preguiçosamente pelo céu.
Caminhei até ele deixando Marcos conversando com a Amanda sobre o que ele e Lucas tinham conseguido no passeio. Renan notou minha aproximação desde o primeiro passo, eu tinha certeza, mas seu olhar não se desviou nem por um instante.
-O que foi? - Perguntou ele sem olhar para mim. Eu me agachei, meio que sentando nos meus próprios calcanhares para olhá-lo no mesmo nível. Seu olhar se moveu lentamente até encontrar o meu.

-O que houve? - Perguntei, com uma expressão neutra. Há algumas horas, eu percebia que tinha algo errado com o meu amigo. Algo que o perturbava.

-Sinceramente... - Seus olhos negros focaram em mim, sem emoção aparente. - O meu braço. Ele está fodido, cara.

Desviei o olhar por um instante. Nunca antes eu tinha visto o Renan admitir uma fraqueza, nem sequer chegar perto disso. Mas agora... Ele falava como se estivesse derrotado, completamente inutilizado pela sua ferida no braço.

-Uma vez... - Comecei eu, lembrando de um tempo que agora parecia distante. De um tempo onde crianças corriam pelas ruas e jogavam bola sem medo de fazer barulhos ou qualquer tipo de desconfiança. -Você me disse que nunca podemos ficar para baixo. Porque o mundo nos derrota ainda mais ou algo assim. - Eu falei com toda a convicção, da forma mais profunda que pude. Renan, apesar disso, apenas riu por alguns segundos, antes de falar alguma coisa.

-Nem pra lembrar do que eu falei, cara? - Ele parou novamente para soltar uma breve risada. - Eu disse: “Para te derrubarem, terão que te matar primeiro. Para te matar, terão que matar seus amigos primeiro. E para matar nossos amigos, é melhor tentarem com no mínimo cinco exércitos.”

Por um momento eu refleti sobre as palavras ditas. Agora, não parecia haver sentido falar tal coisa em tempos tão comuns.

-E pra que você falou isso, mesmo? - Perguntei

-Ah, sei lá. - Disse Renan com o olhar perdido novamente. Mas dessa vez, havia um quê de felicidade em sua expressão. - Acho que você tinha brigado com o namorado de uma daquelas garotas que gostavam da gente. -

Novamente rimos, gostosamente. Por aquele curto momento, tudo era tranquilo. Naquele breve instante, pudemos esquecer que todas aquelas pessoas de quem falávamos estavam mortas, que Luís morreu ao tentar seguir nossos passos, e João pelo mesmo motivo. Esquecemo-nos por alguns segundos que Michele e David estavam desaparecidos, e o Lucas, afinal, ninguém sabia onde estava.


   Uma melodia agradável soava não muito longe. De forma lenta e continua, um grupo incontável de infectados marchava em sua direção. Os acordes doces e suaves da música não faziam diferença para a audição já prejudicada dos desmortos. Grunhiam cambaleavam enquanto continuam a caminhar pelo asfalto do dia quente. Com queimaduras por todo o corpo, soldados e civis mordidos se aproximavam cada vez mais do pequeno grupo na estrada. Alguns metros a frente, um jovem tocava violão despreocupadamente.

3 comentários:

  1. cara, você descreve o ambiente e as sensações muito bem!

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  2. Ooi! Olha, depois de muito tempo consegui voltar a acompanhar todas as histórias que tava lendo antes do meu pc quebrar haah. Muito bom como sempre! Acho que a Nathalia poderia aparecer em Mangaratiba né? hahaha

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