domingo, 4 de maio de 2014

Capitulo 21 - Uma -nem tão- Calma Viagem

   Estrada. De tempos em tempos, Marcos era forçado a contornar alguns veículos abandonados, o quê nos forçava a sair da pista. Uma ou duas vezes, isso significou termos que sair do próprio carro para desatolá-lo. E isso se repetiu algumas vezes. Lembro muito bem, porque meu corpo já estava dolorido antes de começar o esforço. Empurrar um carro naquele estado foi fenomenal.
    Depois umas duas horas, a situação se acalmou, e a pista limpou. É um saco não saber as horas... Juro que daria tudo para ter o meu relógio de volta.
   Após algum tempo rodando, ficava cada vez mais raro encontrar qualquer veículo na estrada. Bem clima de interiorzão mesmo. Pegamos um retorno que levava a uma rota secundária, e em alguns trechos nem asfalto tinha. A grama alta esvoaçava às margens da rua de barro. Acima de nós, um céu azul se estendia ao horizonte.
   Dentro do carro, a situação era engraçada: Michelle e David estavam do meu lado, procurando em vão por uma posição confortável. Nós havíamos ajeitado algumas coisas para que ficássemos com o espaço bem dividido. Agora o violão estava no banco de trás com Renan e Lucas, e o meu rifle estava entre os meus joelhos. Mesmo assim, alguma coisa simplesmente não nos deixava ficar a vontade ali. E eu tinha quase certeza que isso era referente as garrafas d'água mal fechadas -depois eu descobri que uma delas estava furada mesmo- que ficavam pingando em nossos colos.
Eu estava bem. Olhei para trás e encontrei Renan com o violão em seu colo. Ele tinha retirado o pano que cobria o seu braço machucado, e eu pude ver o quê tinha acontecido com ele. Para ser bem sincero, preferia não ter visto. Por todo o membro, uma coloração vermelho vivo se estendia, e em algumas partes haviam pedaços de pele que pareciam costurados ao seu corpo, grudados desarmonicamente ao seu braço. Em alguns lugares, bolhas enormes e esbranquiçadas se eriçavam ameaçadoramente da sua pele. Não parecia saudável. Ele, no entanto, não demonstrava preocupação. Seu olhar estava distante, e ele acariciava o violão. Passava suavemente os dedos pelas cordas, sentindo alguma coisa que só ele sabia o quê era.
   Desejei que eu tivesse algo a dizer. Qualquer coisa agradável e verdadeira que pudesse ser dita. Cheguei a abrir a boca uma ou duas vezes, mas nada disse. Lucas percebeu isso, e se virou à janela sorrindo ironicamente. “Não há nada de bom pra ser falado” ele parecia pensar. Me virei para a frente de novo. Certamente essa minha movimentação tinha incomodado a Michelle, com o espaço apertado, porque ela estava olhando para mim com uma cara não muito feliz. Disse um “perdão” quase inaudível, voltando o meu olhar para a janela.
   Acompanhei os pássaros voando, círculos de abutres no céu. As nuvens iam e vinham. O Sol vagarosamente atravessando o espaço aberto, até beijar o chão. E assim, com um céu de brilho alaranjado e inocente, eu vi o dia virar noite; o azul do céu tornar-se um negro puro e salpicado de estrelas. Eu não via um céu tão lindo assim havia muitos anos. Era noite, finalmente. Um perfeito céu noturno.
   Os negros contornos dos morros no horizonte eram uma visão agradável. Cheguei a me perguntar se em algum lugar daquela imensidão verde haveria um só infectado. Eu tinha certeza de quê a mata era um lugar seguro, pelo menos para eu viver sozinho... Afinal eu sabia o suficiente de técnicas de sobrevivência. Mas não estava sozinho. Eu tinha amigos, e queria mantê-los vivos... Nada de morar na floresta.
   Antes que pudesse evitar, eu me peguei pensando em João. Eu via e revia na minha cabeça o momento em que ele foi atingido por um tiro, na minha frente. Em meus pensamentos, ele caía em câmera lenta, de joelhos. Me olhava nos olhos, implorando viver. E então tombava, o rosto beijando o asfalto. “É sua culpa” Ele dizia, já deitado. A sua voz ecoava mais alto do que eu queria que o fizesse. Eu era forçado a ouvir as mesmas palavras infinitas vezes, e vê-lo caindo infinitas vezes. De repente ele não era mais ele, e sim a minha mãe. Minha mãe. O cabelo molhado em sangue, os olhos lacrimejados. O quão decepcionada ela estaria comigo, naquele momento...
   Limpei uma lágrima, com as costas da mão. Torci para que ninguém tivesse visto aquele momento de fraqueza, me odiando por tê-lo vivido outra vez. Nos últimos dias, isso tinha acontecido com frequência. Tentando desesperadamente me salvar da própria imaginação, eu comecei a olhar em volta, procurando qualquer coisa que me despertasse a atenção, que me deixasse preocupado ou algo assim. Para minha infelicidade, eu encontrei.
   À nossa frente, nada além de mato. A estrada se estendia infinitamente rumo ao horizonte. Atrás de nós, a cena era quase a mesma, exceto que não se via muito longe, porque tínhamos acabado de descer uma pequena elevação do terreno. E no meio de toda essa solidão, nosso carro corria sozinho. A luz de reserva da gasolina estava acesa.

-Irmão – Chamei por Marcos, que se virou com um grunhido interrogativo. - Tá acabando a gasolina- Eu disse enquanto apontava para o painel. Ele observou e concordou com a cabeça.

-É... Já tá acesa faz um tempo. Por isso eu tô andando devagar. - Ele respondeu simplesmente. Eu admirava a capacidade que ele tinha de manter a calma, nessas situações. Me parecia óbvio que não chegaríamos nem perto da cidade.

-Pelos meus cálculos, vamos parar a uns setenta quilômetros de Mangaratiba. - Disse Amanda, segurando o mapa.

-Quê cálculos? - Eu perguntei. Mas ninguém deu a mínima para a minha pergunta.

-Isso dá mais do quê meio dia de caminhada. -Disse Renan. -Quero dizer, sem peso extra. - Essa última parte foi seguida de um olhar significativo para o violão em seu colo. Já eu, olhei para o rifle que eu tinha seguro entre as pernas.

-Na melhor das hipóteses, seria um dia inteiro. - Eu disse. - Mas nós vamos ter que parar para descansar, passar a noite.

-Dois dias e meio, então. - Sugeriu David. - É um tempo aceitável. - Enquanto ele dizia, eu e Renan concordamos com a cabeça, satisfeitos. Dois dias e meio significava que não precisaríamos manter marcha forçada, mas sim uma jornada realmente descansada e tranquila. Afinal, quem estava com pressa?

-Ei, ei – Dizia Andrei. - Não se afobem, vocês. Cês ainda não sabem o quanto eu posso andar com essa belezinha. – ele dava palmadinhas no volante – Meu pai sempre disse que é possível dar uma volta ao mundo... com meio tanque! -

E nesse exato momento, o motor engasgou. Ele tossiu, ronronou, fez todos os barulhos que um motor pode fazer. E então, simplesmente, morreu. Todos em silêncio, o carro andou por mais alguns metros, já sem fazer mais esforço algum. E então parou.

-Mundo pequeno, o do seu pai. - Disse David, simplesmente. Confesso que abafei uma pequena risada, olhando pela janela. E o silêncio engoliu a todos nós.
[…]
   A noite era fria e serena. O céu do interior era completamente estrelado, de forma que chegava a iluminar um pouco as coisas. Porém, sem a luz confiável do Sol, decidimos passar a noite naquele mesmo lugar. Nos ajeitamos da melhor maneira que podíamos, o quê não foi muito. A brisa gelada do sereno penetrava por entre os vidros do carro, nossas respirações embaçando as janelas. Meus olhos não fechavam por muito tempo. Quando não eram os pesadelos ou a dor no pescoço, eu tinha um terrível sentimento de que tinha um maníaco sedento de sangue estaria pronto para me pegar, o outro lado da janela. E então foi isso. Assim se passaram longas horas. A pior noite da minha vida.
Vi o Sol aparecer no horizonte, com profundas olheiras no rosto. O ar ainda era frio. Tão frio que as minhas mãos doíam. Não me lembro de ter passado tanto desconforto na minha vida. O nariz escorria, por causa do mau tempo. E meu pescoço doía também... A posição que escolhi para passar a noite parecia que iria condenar o meu dia inteiro.
   Diferente de mim, os outros pareciam estar dormindo profundamente. Até mesmo Renan. Apesar de as condições não serem tão favoráveis ao sono, o frio era. Eu próprio estava com muito sono, mas não consegui dormir. E assim, depois de algumas horas sozinho com meu próprio silêncio, vi o pessoal acordando em volta de mim. Amanda se virou para mim e deu uma piscadela encorajadora. Dei ali um dos meus raros sorrisos.
   Se passaram algumas horas de procrastinação ainda dentro do carro. Conversamos, todos ainda lentos de sono. Vozes roucas e preguiçosas. O frio aos poucos passou, e o dia prometia esquentar até demais. Saímos do carro e arrumamos tudo. Eu improvisei, com a camiseta do Renan, uma bolsa para as garrafas de água. O violão ficaria para trás. O carro ficaria para trás. Muitas coisas também ficariam.
   Decidimos por unanimidade que carregaríamos as duas armas conosco. E quem diria? Ninguém as queria carregar. Parecia que isso ia de novo caber a mim e ao Renan. E aconteceria isso mesmo se o Marcos não se oferecesse para carregar uma delas. É claro, a do Renan. Afinal, ele estava machucado. Então foi isso, os filhos da mãe realmente me deixaram carregando um rifle pesado pra caralho pela estrada infinita. Eu não reclamei tanto quanto o meu pescoço.
Partimos.
[…]
   Haviam se passado algumas horas de caminhada. Estávamos subindo uma pequena inclinação na estrada. Já era a terceira ou quarta vez que fazíamos algo parecido. Além do pescoço, meus ombros doíam. E as minhas costas. Chegamos ao topo do morrinho felizes por ver a cidade já no horizonte. Os prédios só nos apareciam como manchinhas brancas longes pra caramba, mas estavam lá. E entre nós e a cidade, uma estrada longa e reta na maior parte.
   A má notícia eram os carros. Havia carros. Bastante deles, na verdade. Como enfrentamos no dia anterior, havia um congestionamento de carros abandonados. Dessa vez, dava pra ver alguns infectados caminhando entre eles, também.

-Fodeu. - Disse alguém. Poderia ser qualquer um dizendo. Talvez tenha sido eu. Quem sabe?

-Precisamos de um plano.

-Nós precisamos – Respondia Marcos – Descansar. -