Estrada. De tempos em tempos,
Marcos era forçado a contornar alguns veículos abandonados, o quê
nos forçava a sair da pista. Uma ou duas vezes, isso significou
termos que sair do próprio carro para desatolá-lo. E isso se repetiu algumas vezes. Lembro muito bem, porque meu corpo já estava dolorido antes de começar o esforço. Empurrar um carro naquele estado foi fenomenal.
Depois umas duas horas, a situação se acalmou, e a pista limpou. É um saco não saber as horas... Juro que daria tudo para ter o meu relógio de volta.
Depois umas duas horas, a situação se acalmou, e a pista limpou. É um saco não saber as horas... Juro que daria tudo para ter o meu relógio de volta.
Após algum tempo rodando, ficava cada vez mais raro encontrar qualquer veículo na estrada. Bem clima de interiorzão mesmo. Pegamos um
retorno que levava a uma rota secundária, e em alguns trechos nem
asfalto tinha. A grama alta esvoaçava às margens da rua de barro. Acima de nós, um céu azul
se estendia ao horizonte.
Dentro do carro, a situação era
engraçada: Michelle e David estavam do meu lado, procurando em vão
por uma posição confortável. Nós havíamos ajeitado algumas
coisas para que ficássemos com o espaço bem dividido. Agora o
violão estava no banco de trás com Renan e Lucas, e o meu rifle
estava entre os meus joelhos. Mesmo assim, alguma coisa simplesmente
não nos deixava ficar a vontade ali. E eu tinha quase certeza que
isso era referente as garrafas d'água mal fechadas -depois eu
descobri que uma delas estava furada mesmo- que ficavam pingando em
nossos colos.
Eu estava bem. Olhei para trás e
encontrei Renan com o violão em seu colo. Ele tinha retirado o pano
que cobria o seu braço machucado, e eu pude ver o quê tinha
acontecido com ele. Para ser bem sincero, preferia não ter visto.
Por todo o membro, uma coloração vermelho vivo se estendia, e em
algumas partes haviam pedaços de pele que pareciam costurados ao seu
corpo, grudados desarmonicamente ao seu braço. Em alguns lugares,
bolhas enormes e esbranquiçadas se eriçavam ameaçadoramente da sua
pele. Não parecia saudável. Ele, no entanto, não demonstrava
preocupação. Seu olhar estava distante, e ele acariciava o violão.
Passava suavemente os dedos pelas cordas, sentindo alguma coisa que
só ele sabia o quê era.
Desejei que eu tivesse algo a
dizer. Qualquer coisa agradável e verdadeira que pudesse ser dita.
Cheguei a abrir a boca uma ou duas vezes, mas nada disse. Lucas
percebeu isso, e se virou à janela sorrindo ironicamente. “Não há
nada de bom pra ser falado” ele parecia pensar. Me virei para a
frente de novo. Certamente essa minha movimentação tinha incomodado
a Michelle, com o espaço apertado, porque ela estava olhando para
mim com uma cara não muito feliz. Disse um “perdão” quase
inaudível, voltando o meu olhar para a janela.
Acompanhei os pássaros voando,
círculos de abutres no céu. As nuvens iam e vinham. O Sol
vagarosamente atravessando o espaço aberto, até beijar o chão. E
assim, com um céu de brilho alaranjado e inocente, eu vi o dia virar
noite; o azul do céu tornar-se um negro puro e salpicado de
estrelas. Eu não via um céu tão lindo assim havia muitos anos. Era
noite, finalmente. Um perfeito céu noturno.
Os negros contornos dos morros no
horizonte eram uma visão agradável. Cheguei a me perguntar se em
algum lugar daquela imensidão verde haveria um só infectado. Eu
tinha certeza de quê a mata era um lugar seguro, pelo menos para eu
viver sozinho... Afinal eu sabia o suficiente de técnicas de
sobrevivência. Mas não estava sozinho. Eu tinha amigos, e queria
mantê-los vivos... Nada de morar na floresta.
Antes que pudesse evitar, eu me
peguei pensando em João. Eu via e revia na minha cabeça o momento
em que ele foi atingido por um tiro, na minha frente. Em meus
pensamentos, ele caía em câmera lenta, de joelhos. Me olhava nos
olhos, implorando viver. E então tombava, o rosto beijando o
asfalto. “É sua culpa” Ele dizia, já deitado. A sua voz ecoava
mais alto do que eu queria que o fizesse. Eu era forçado a ouvir as
mesmas palavras infinitas vezes, e vê-lo caindo infinitas vezes. De
repente ele não era mais ele, e sim a minha mãe. Minha mãe. O
cabelo molhado em sangue, os olhos lacrimejados. O quão decepcionada
ela estaria comigo, naquele momento...
Limpei uma lágrima, com as
costas da mão. Torci para que ninguém tivesse visto aquele momento
de fraqueza, me odiando por tê-lo vivido outra vez. Nos últimos
dias, isso tinha acontecido com frequência. Tentando
desesperadamente me salvar da própria imaginação, eu comecei a
olhar em volta, procurando qualquer coisa que me despertasse a
atenção, que me deixasse preocupado ou algo assim. Para minha
infelicidade, eu encontrei.
À nossa frente, nada além de
mato. A estrada se estendia infinitamente rumo ao horizonte. Atrás
de nós, a cena era quase a mesma, exceto que não se via muito
longe, porque tínhamos acabado de descer uma pequena elevação do
terreno. E no meio de toda essa solidão, nosso carro corria sozinho.
A luz de reserva da gasolina estava acesa.
-Irmão – Chamei por Marcos, que
se virou com um grunhido interrogativo. - Tá acabando a gasolina- Eu
disse enquanto apontava para o painel. Ele observou e concordou com a
cabeça.
-É... Já tá acesa faz um tempo.
Por isso eu tô andando devagar. - Ele respondeu simplesmente. Eu
admirava a capacidade que ele tinha de manter a calma, nessas
situações. Me parecia óbvio que não chegaríamos nem perto da
cidade.
-Pelos meus cálculos, vamos parar a
uns setenta quilômetros de Mangaratiba. - Disse Amanda, segurando o
mapa.
-Quê cálculos? - Eu perguntei. Mas
ninguém deu a mínima para a minha pergunta.
-Isso dá mais do quê meio dia de
caminhada. -Disse Renan. -Quero dizer, sem peso extra. - Essa última
parte foi seguida de um olhar significativo para o violão em seu
colo. Já eu, olhei para o rifle que eu tinha seguro entre as pernas.
-Na melhor das hipóteses, seria um
dia inteiro. - Eu disse. - Mas nós vamos ter que parar para
descansar, passar a noite.
-Dois dias e meio, então. - Sugeriu
David. - É um tempo aceitável. - Enquanto ele dizia, eu e Renan
concordamos com a cabeça, satisfeitos. Dois dias e meio significava
que não precisaríamos manter marcha forçada, mas sim uma jornada
realmente descansada e tranquila. Afinal, quem estava com pressa?
-Ei, ei – Dizia Andrei. - Não se
afobem, vocês. Cês ainda não sabem o quanto eu posso andar com
essa belezinha. – ele dava palmadinhas no volante – Meu pai
sempre disse que é possível dar uma volta ao mundo... com meio
tanque! -
E nesse exato momento, o motor
engasgou. Ele tossiu, ronronou, fez todos os barulhos que um motor
pode fazer. E então, simplesmente, morreu. Todos em silêncio, o
carro andou por mais alguns metros, já sem fazer mais esforço
algum. E então parou.
-Mundo pequeno, o do seu pai. -
Disse David, simplesmente. Confesso que abafei uma pequena risada,
olhando pela janela. E o silêncio engoliu a todos nós.
[…]
A noite era fria e serena. O céu
do interior era completamente estrelado, de forma que chegava a
iluminar um pouco as coisas. Porém, sem a luz confiável do Sol,
decidimos passar a noite naquele mesmo lugar. Nos ajeitamos da melhor
maneira que podíamos, o quê não foi muito. A brisa gelada do
sereno penetrava por entre os vidros do carro, nossas respirações
embaçando as janelas. Meus olhos não fechavam por muito tempo.
Quando não eram os pesadelos ou a dor no pescoço, eu tinha um
terrível sentimento de que tinha um maníaco sedento de sangue
estaria pronto para me pegar, o outro lado da janela. E então foi
isso. Assim se passaram longas horas. A pior noite da minha vida.
Vi o Sol aparecer no horizonte,
com profundas olheiras no rosto. O ar ainda era frio. Tão frio que
as minhas mãos doíam. Não me lembro de ter passado tanto
desconforto na minha vida. O nariz escorria, por causa do mau tempo.
E meu pescoço doía também... A posição que escolhi para passar a
noite parecia que iria condenar o meu dia inteiro.
Diferente de mim, os outros
pareciam estar dormindo profundamente. Até mesmo Renan. Apesar de as
condições não serem tão favoráveis ao sono, o frio era. Eu
próprio estava com muito sono, mas não consegui dormir. E assim,
depois de algumas horas sozinho com meu próprio silêncio, vi o
pessoal acordando em volta de mim. Amanda se virou para mim e deu uma
piscadela encorajadora. Dei ali um dos meus raros sorrisos.
Se passaram algumas horas de
procrastinação ainda dentro do carro. Conversamos, todos ainda
lentos de sono. Vozes roucas e preguiçosas. O frio aos poucos
passou, e o dia prometia esquentar até demais. Saímos do carro e
arrumamos tudo. Eu improvisei, com a camiseta do Renan, uma bolsa
para as garrafas de água. O violão ficaria para trás. O carro
ficaria para trás. Muitas coisas também ficariam.
Decidimos por unanimidade que
carregaríamos as duas armas conosco. E quem diria? Ninguém as
queria carregar. Parecia que isso ia de novo caber a mim e ao Renan.
E aconteceria isso mesmo se o Marcos não se oferecesse para carregar
uma delas. É claro, a do Renan. Afinal, ele estava machucado. Então
foi isso, os filhos da mãe realmente me deixaram carregando um rifle
pesado pra caralho pela estrada infinita. Eu não reclamei tanto
quanto o meu pescoço.
Partimos.
[…]
Haviam se passado algumas horas
de caminhada. Estávamos subindo uma pequena inclinação na estrada.
Já era a terceira ou quarta vez que fazíamos algo parecido. Além
do pescoço, meus ombros doíam. E as minhas costas. Chegamos ao topo
do morrinho felizes por ver a cidade já no horizonte. Os prédios só
nos apareciam como manchinhas brancas longes pra caramba, mas estavam
lá. E entre nós e a cidade, uma estrada longa e reta na maior
parte.
A má notícia eram os carros.
Havia carros. Bastante deles, na verdade. Como enfrentamos no dia
anterior, havia um congestionamento de carros abandonados. Dessa vez,
dava pra ver alguns infectados caminhando entre eles, também.
-Fodeu. - Disse alguém. Poderia ser
qualquer um dizendo. Talvez tenha sido eu. Quem sabe?
-Precisamos de um plano.
-Nós precisamos – Respondia Marcos – Descansar. -
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