Silêncio. Com a visão turva, eu enxergava nada além de uma enegrecida fumaça esvoaçar para todas as direções. Um véu negro de fuligem e cinzas me impediam de ver o azul do céu logo acima de mim. Luzes vacilantes de chamas iluminavam os escombros, deixando tudo com uma aparência avermelhada.
A poeira tinha tomado conta de tudo, vultos enegrecidos vagavam de um lado ao outro, por entre grandes pedaços de concreto e carros revirados. Eu ouvia vozes distantes e vazias, e um zumbido forte ainda ecoava na minha cabeça. Tossia desenfreado, engasgado com a poeira que adentrava-me os pulmões.
Meu corpo todo doía, e havia escoriações pelas minhas costas e braços. Eu sabia que em dado momento, eu tinha caído do carro que ainda corria. Meus amigos... Eu não tinha ideia de onde estavam. Lembrava apenas de ver Marcos deslizando para longe, rolando pelo asfalto, quando pulou para fora do veículo.
Sem saber onde estava, esfreguei os meus olhos com as costas das mãos. Foi tudo em que eu consegui pensar naquele momento. Enxerguei com certa dificuldade, Marcos rastejando dentre os escombros. Minha visão hesitava, ficando turva e melhorando alternadamente. Ele estendia a mão para frente, sem nada no campo de visão.
Apoiei os braços em uma estrutura metálica e me levantei, soltando um grunhido de esforço. Percebi que estava mancando inconscientemente, enquanto tentava andar até Marcos. Era a única pessoa conhecida que eu avistava. Ao meu redor, eu via de tudo: Carros prensados contra rochas, veículos presos debaixo de escombros, corpos dependurados nas estruturas. Pessoas gemiam e gritavam enquanto tentavam salvar suas vidas.
Eu estava caminhando na direção de meu amigo quando notei um pedregulho se mexendo poucos metros a minha frente. Ele levantava alguns centímetros e caía novamente, como se estivesse sendo forçado por baixo. Inicialmente me assustei e parei de andar, mas logo disparei uma leve corrida até o local.
Apressado, eu senti a dor nos joelhos quando me joguei no chão duro, com as articulações dobradas. Uma onda de choque se propagou por toda a minha perna, mas eu não liguei. Tentava ajudar desesperado quem quer que fosse. Podia ser Renan, ou Amanda...
Eu puxava a pedra para cima e para trás, fazendo com que ela se desencaixasse do restante. Era tão pesada que os meus músculos doíam pelo esforço. Era como se fosse impossível tirá-la dali, até que por um milagre, o impedimento deslizou sobre outra rocha e desobstruiu a passagem. De imediato, uma fumaça branca saiu do lugar e se dispersou.
-Lucas! - Gritou um jovem empoeirado. Empoeirado era pouco, ele estava completamente cinza mesmo. Ainda tossia quando ajudei-o a sair do buraco. Estava tão diferente que eu demorei alguns segundos para reconhecer David.
-Ãnh... Eu sou o Matheus. - Respondi brevemente. Mas ele não estava me ouvindo, apoiou-se em uma estrutura de metal enferrujada e esticou o braço para dentro do buraco de onde saíra.
-Segura na minha mão! - Ele gritou. No momento seguinte, assisti surpreso o rapaz puxar Michele para cima, com uma só mão, rangendo os dentes de esforço. A garota largou-se no chão, caindo com o corpo mole.
Parecia exausta. Usou as últimas de suas forças para agradecer ao jovem, que acabara de tirar a moça dali.
David havia se largado no concreto ao lado de Michele, com a respiração ofegante. Seu peito subia e descia a cada inspiração. Michele olhava para ele, que estava de olhos fechados. Era impossível saber no que o rapaz estava pensando.
De repente, um braço se esticou para fora do buraco e se agarrou no chão. Com uma força tremenda, Renan se puxou para fora. Suspirando de dor, rolou para o lado. Todo o seu braço esquerdo estava coberto de queimaduras e bolhas. Corri até ele de olhos arregalados, sem saber o que fazer.
“É impossível” Eu dizia para mim mesmo “O Renan nunca se machuca”. Agachei próximo ao meu amigo e tirei minha camisa. Sacudi-a fortemente para tirar a poeira, e então amarrei em torno da sua ferida, enquanto ele cerrava os dentes.
-Está tudo bem... Salve os outros. - Dizia Renan, enquanto se levantava. Estava quase tão sujo quanto eu. -Eu vou ficar bem, você sabe. - Disse ele com um sorriso, se esforçando para não deixar que a dor lhe superasse.
Ajudei meu amigo a se levantar, enquanto nós olhávamos em volta. Soldados pegavam suas armas e andavam observando o que tinha acontecido. A fumaça baixou, e eu percebi que ainda não estávamos à céu aberto. Acima de nossas cabeças, um grande pedaço contorcido e rachado de concreto representava o que restou do tunel. Uma luz se via a uns cinquenta metros a frente.
Algumas pessoas mancavam, outras estavam seriamente feridas, de forma que nem vale a pena comentar. Muitas tinham morrido. Olhei para o caminho de onde viemos. Havia nada mais que uma pilha de rochas gigantes, do tamanho de ônibus. Os escombros me tampavam totalmente a visão de alguma parte da base militar que fugimos.
-Por aqui. - Disse uma voz atrás de mim. Me deparei com Lucas de pé e ofegante, com arranhões leves no rosto. Marcos, que eu vira rastejando alguns momentos atrás, estava apoiado em seu ombro, parecia desacordado. Amanda se encontrava parada atrás dos dois, aparentemente ilesa. Ela fitava o pequeno ponto no fim do túnel, de onde saía uma agradável luz esbranquiçada, que passava a sensação de tranquilidade e esperança.
David e Michele, que até poucos segundos atrás estavam deitados e conversando baixinho entre eles, tinham levantado. Assim que começamos a andar, eles já estavam atrás de nós, com a passada um pouco mais lenta. Falavam tranquilamente entre si, trocando sorrisos.
De repente, fomos parados por um homem de aparência ruim. Era um militar de vestes rasgadas e sujas. Apontava seu rifle em nossa direção, quase sem aguentar o peso da própria arma. Andava mancando em nossa direção.
-Nenhum paciente... - Ele tossia. -Pode deixar a base vivo. - Falava o homem, enquanto tentava com o braço esquerdo destravar a arma.
-Que legal! - Exclamou Renan. - E eu achando que iria ficar sem a M16 que eu tinha encontrado! -
Meu amigo se aproximou do homem com um olhar alegre. Eu sabia que o militar não tinha a menor chance, mesmo com Renan ferido. Olhei sem piscar para a rápida luta, se é que poderia se considerar uma luta.
Ao perceber a movimentação em sua direção, o militar ergueu a arma e disparou uma rajada de tiros que ecoou por todo o túnel. Porém Renan previsualizou o movimento e se esquivou, como se deslizando para o lado. Com um único chute, a arma saiu completamente dos braços do soldado, que gemeu de dor ao sentir a coronha do rifle bater em seu rosto. Caiu sentado, o homem. Como que esquecido do agressor, meu amigo simplesmente andou até a arma e a pegou. A essa altura, o soldado enlouquecido já estava desacordado, com seu corpo largado debilmente pelo chão.
-Estão todos bem? - Renan perguntou, andando calmamente ao meu lado. Seu braço tinha uma aparência horrível, diferentemente do que a expressão dele demonstrava. Renan tinha um semblante calmo, como se nada tivesse acontecido. Antes de começarmos a caminhada, ele tinha tirado a blusa e enrolado-a no ferimento, para evitar infecções. Com o seu casaco, fez algo semelhante a um gesso, que deixava o seu braço ferido pendurado em seu pescoço por um fio de tecido.
-Na medida do possível. - Respondeu David, que eu até agora não tinha ouvido falar.
-Eu acho... - Dizia uma voz mais grave, da minha frente. -Que a gente deu sorte.- Marcos dizia, interrompendo a voz a cada pico de dor que sentia.
-Sorte? - Perguntou Lucas, que o carregava. Por um instante, ele interrompeu a passada. -Nós perdemos um amigo. Dois dos nossos melhores homens estão incapacitados! Você acha que isso é sorte? -
Todos se abalaram com as fortes palavras de Lucas. Suas expressões surpresas mesclavam algo entre “Pegou pesado” e “Você não precisava ter dito isso”. De repente, um riso abafado cresceu em meio ao silêncio. Renan tapava o rosto com a própria mão, enquanto soltava uma gostosa gargalhada.
-Eu não estou incapacitado, cara! - Disse ele, casualmente.
-Olhe para o seu braço, você acha que a gente não vê essas bolhas aí?- Insistia Lucas. Lembrei-me que ele não conhecia o lado durão do meu amigo.
-Tudo se resume no que a gente sabe e no que a gente não sabe. - Respondeu Renan, dessa vez com um rosto sério. - Por exemplo: Eu sei que posso te matar mesmo com o meu braço todo ferrado. - Vi o rosto de Lucas se contorcer de raiva, e ele já abria a boca para falar algo. -... Mas o que eu não sei, - Continuou Renan. -É se eu poderia conviver comigo mesmo sabendo que eu matei um amigo meu só porque ele me chamou de “incapacitado”. -
O silêncio reinou outra vez. Nesse momento, já estavam todos parados em um círculo mal feito. Os membros do grupo trocavam olhares entre si. Michele começou a assobiar uma música alegre, completamente desinteressada no assunto que era discutido. Lucas fechou o punho. Renan ainda o olhava de esguelha, sem dar sequer atenção ao jovem irritado.
-Todos nós perdemos amigos, Lucas. - Disse Renan simplesmente, deixando o ar desafiador de lado. Era agora um Renan triste, mas decidido. Lucas parecia surpreso com a repentina mudança da discussão. -Todos nós perdemos parentes... Mas isso não é motivo para perder a calma, ameaçando assim a sobrevivência de todos os outros pelos quais você vem zelando. -
Marcos se soltou de Lucas e dobrou levemente a perna direita, ao tocar o chão com ela. Deu para perceber onde era sua ferida. Uma mancha de sangue encharcava toda a sua calça militar. (Sim, ele pegou um uniforme do exército, junto com o jipe). Sem olhar para nós, deu um passo a frente, na direção da luz. Todos se entreolharam, e entenderam sem trocar uma palavra, que deveriam imitar o gesto. Recomeçaram todos a caminhar, deixando Lucas para trás, com um olhar perdido e cabisbaixo.
Eu era o que estava mais atrás do grupo. Com passos pequenos e vacilantes, me aproximei dele. Ao olhar para mim, vi lágrimas surgirem em seus olhos. Eu nada disse, e ele tampouco. Dei um tapa de leve em suas costas, e convidei-o a nos acompanhar.
Uma fogueira crepitava ao canto da estrada. Nós havíamos saído do túnel há algumas horas atrás. Nosso grupo ria e conversava descontraído, enquanto eu permanecia deitado sobre um pedaço de papelão jogado no acostamento. Acima de mim, um céu estrelado cobria todo o céu. Uma brisa suave soprava meu rosto, me dando uma boa impressão sobre o dia seguinte.
Amanda e Lucas tinham buscado por mantimentos o resto da tarde que tiveram com luz do sol. Em nosso pequeno acampamento, tínhamos garrafas de água e amendoim que dariam para... Menos de um dia. Mas eramos muitos, e tínhamos uns aos outros. Ninguém parecia assustado ou desanimado, além de mim.
Agora, conversavam os dois perto da fogueira. O fogo avermelhado refletia fortemente nos olhos chorosos do meu amigo. Amanda parecia consolá-lo com algumas palavras doces de afeto. Como sempre, tinha aquele ar feliz, que me trazia certa paz. Eu jamais me permitia olhar para ela por muito tempo, sua beleza era desconcertante, de forma que eu não conseguia controlar mais minha fala. Estaria eu apaixonado? Pouco provável, isso não poderia ser verdade.
De um lado a outro, Marcos andava com um cigarro entre os dedos. “Cinco dias sem fumar não é pra qualquer um” Ele dizia sem parar. Michele e David pareciam ter realmente se introsado nas últimas horas. Conversavam mais isolados do restante do grupo, com um ar leve e descontraído.
Renan, como eu, tinha se isolado. Em outro lugar, mais para a escuridão. Eu mal distinguia o seu casaco de capuz a alguns metros de distância noite adentro, onde ele se encontrava sentado no capô de um carro, abraçando as próprias pernas, com o olhar perdido.
-O que será de nós agora? - Perguntou Amanda, sentando em minha frente. Carregava consigo duas garrafas de água. Ao sentar-se, me ofereceu uma delas, que aceitei de bom grado. Tinha como sempre aquele olhar vivo e brilhante, que me animava instantaneamente.
-Eu não sei. - Respondi, retribuindo o olhar com um sorriso. Abri a garrafa e dei uma golada.
-Isso sim é novidade. - Disse ela rindo. - Você sempre sabe o que dizer, o que fazer. -
-Ãnh? Não, esse é o Ren...
-Não, estou falando de você mesmo! - Falava ela, sorrindo. -Você pode estar sempre no seu canto, desanimado, mas quando surge algum problema, é também o primeiro que se esforça para resolver.
-Não, eu nunca sei...
-Você é incrível... - Dizia ela, um pouco mais timida agora. Algo que ela falou ou iria falar parecia deixá-la envergonhada. -Eu gosto de você. - Disse baixinho, quase num sussurro. Amanda não sorria, não demonstrava emoção. Seu rosto, rosado, parecia ainda mais belo. Ela me encarava com aqueles grandes olhos castanhos, esperando ansiosa por algum tipo de resposta.
Por um momento, um silêncio pairou sobre a cena. À nossa volta, ninguém mais parecia ter ouvido o que ela falara. Gosta de mim? Era muita sorte para ser verdade.
-Eu acho que... - De repente, estávamos nos beijando.
Eu não sei exatamente quando aconteceu, ou como, mas já estava acontecendo. Ela tinha lábios doces e macios, que me envolviam de tal forma, que eu já tinha desistido de resistir antes mesmo de tentar. Se aquilo era um sonho, eu não iria querer acordar nunca mais.
Antes que eu pudesse pensar, minhas mãos se envolviam em sua cintura. Eu sentia o calor de seu corpo, a doçura de sua pele. Eu sentia suas mãos deslizarem pela minha camisa...
-Hey, Matheus! Eu vou precisar de voc... - Marcos parou de falar, observando o que tinha acontecido. Assustados, eu e Amanda nos separamos imediatamente. Olhávamos para ele nervosos, eu sabia que eu pelo menos, estava também feliz.
-Ah – Dizia ele, incomodado por nossos olhares – Sinto que interrompi alguma coisa...
-Não, não interrompeu nada. - Apressou-se Amanda a dizer, enquanto se levantava. -Eu já estava de saída.
-Anh... Então tá. - Falou Marcos, um tanto desconfiado. -Matheus, se importa em vir comigo um instante? Preciso de alguém para me ajudar a fazer outra fogueira.
Concordei com um aceno de cabeça, e olhei disfarçadamente para Amanda, que se afastava sorrindo. Dei um sorriso para mim mesmo, enquanto levantava. Naquela noite, nada de ruim poderia estragar a minha felicidade.