quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

História Paralela - Renan Lima

   A rua estava fria e deserta. Escuridão adentro, uma figura solitária caminhava levando nada mais que uma pá em seus braços. Tinha também uma mochila em bom estado nas costas, mas que de fato não continha nenhuma arma. Seguia por uma pista deserta, cheia de carros que ainda pegavam fogo e iluminavam a cidade enegrecida numa luz vermelha e vacilante.
   Há alguns minutos, tinha se despedido do seu melhor amigo. Deixara ele com a mãe em uma loja de roupas no centro da cidade, torcendo pelo melhor. Agora era a hora de ele próprio buscar pela sua família. Tinha quase certeza de que o seu pai sobreviveria. Porém nada sabia a respeito da mãe.
   Renan olhou para trás somente quando pensou ter ouvido um som de motor. Sorriu para si mesmo, enquanto cobria a cabeça com um capuz. “Pelo menos eles vão ficar bem” pensou ao lembrar do ônibus de evacuação que deixara seu amigo esperando. Porém essa certeza logo foi embora quando avistou zumbis saindo de diversos locais. Renan se empoleirou atrás do capô de um carro enguiçado enquanto os desmortos saíam de becos e vielas, correndo em transe na direção do som de motor. Por mais que quisesse ajudar, o rapaz nada poderia fazer. Eles estavam por conta própria.
   Um dos zumbis, porém, notou Renan enquanto passava rente ao veículo abandonado. Hipnotizado, correu na direção do jovem, sedento por sua carne. Renan manteve a calma e lembrou-se do treinamento que tivera. Por alguns segundos pareceu que não reagiria. Porém não se sabe quando, talvez no último segundo, o rapaz se moveu tão rapidamente que foi impossível acompanhá-lo com o olhar. Em um momento, o desmorto tinha conseguido colocar as mãos na camisa dele, e no outro, estava jogado com o rosto contra o asfalto. O jovem apanhou uma barra enferrujada que estava no canto e o posicionou na nuca do infectado, que se contorcia disposto a morder qualquer coisa que conseguisse. Renan usou a pá como um martelo gigante, e deu apenas uma pancada na parte de trás da barra, com a parte de madeira. O desmorto silenciou na hora.
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   O jovem rapaz caminhou solitário por uma longa distância, protegido pela escuridão. Olhou para seu relógio de pulso já quase sem bateria. Os números estavam meio apagados, porém ao que tudo indicavam, eram cerca de três horas da manhã. Abatido pelo cansaço, Renan sabia que precisava de um lugar para dormir. E aquele pequeno bar do outro lado da rua parecera ideal para isso.
   Ao se aproximar, o garoto pôde ver mais claramente o interior do ambiente, por entre tábuas de madeira sobre o vidro. O lugar parecia ter sido barricado por alguém, e sendo assim, era promessa de segurança. Por precaução, talvez, Renan decidiu não incomodar o sobrevivente que estivesse ali dentro. Olhou para a parede do lugar, com o olhar concentrado e analisou-o de um lado a outro.
   Como que decidido, Renan deu um passo na direção do estabelecimento e pegou firmemente um buraco na madeira exterior. Pôs um pé na maçaneta da porta de entrada e deu impulso. O rapaz escalou o bar, empoleirando-se nas telhas do lugar. Antes de adormecer, viu ao longe um trio de encapuzados que atravessaram a rua silenciosamente, se distanciando dele. Feliz por ainda existirem pessoas normais, ele se rendeu ao sono.
   Acordou com o sol a pino. A forte luz do dia queimava cada centímetro de seu rosto, o que o fez virar a cabeça rapidamente. Pensou por um momento em Matheus e Rosana, que naquele momento deveriam estar a salvo em algum lugar bem distante. E dormindo em camas macias, ao invés de passar a noite em um telhado de bar.
   Renan olhou mais atentamente as telhas e percebeu uma chaminé ao canto. Na escuridão da noite passada, nem tinha reparado nesse detalhe. Lembrou-se da barricada que encontrou na entrada do lugar, e na esperança de encontrar sobreviventes lá dentro. Sem pensar muito mais tempo, ele jogou sua sacola de mantimentos chaminé abaixo. E em seguida pulou ele mesmo. Mal pensado.
   A queda foi rápida e impetuosa. Renan espatifou-se em cinzas e carvão. Ficou coberto de pó preto até o último fio de cabelo. Tossia como um asmático, quando resolveu sair da lareira. De repente se via dentro de uma pequena loja, que mais parecia uma padaria. Havia um balcão ao seu lado, e logo a frente um bocado de mesinhas de madeira, para fins sociais. Ao canto um sofá vermelho enorme, acostado na parede. Uma TV estava ligada no alto. Porém uma coisa o surpreendeu ainda mais: A três passos de distância, uma mulher de uns quarenta e tantos anos encarava-o com uma expressão ainda mais assustada que a dele.
-É um deles? - Ela perguntou, dirigindo a voz para o sofá. Levantou-se dali, um senhor também de idade, com um pequeno suspiro de esforço.
-Bom... A não ser que aqueles monstros tenham aprendido a invadir abrigos no melhor estilo papai noel... É um humano. - Falou o senhor de idade, abaixando os seus óculos fundo de garrafa para analisar melhor o pequeno projeto de gente, preto como carvão. -Meu nome é Antônio. E essa é Suzana. -
-Ãnh... - Começou o garoto, mas foi impedido por um forte acesso de tosse.
-Aqui – Dizia a mulher, que trazia consigo um copo de água. -Beba isto. - Ofereceu com um sorriso.
   Renan não fez cerimônia e bebeu o líquido de uma só golada, satisfeito por ter água gelada para tomar. Imediatamente, já se sentia um pouco melhor. Levantou-se sem dificuldades e bateu nas próprias roupas, tentando em vão se livrar de toda aquela sujeira.
-Vocês não teriam um pouco de carne seca aí? - Perguntou, enquanto dava uma olhada nas prateleiras.
-Carne seca? - Repetiu o idoso, incrédulo. -Onde você acha que estamos? Num bar? -
-Com todo o respeito, senhor... Foi isso mesmo que eu achei. Onde estamos, afinal?
-Numa padaria, filho. - Esclareceu a mulher, que puxava uma cadeira para se sentar. - Não em qualquer uma, mas na melhor do bairro. Prove um de nossos pães doces! - Ofereceu, apontando para suculentos doces na vitrine do balcão. Agradecido, Renan também pegou um de bom grado. Quando iria se afastar do balcão, porém, avistou um homem no chão. Um homem uniformizado como funcionário da padaria. Tinha um enorme rombo na parte de trás da cabeça, que formara uma poça de sangue no azulejo. Percebendo o seu ar de surpresa, talvez, a mulher se adiantou a explicar a situação:
-Era um deles. - Ela disse, com olhar arrependido. - Um daqueles monstros. Ele tentou me matar e... E... -
-Eu tive que lhe arrancar os miolos. - Interrompeu o idoso, vendo que a mulher começava a irromper em lágrimas. -Mas nenhum de nós teve coragem de tirá-lo daqui porque...
-Ele é o meu filho! O meu filho! - Dito isso, Suzana correu chorosa para os fundos da padaria.
   Por alguns segundos, Antônio pareceu triste, um pouco envergonhado até. Mas essa sensação desapareceu da cabeça de Renan assim que ele puxou uma bela espingarda de dois canos por detrás do sofá avermelhado.
-Essa belezinha aqui... - Dizia orgulhoso da arma, nem sequer olhava para Renan. - É o que nos manteve vivos até agora. -
-Tinha mais alguém aqui? - Perguntou o jovem, tentando desviar o foco da conversa.
-Tinha sim. Uma garota chamada Karen.
-O que houve com ela?
-Foi embora. - Dizia Suzana, que se aproximava novamente, limpando os olhos com um lenço.
-Embora? Por quê? Aqui é tão seguro!
-Não é tão seguro quanto parece, meu jovem.
- Aliás, qual o seu nome? - Perguntou Antônio.
-Renan. Que houve com a garota?
-Ah! Nada de mais! - Dizia Suzana, pensativa. Era como se em sua mente estivesse revivendo os momentos. - Passou um homem aqui, um tal de Caio. E quis levá-la com ele. Eram dois pombinhos.
-Ficaram bem, os dois? - Perguntou Renan, agora até um pouco mais interessado no casal ousado.
-Ninguém sabe. - Respondeu o idoso. - Mas a minha sugestão é que não duraram nem dez minutos lá fora. Era um medroso, sabe? Esse Caíque...
-É Caio, seu velho caduco! - Corrigiu Suzana, enquanto gargalhava. Renan a achava corajosa simplesmente por zombar de um homem armado. Não sabia se faria o mesmo.
   O clima era bem amigável dentro da padaria. Aquelas pessoas simples não pareciam assassinas. E ao mesmo tempo, também não pareciam preocupadas em relação a tudo o que acontecia lá fora. Era uma sensação única estar naquele ambiente tranquilo.
-O exército está agindo, sabia? - Disse Suzana, enquanto aumentava o volume da TV.
   No noticiário, um repórter vestia um colete a prova de balas de cor azul. Atrás dele, soldados disparavam em todas as direções. Pessoas corriam assustadas de um lado a outro. Ao fundo, passavam helicópteros deixando mais soldados no campo de batalha. A câmera tremia.


Tropas militares foram acionadas e já começaram o cerco na cidade do Rio de Janeiro, apesar de existirem indícios de casos em outros lugares do... O que é isso?”


   Mais a frente, um grupo de pessoas encapuzadas corria na direção de um furgão preto. Carregando apenas armas brancas, os homens e mulheres pareciam deslizar pelas ruas, até o veículo. Não se viam os golpes, mas qualquer indivíduo que entrasse em seu caminho era simplesmente derrubado.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Os lobos azuis – Renan disse para si mesmo, tão baixo que nem o próprio ouviu suas palavras. No momento seguinte, tomado por uma coragem descomunal, ele começou a enfiar pães e outros alimentos dentro do seu saco imundo de suprimentos.

-TV a cabo. - Dizia Antônio com um sorriso orgulhoso. - Eu sempre soube que eram mais confiáveis. - O senhor sorria enquanto continuava a assitir o noticiário, enquanto Suzana fazia o mesmo.


-Renan, pelo que percebo você vai seguir viagem. - Disse Antônio, reparando nos maus modos do garoto.
-Bem... Sim. -
-Não precisa ir assim. - Disse ele. Renan não sabia se o idoso estava se referindo ao estado de seu corpo, ainda negro de cinzas e carvão ou ao fato de ele estar pegando comida dos dois sobreviventes. No final, acabou entendendo que era um pouco dos dois. -Vá tomar um banho, filho. Eu preparo a sua mala. -
-Banho? - Renan não tomava banho desde o dia anterior, e pela manhã cedo, quando se preparou para ir à escola. Desde então, todo o tipo de sujeira tinha se acumulado na sua pele e em suas roupas. Porém ele trazia na sacola um conjunto a mais, que pegara na loja onde se despediu de Matheus.
-Isso mesmo. Tem um pequeno banheiro nos fundos. Era para os funcionários mesmo. - Dizia o idoso. - Mas você pode usá-lo. -


   De fato, o banheiro era bem simples. Havia um espelho bem sujo sobre a pia, uma privada já sem tampa e o chuveiro não tinha sequer uma cortinazinha para fechar. Restou mesmo fechar a porta, que funcionava por ferrolho, e não maçaneta.
   Porém todo o pessimismo foi embora quando a água quente molhou-lhe o rosto. Esquentou agradavelmente suas costas. Naqueles dez minutos que passou se banhando, Renan sentia felicidade. Era como se nada mais pudesse abatê-lo. Ele estava renovado. Lembrou-se então do que Renato lhe falara há algum tempo. “Se qualquer coisa der errado” ele dizia, com seu ar calmo. “Todos os Lobos se reunirão em Mangaratiba.”
   Ao sair do banho, foi surpreendido por uma nova mochila. Antônio havia preparado tudo o que lhe possuía em uma mochila estudantil. Renan estava coberto da cintura para baixo em uma toalha azul marinho muito macia. Vestiu-se ainda no banheiro, antes de ir novamente até os anfitriões.
   Caminhou até lá de mochila nas costas, pronto para partir. Chegou na sala e se deparou com os dois, que aguardavam de pé entre as mesas na entrada. Antônio já havia retirado grande parte das tábuas de madeira que barricavam a porta, e já estava tudo pronto para sua saída.
-Vá com Deus, filho. Espero que consiga encontrar sua família. -
   Pela tarde, os dois haviam conversado bastante. Trocaram ideias de sobrevivência, pontos de resgate e papearam sobre todo o tipo de coisa. Renan já sabia sobre um tal Fortaleza Norte, e a Fortaleza Oeste... Sabia também de alguns grupos de sobrevivência e um tal de William também, que vivia aparecendo na TV. William Eckle Brooks.
   Feliz e surpreso, Renan viu que já havia escurecido. Seria uma viagem tranquila e fresca pela escuridão noturna. Checou visualmente sua calça jeans e olhou para o casaco preto que vestia. Vagarosamente, puxou o capuz até que lhe cobrisse o rosto em sombras.
-Mangaratiba. - Repetiu para si mesmo em um tom sombrio. - É para lá que eu vou. -

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