segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Capitulo 17 - A última fuga

   O caos era completo. De um lado a outro da base, soldados e civis corriam desesperados se esquivando dos infectados raivosos. Pessoas caindo... Sendo pisoteadas. No meio da confusão, reparei que os atiradores disparavam agora contra todos os fugitivos, além dos desmortos. Civis caíam em plena fuga, rolando pelo chão áspero do exterior, envoltos em gritos e morte.
   Quando Renan me viu, um sorriso surgiu em seu rosto instantaneamente. Era como rever um velho amigo, um amigo de infância. Pareciam anos, o tempo que passei sem vê-lo. Para ser sincero, não esperava encontrá-lo novamente. Pelo menos não vivo.
-Matheus! - Ele disse, surpreso. Em meio ao pânico e correria, ele só aumentou um pouco a velocidade da passada em minha direção, carregando o fuzil M16 que pegara de um soldado. Apoiava a arma no ombro, como se já estivesse bem familiarizado com ela.
   Cumprimentou-me com um abraço apertado que me deixou sem fôlego. A sua felicidade estava estampada no rosto, tal como a minha. Por um momento, as pessoas no carro ficaram sem palavras. O único que também conhecia o Renan era Lucas, que no momento estava mais preocupado com um zumbi que se aproximava pela lateral.

-Fez amigos, hein? - Perguntou Renan, descontraído. Tinha um sorriso fácil, diferente do Renan que eu conhecia antes. Subindo na caçamba do jipe, ele olhou em volta e percebeu o que não tínhamos notado até então. Enquanto Marcos manobrava velozmente por dentro do cercado, acabamos por perceber que não tinha nenhuma saída visível. Outros carros que tentavam sair ao redor acabavam por bater em alguma coisa ou dirigir desgovernados pelo pátio. Lembro de ver uma mulher ser arremessada no ar a uns três metros de altura, quando atingida por um blindado.
    Os portões estavam todos fechados, e as grades, sendo abertas por centenas de desmortos carnívoros. Estávamos numa ilha de morte. Sem pensar muito bem, saltei pelo beiral da caçamba e corri na direção de uma das torres. Vi um desmorto em minha frente se adiantar na minha direção e ouvi um disparo. A cabeça dele estourou em um vermelho vivo, derrubando-o. Foi tão simples e rápido que eu sequer parei minha corrida. Renan estava me seguindo, e me dando cobertura com o rifle de assalto.
   Ao entrar pela pequena porta de ferro no térreo, me deparei com uma longa escada em espiral que subia em círculos intermináveis até o ponto de onde o atirador se posicionava. Na minha mente, lá também deveria ficar um painel que controlasse os portões. Renan não me perguntou nada, simplesmente me seguia, checando os arredores.
   Cheguei já cansado ao ponto de vigília. Como eu imaginei, um longo painel eletrônico se estendia por toda a pequena sala circular. Na varanda, um homem uniformizado e de colete disparava com uma arma de luneta em seus alvos por todo o pátio. Ele matava humanos e desmortos, indiferente. Fiz um gesto para Renan manter o silêncio, e puxei o homem para trás pelas roupas repentinamente,  tapando-lhe a boca. Ele gemeu e lutou por pouco tempo. No momento seguinte, havia sido arremessado pela outra varanda do lado oposto. Com gritos de desespero, ele fez sua curta jornada até o chão. E então os gritos cessaram. Sua arma estava agora em minhas mãos.

-Nossa. - Foi tudo o que Renan disse, com uma expressão impressionada no rosto. - Achei que você não fosse de matar inocentes. -

   Calado pelo ar de acusação na frase, eu nada respondi. Desviei o olhar e comecei imediatamente a apertar todos os botões que eu julgava serem os corretos. O rifle sniper balançava pendurado em minhas costas pela bandoleira.

-Inocentes... Não mato inocentes. - Respondi com algum atraso. Renan olhou mais uma vez para o corpo estendido do militar no chão há alguns metros e entendeu o que eu quis dizer. Ele acenou com a cabeça com uma expressão de “tem razão”.
   Eu continuava a apertar alguns botões quando ouvi um som terrivelmente diferente cortando toda a confusão. Era um barulho como se mil trombetas fossem tocadas juntas e descompassadas, como o metal de um navio se torcendo antes de ceder. Olhei pela varanda para ver o que estava acontecendo.
   Era inimaginável. Do piso no pátio, uma parte do chão afundava, deixando um vão escuro a frente. O pedaço de terra descia diagonalmente enquanto o vão só aumentava. Fiquei mais perplexo ainda ao perceber que formava uma rampa. Uma ladeira que levava a nada além da escuridão. Ao parar de se mover, um apito soou alto por toda a base. Como o de um caminhão dando ré, mas ainda mais alto que isso.
   Olhei para Renan, e tive a oportunidade de vê-lo boquiaberto pela primeira vez. Meu amigo não retribuiu o olhar, continuava observando aquela cena inacreditável. Alguns segundos depois, lâmpadas se acenderam dentro do buraco e piscaram algumas vezes, mas logo estavam estáveis. Só se via poeira dentro da passagem.
-É... É um túnel. - Falou Renan, quase sorrindo. Estava tão pasmo quanto eu.
Trocamos um rápido olhar, e entendemos um o pensamento do outro. Tão rápido quanto chegamos ali, estávamos saindo. Corríamos de volta para o jipe quando nos encontramos com Lucas e João subindo as escadas em espiral.
-O que estão fazendo aqui? - Perguntei.
-Queremos ajudar! - Responderam em um coro. Notei que Renan sorria mais uma vez, de cabeça baixa.
-Está tudo resolvido, agora corram para o jipe que é a melhor forma de ajudar! - Respondi.
   Éramos quatro correndo para fora da pequena torre. Carros atravessavam o pátio a toda a velocidade na direção da rampa, arrebentando de vez as cercas e grades. Civis e infectados voavam por todos os lados, atropelados sem misericórdia. Os gritos agora vinham de cada canto da base. Os desmortos tinham arrumado um jeito de chegar às torres, de onde os soldados agora atiravam uns contra os outros.
   Marcos dirigia o carro com habilidade, e freou o veículo uns vinte metros a nossa frente. Renan cobria nossa corrida com o fuzil, enquanto corríamos em velocidade uniforme para o carro. Faltavam cinco metros. Cinco metros...
   Tudo aconteceu rápido demais. Ao mesmo tempo, pareceu acontecer em câmera lenta, diante de meus olhos. João e Lucas corriam a minha frente. De forma paranoica, João olhava em volta, procurando por zumbis ou o que fosse.

-Lucas! - Ele gritou de repente, se jogando contra o amigo, de peito aberto e braços esticados.

   A cena foi quase toda visual. Um jato de sangue respingou para os lados. O tiro que acertou João quase não foi ouvido em meio à confusão. Atordoado, o ferido olhou para o próprio peito, incrédulo. Chegou a ver e encostar a mão no buraco escuro que a bala formou entre suas costelas. Segundos depois, ele caía ajoelhado no asfalto quente. O olhar se desfocando, a respiração cada vez mais lenta.

-Nãããão! - Lucas gritou, agarrando o amigo antes que ele pudesse cair de lado no chão. Os dois de olhos lacrimejados. João não parecia triste, nem arrependido... Nem irritado. Parecia livre.
-At-até a morte... -Disse ele, olhando para Lucas. Nesse momento, Lucas chorou ainda mais emocionado. Demorou alguns instantes até que pudesse responder.

   Renan se jogou na frente dos dois amigos e se abaixou, disparando com o M16 em todos os lugares onde via militares. Inúmeros soldados foram abatidos, enquanto ele soltava rajadas e mais rajadas de morte.

-Até a morte. - Respondeu Lucas, sem ligar para nada do que acontecia em volta. O rosto contorcido pela mais profunda tristeza e lamentação. Lágrimas escorriam desenfreadas pelo seu rosto.

-Precisamos sair daqui! - Falei. Lucas desabou em lágrimas, olhando para o já desacordado João, que ainda de olhos abertos, olhava o pôr do sol. Ele tinha uma expressão tranquila, diferente do resto de nós. Vi Lucas colocar gentilmente o corpo de seu amigo no chão, e nesse momento até eu deixei cair uma lágrima.

   Demos alguns passos em direção ao jipe, e eu pude ver Lucas olhando para trás, uma última vez. João continuava deitado lá, imóvel. Com a expressão serena. Nenhum infectado tinha vindo até ele. Nada se disse no carro. Marcos, engatando a marcha, adiantou-se na direção da rampa.

-Esterilização total em 10... 9... 8... 7... - A voz gravada de uma mulher falava novamente. Sua voz saía de todas as caixas de som espalhadas pelo pátio e pelas torres. Marcos avançava com toda a velocidade que o veículo aguentava. Nós nos segurávamos da melhor forma que podíamos, na caçamba.

   O carro não entrou calmamente na rampa. Ele simplesmente voou buraco adentro. Por causa da velocidade, perdemos totalmente o contato com o chão assim que entramos na passagem.
-3... 2... 1... 0. Esterilização iniciada. -
   Nada se ouviu. De forma muda e silenciosa, tudo ficou branco. Como em um relâmpago ou algo parecido. A imagem me voltou aos olhos, e em seguida um som ensurdecedor tomou-nos de completo. Eram como mil granadas explodindo ao lado de seu ouvido. Em menos de um segundo, tudo o que eu ouvia era um zumbido sinistro e ameaçador. Tudo o que eu via ia tomando uma cor avermelhada. O túnel tremia como se estivesse prestes a desabar a qualquer momento.
   Uma língua de fogo entrava pela parte de trás do túnel, em uma velocidade inacreditável. Era uma nuvem avermelhada e incrivelmente quente que engolia a todos que não saíam do caminho. Homens gritavam enquanto seus veículos eram sugados por aquela massa de ar quente e napalm.

-Vai! - Gritei, sem ouvir a própria voz. Eu podia sentir o veículo titubear, derrapando em vários trechos do caminho acidentado. Todos mantinham os olhos arregalados. Com exceção de Lucas, e do David. Os dois pareciam envoltos nas próprias lamentações, sem ligar para o mundo.
   Uma luz branca e tranquila estava a uns cem metros à nossa frente. Era a saída. O carro acelerava, mas o fogo era mais rápido. Tudo tremeu mais forte, a carroceria do veículo estalava como se fosse desmanchar. Poeira caiu por todos os lados. O som se tornou assutadoramente mais alto, era como o rugido de uma fera, prestes a devorar sua presa. Uma última tremedeira, uma última olhada para trás. O fogo estava a menos de vinte metros do veículo... E de repente eu não enxergava mais nada. Tudo mergulhou na mais profunda escuridão.

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