domingo, 12 de junho de 2011

Capítulo 7 - Desilusão

   Estava frio. Uma brisa congelante dominava as ruas por onde o veículo circulava. O ônibus dava pequenos solavancos , enquanto o motorista tentava desviar de todos os tipos de obstáculo. Haviam me informado que ainda daríamos mais algumas voltas pelo local procurando por sobreviventes antes que pudéssemos de fato sair da cidade.
   Era um ônibus comum, com nenhuma modificação em seu interior. Todos os passageiros permaneciam acordados, devido à preocupação constante de qualquer acidente. Coloquei os braços atrás da cabeça e relaxei um pouco. Afinal, estávamos em uma evacuação. Logo eu estaria livre daquele inferno. Assim, olhei em volta, mais tranquilo.
   Eu evitava olhar pela janela, mas precisava da realidade. As ruas por onde passávamos estavam completamente devastadas. O asfalto se pintava em sangue seco. Não havia sinal de vida humana. Urubus se alimentavam dos corpos dilacerados na calçada. Haviam cadáveres em decomposição avançada, outros com marcas de tiros na cabeça. Os desmortos estavam mais raros de ser ver. Como uam maldita praga, eles avançavam pelas cidades, deixando para trás uma trilha de morte. Carros abandonados lotavam a pista, e o motorista se esforçava para conseguir passar. As viaturas policiais, agora já vazias, continuavam com suas sirenes a tocar. A situação era mesmo caótica. Eu me pegava pensando em Renan cada vez mais. Estaria vivo? Será que conseguiu encontrar seus pais? Eram perguntas que eu me negava a resposta.
   Lucas, o homem que eu conhecera anteriormente, fazia a guarda do transporte junto de outro rapaz, que aparentava ser mais novo. Sendo os únicos com o poder de armas de fogo, eles permaneciam em alerta, sentados como passageiros comuns, olhando para o lado de fora. O mais jovem e alto deles, que posteriormente se apresentara como Henrique, possuía um fuzil de guerra FAL. Pelo que eu podia me lembrar, aquela arma não era liberada para civis. Porém as coisas estavam mudando, e ninguém parecia se importar demais com a lei.
-Mãe, trouxe alguma coberta aí? – Perguntei. Rosana enfiou a mão em uma das malas, e não demorou a tirar de lá um casaco verde, que eu tinha há cerca de seis meses. Sem demoras, eu aceitei, gratificado.
-Usa isso aí mesmo. Não deu para colocar muita coisa na mala, então a gente vai ter que se virar com o que eu... Ai! - Interrompeu a sua fala. - Nossa senhora, isso aqui tá doendo pra caramba!- Ela disse enquanto olhava para o próprio braço esquerdo. Uma ferida enorme se destacava no antebraço, próximo ao seu cutovelo.
-Merda! Você... – Controlei a minha voz. Todos no ônibus já me olhavam assustados. – Você foi mordida? – Perguntei atônito. Eu não tinha como esconder a minha preocupação.
-Sim, foi naquela hora, na loja. Aquela vaca me agarrou. Mas está tudo bem... – Ela analisou o próprio ferimento. – Foi apenas um corte superficial. –
   Lembrei-me de todos os filmes que já havia visto até então. Eu tentava dizer qualquer coisa que pudesse acalmar Rosana, porém seriam apenas mentiras. Pelo que me vinha à mente, não era nada bom ser mordido. Eu não poderia simplesmente iludir a minha mãe. Antes que pudesse dizer algo ainda mais desanimador, decidí manter-me em silêncio, para evitar piores situações.
   Olhando pela janela, eu conseguía ver vultos se mexendo. Era impossível distinguir raça ou sexo. Se eles estavam infectados ou não, eu não tinha forma alguma de saber. Eram cerca de três pessoas, correndo por um beco escuro, silenciosamente. Pensei ver capuzes negros encobrindo suas faces, enquanto esvoaçavam ao vento. Foi a única coisa que pude ver, antes que o ônibus passasse pelo local. Tive a impressão de que brevemente iria me encontrar com aquelas pessoas.
   Com minha mãe sentada à janela, eu me contentava em observar o que conseguía à distância. Inclinado para frente, vía o vidro embaçando aos poucos por causa de minha própria respiração. Eu sentía o cansaço batendo novamente, e minhas pálpebras começavam a tombar.
Descí pelas escadas do edifício, grato por mais uma aula. Era uma arte marcial desenvolvida recentemente por Renato. Ele tinha três alunos: Eu, meu amigo Renan e uma menina que nunca cheguei a conhecer. Tudo me lembrava um pouco Krav Magá, ainda mais porque as coisas eram desenvolvidas como que para lembrar a guerra em si.
- Vai vir semana que vem?- Perguntou-me Renan, me abordando no lobby.
-Alguma aula especial? Porque eu terei...
-Arremesso de facas. Não vejo a hora de compararmos as nossas habilidades, cara. – Ele me interrompeu. Fitei-o por alguns instantes: Renan realmente tentava provar que era melhor do que eu. Sempre teve esta horrível mania.
-Nos vemos semana que vem, então. – Eu confirmei. Ele acenou com a cabeça e seguiu em direção ao portão do prédio. Retornei todo o meu caminho: Eu ainda precisava conversar com Renato. “
   Com uma brusca parada, acordei. Minha cabeça tinha batido no banco da frente, uma leve dor na testa me mantinha em alerta. O sol estava nascendo, agora. Passávamos por um grande campo aberto no meio da cidade. Onde estávamos?
-Pro chão! – Gritou Lucas, enquanto engatilhava sua arma. Ouví disparos que vinham de toda a parte, e estavam próximos. Logo balas traçantes voavam por todo o lado. Todos os passageiros se jogaram sobre a estreita passagem do ônibus.
  Haviam inúmeras barricadas improvisadas por onde soldados e civis passavam. Infectados corriam atrás de suas presas, em meio aquela zona.

   No meio da multidão, uma mulher carregava sua pequena filha no colo, correndo por sua vida. Os militares estavam ocupados demais protegendo a própria posição. Sem nada a fazer, assistí os malditos zumbis alcançando-a. A mulher lançou sua criança alguns metros a frente, tentando salvá-la. Os desmortos começavam a arrancar cada pedaço de sua carne, enquanto a mulher gritava desesperadamente. O sangue jorrava para todos os lados, numa carnificina tremenda. Em choque, a pequena criança apenas assistía a tudo, sem sair do lugar. Curioso, um dos infectados olhou para a menina de pé. Ele tinha um grande pedaço do rosto pendurado, era possível ver seus dentes por aquele buraco. Nesse momento, a menina gritou e correu, mas já era tarde. Logo outros três zumbis já estavam em cima dela.
  Os tiros não cessavam, balas atravessavam o ônibus de um lado a outro como se fosse papel. O som dos projéteis perpassando o metal era apavorante.
   Joguei-me ao chão. Lucas e Henrique disparavam pelas janelas enquanto o ônibus acelerava por entre a confusão. Balas penetravam a carroceria, perfurando as paredes, estilhaçando janelas. Algumas pessoas gritavam assustadas. Eu podia ouvir o chiado dos projéteis cortando o ar.
-Vai! – Lucas gritou para o motorista, enquanto recarregava a sua arma.
   Depois de alguns minutos, havíamos passado pela zona de guerra. Todos voltavam aos seus assentos. Eu podía ver pequenos buracos na carroceria do veículo.
- Que porra foi essa?! – Eu perguntei, irritado. Todos os olhares se voltavam para mim, agora.
-Eles estão tentando controlar a infecção. – Dizia Henrique. -O exército foi acionado há poucas horas. Tem trincheiras espalhadas por toda a cidade. Nós passamos por cima de uma agora há pouco. – Ele dizia, enquanto tomava um gole d’água.
   Procurei com as mãos por minha sacola plástica.
-Droga!
-Que foi? – Minha mãe perguntou surpresa.
-Perdí a minha sacola de suprimentos! – Eu respondí, ainda sem acreditar em meu erro. – Devo ter esquecido enquanto fugia da loja. – Minha mãe me olhou apreensiva.
-É... Agora não tem jeito, filho.
-Toma, pode beber da minha, garoto. – Henrique me estendeu uma garrafa repleta de água.
   Bebí um pouco e devolví a ele, agradecido. Ajeitei-me no banco em que estava. Eu me sentía calmo por saber que tudo isso estava acabando. Nós iríamos sair da cidade e fim da história. Esperaríamos pelo controle da situação para podermos voltar então às nossas vidas rotineiras. Porém voltei à realidade quando pude ouvir, entre chiados, o rádio do motorista.
-Controle para Ômega B, Controle para Ômega B... Na escuta? – O homem perguntava, calmamente. Assistí o motorista pegar seu rádio para respondê-lo.
-Na escuta.
-O Bravo um se desviou da rota. Precisamos que vocês se assegurem de que está tudo certo. A última posição conhecida é na Linha Amarela, na altura do pedágio.
-Estamos longe. – Afirmou o motorista.
-Apenas salvem eles. A minha filha está naquele ônibus. – Disse a voz masculina, agora já não tão calma. –Câmbio e desligo.
-Henrique, mudança de planos! – Gritou o motorista.
   O segurança apenas acenou com a cabeça, em sinal positivo. Na próxima curva, já pegávamos o sentido contrário. Estávamos voltando. Olhei para minha mãe, ela dormia. Porém estava quente, muito quente. Uma febre tremenda. Pude ver o suor escorrendo pela sua testa. Algo não estava certo.
   Não se passou mais de uma hora até que chegássemos ao local indicado. Era possível ver um ônibus parado, todos os seus passageiros do lado de fora. Sentados na divisória da pista. Paramos ao seu lado e a porta de nosso ônibus se abriu. Desceram os dois seguranças.
   Assistí pela janela o que pareceu ser um longo diálogo entre eles e o motorista do outro veículo. Logo a conversa ficou mais intensa, e virou uma discussão. Eu não podía ouvir o que falavam, mas pela linguagem corporal dos dois, não era algo agradável.
   Henrique se afastou um pouco mais e acenou para que os passageiros entrassem. Um a um, eles adentraram o ônibus. Reconhecí um deles como um garoto chamado Lucas, era do meu colégio.
   Era de cor branca, cabelo preto: curto e encaracolado. Usava um óculos de grau e era um pouco mais alto que eu.
-Matheus! – Gritou. E eu pensando que ele não tinha me visto.
-Calma, cara. Minha mãe ta dormindo. – Avisei.
-Foi mal, mas fala aí! Achei que só eu tinha sobrevivido, cara. – Ele dizia alegre. –Levanta aí! Não vai me dar um abraço? –
   Olhei para ele durante alguns segundos, sem me mover. Lembrei de nossa escola, há cerca de sete anos atrás, quando brincávamos de pique. Lucas era uma das pessoas mais velozes da turma, assim como eu e o Renan. Eu hesitava em conversar com ele, em confiar em alguém. Sentía vontade de matá-lo agora mesmo para não precisar vê-lo morrendo depois, como aconteceu com o Luís.
-Cadê a sua família? – Perguntei.
-Eu... Eu não sei, cara. – Ele respondeu cabisbaixo. – Mas deixaram um bilhete para mim, dizendo que viajaram para Petrópolis. Então eu imagino que eles tenham escapado de toda essa história a tempo. –
   De repente, um estrondo ecoa pelo local. Olhei pela janela: Um dos seguranças havia atirado no homem. Seu corpo jazia inerte no chão. Colocando a escopeta sobre o ombro, entrava agora pela porta do ônibus.
-Todos prontos? Vambora daqui. Precisamos nos apressar. – Ele disse.
   Lucas, o meu amigo de escola, sentou-se no banco atrás de mim. Ele permaneceu quieto por muito tempo, até que decidiu conversar comigo. Papeamos por vários minutos, até que o segurança se aproximou.
-Meu xará? – Perguntou para mim, com um sorriso no rosto.
-Se o seu nome também for Lucas, sim. Somos xarás. – Respondeu o meu amigo.
-Há! – O homem soltou uma gargalhada, enquanto se cumprimentavam.
   Olhando pela janela, assistí apreensivo a aproximação de duas vans pretas pela lateral do ônibus. Uma de cada lado. Ficaram novamente claras as iniciais “CCAB” em suas portas. Pude ver suas janelas elétricas abrindo-se lentamente. Um pequeno objeto negro se estendia para fora do veículo. Quando identifiquei as armas, já era tarde.
-Pro chão! – Gritava Henrique. Estampidos me deixaram surdo, temporariamente. As balas entravam, destroçando o carro. Os veículos aceleravam pela lateral buscando uma maior área de destruição. Sentí um líquido quente espirrando do lado esquerdo de meu rosto.

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