quinta-feira, 23 de junho de 2011

Capítulo 8 - Sem tempo para tristeza

   O caos era total: As balas zuniam enquanto penetravam a carroceria do ônibus. Pessoas se jogavam, desesperadas, em busca de proteção. Pulei para o chão, procurando por alguma cobertura contra os disparos. Eu estava surdo, enxergando a cena toda acontecendo em um silêncio profundo.
   De repente, sou jogado para o lado esquerdo do ônibus. Com uma curva brusca, havíamos saído da estrada. Henrique e Lucas continuavam a atirar pelas janelas contra os carros que apenas se afastavam pela pista. Nosso ônibus acelerava matagal adentro, sem direção.
  O som voltava, aos poucos. Eu sentia o vento soprando em meu peito, enquanto só conseguia ver a agitação das pessoas por dentro do ônibus. Agora eu conseguía distinguir as vozes, os gritos.
-... Morreu! Ricardo está morto! – Henrique berrava ao lado do motorista morto, pendurado em sua cadeira. Ele tentava controlar a direção. Era tarde: Com um forte solavanco, o ônibus tombou para o lado e capotou. Tudo girava ao meu redor.
   Violentamente, eu era atirado contra o interior do veículo, arremessado em várias direções. Objetos e corpos voavam por dentro do veículo. Ouço então um disparo. Dessa vez, vinha por dentro. Uma das laterais estava toda manchada de sangue. Uma mulher grita.
   Tão rápido como começou, a movimentação acaba. Batido numa árvore, o ônibus havia parado de se mover. Notei que o veículo estava de lado quando me ví deitado em cima de uma janela rachada, sobre o capim do exterior.
   Por alguns momentos, tudo permaneceu silencioso e confuso. Ví o segurança negro levantar-se com dificuldade e começar a conduzir os sobreviventes para fora do veículo tombado.
-Por aqui. - Dizia ele, gesticulando a porta de entrada, que agora estava acima de sua cabeça. -Cuidado onde pisam. -
   Pessoas gritavam e gemiam de dor. Fios estavam pendurados, pessoas presas na carroceria, entre os escombros do acidente. Eu estava tonto, com a visão turva. Procurei por minha mãe, que encontrei ainda sentada em nosso assento, presa pelo cinto de segurança. Cutuquei-a com alguma força. Sem resposta, tentei novamente: Nada.
-Mãe?! – Gritei. – Mãe?! – Eu estava entrando em desespero. Virei então o seu rosto para mim. Havia um enorme buraco de bala em sua têmpora direita. Passei minha mão na lateral de meu rosto, lembrando-me do líquido que sentira anteriormente. Agora já estava frio. Minha palma voltou em vermelho vivo. Era sangue. Sangue de minha mãe. Meus olhos se arregalarem ao perceber a verdade, senti um calafrio percorrer minha espinha.
-Nããão!
   Dei uma berro de angústia e raiva, enquanto caía ajoelhado  sobre o chão. As lágrimas desciam pelo meu rosto, misturando-se ao sangue e ao suor. Lembrei-me de todas as esperanças sobre nossa salvação, lembrei de todos os sonhos que eu ainda tinha. Eram mentiras. Escondí o rosto com as mãos e desabei em um choro constante. Lá estava ela, sem vida. Em meus braços.
-Matheus... Você está bem? – Era Lucas, o meu amigo. Eu não conseguia sequer levantar o olhar até ele.
-Vai embora daqui. - Respondí-o com raiva.
  Lucas me estendeu o braço para que eu me levantasse. Por alguns momentos, olhei para ele apreensivo.
–Vem comigo, cara. - Ele disse, tentando se mostrar compreensivo. Abriu os braços, como que pedindo por um abraço. Empurrei-o para longe sem dizer uma palavra, enquanto eu me levantava. Lucas olhou para mim fixamente.
   De pé, olhei para o corpo de minha mãe. Eu o tinha ajeitado perfeitamente no banco, de modo que ela parecesse dormir. Porém logo ao olhar para Rosana, meu rosto se contorceu em dor mais uma vez. Virei de costas antes que começasse a chorar mais uma vez. Lucas ainda me encarava, parecia querer me dizer alguma coisa.


- O João ta por aqui, também... –Ele dizia, enquanto me guiava por dentro do ônibus.
-João? Quem é João?! – Eu perguntei nervoso, limpando as lágrimas da minha face.
-João... Um amigo meu. Ele veio comigo.
-Não estou muito disposto a conhecer amigos novos agora. – Me exaltei, irritado por não ter sido avisado de nada.
-Mas cara! – Lucas chamou, vendo que eu tinha acelerado o , olhando-me fixamente. Tentei pensar em qualquer motivo que justificasse a minha raiva, mas nada me vinha em mente.
-Esquece. – Eu disse. Lucas deu uma pequena corrida até a última fileira de assentos, onde um garoto um pouco mais novo que eu estava caído, com um corte no supercílio. Tinha um quê de asiático, os olhos puxados. Notei que estava meio fora de forma também.
-Vamos tirar ele daqui. – Lucas me falou. Com alguma dificuldade, arrastamos o rapaz até a por todo o interior do ônibus. Dei minha última olhada em Rosana e então saímos, passando pela pequena portinhola do ônibus, completamente destruída. Restava uma pequena aglomeração de sobreviventes, eram cerca de vinte pessoas, sem contar comigo e meu amigo. O segurança Lucas carregava duas armas em suas mãos. A escopeta calibre doze e o fuzil FAL de Henrique. Nesse ponto, eu já sabia o que havia acontecido.
   Os passageiros agora tentavam arrumar as suas coisas, retirá-las do veículo capotado. Muitos gritavam por respostas. O caos era completo, e o segurança não sabia como agir. Ergueu sua escopeta e deu um tiro para o alto. Todos se calaram.
-Um de cada vez. – Ele começou. – Alguém tem perguntas? - Uma mulher levantou a mão ao fundo.
- O que aconteceu aqui, exatamente? Por que aqueles carros atiraram na gente? – Ela perguntou apoiada por gritos e manifestos. Lucas pediu silêncio mais uma vez.
-Olhe minha senhora... Ainda não sabemos exatamente o que houve, mas no meio da troca de tiros o nosso motorista, Ricardo, foi atingido na cabeça. Ele, a propósito, era um grande amigo meu e do Henrique, que também morreu. – Fez-se um silêncio incômodo, até que um homem, mais a frente, se manifestou.
- E quem deu o tiro dentro do ônibus?
-O tiro saiu desta arma, se é o que quer saber. – Respondeu Lucas, erguendo sua escopeta mais uma vez.
-Não foi isso o que perguntei. Quem deu o tiro? – O homem insistiu.
-Ninguém deu o tiro. – Lucas suspirou. – No meio da confusão, essa arma se soltou da minha mão e disparou sozinha. Enquanto chacoalhava de um lado para o outro.
-Isso não foi falta de competência da sua parte, meu jovem? – Perguntou uma idosa. Lucas deu alguns passos para trás, sentindo-se afrontado.
-Escutem aqui: Eu não preciso dar nenhuma satisfação a nenhum de vocês! Vocês acham que é fácil saber que o tiro cujo matou seu melhor amigo veio da sua própria arma?! Saibam que não é. Agora vão arrumar o que fazer, todos vocês! – Lucas se afastou e sentou num canto isolado, virado para o horizonte. Notei que estávamos em uma enorme zona rural.
  
   Isolei-me um pouco mais do resto do grupo e me sentei na relva. Era necessário algum tempo para pensar em tudo o que vinha acontecendo. Minha mãe agora estava morta, eu estava sem nenhum responsável por mim. As decisões agora eram unicamente minhas, e ao mesmo tempo em que isso me acalmava, também era apavorante.
   Eu observava, sentindo uma pequena pontada de alegria, o adorável vôo dos pássaros naquele céu azul de início de tarde. Uma brisa aconchegante refrescava aos poucos minha mente. Porém eu ainda podia sentir lágrimas descendo pelo meu rosto. E o pior: Minha barriga estava roncando.
   No meio do nada, e agora? Eu perguntava para mim mesmo. Lembrei do estoque de comida e água que eu esquecera naquela loja de roupas. Aquilo sim era falta de competência. Respirei fundo, era hora de fazer algo, antes que fosse tarde.
-Matheus! – Tomei um susto ao perceber que meu amigo Lucas estava atrás de mim, junto de seu colega, agora acordado. –Esse é o João. – Ele disse.
-Acho que já o conheço. – Respondí, com um sorriso.
-Eu sei, era ele que não conhecia você. – João deu um passo à frente e me cumprimentou com um aperto de mão.
-Valeu por me tirar de lá. – Ele disse. Acenei com a cabeça e voltei a minha reflexão. Eu não estava a fim de fazer nada.Estranhamente, os dois sentaram-se ao meu lado e mergulharam no mesmo tédio que eu estava.
-A propósito, sua cara tá suja. - Avisou Lucas, indicando com o dedo a grande mancha vermelha que cobria meu rosto.  Usei meu casaco para então limpar o sangue de minha mãe. Era difícil, o líquido já seco se descascava aos poucos, descolando-se lentamente da minha pele.
   Passamos alguns momentos em silêncio. Todos estavam sentados ao meu lado, observando o horizonte. Ninguém parecia querer dizer nada no momento. O tédio era algo que não nos importava mais.
-Que legal!- Lucas gritava contente. –Todo mundo fazendo nada junto! –
   Damos algumas risadas entre nós, mas logo voltamos ao clima de tristeza anterior. Ninguém falou nada por algum tempo, apenas sentiam a brisa, assim como eu.
- Tá tudo uma merda mesmo. – João disse. – Eu sempre achei que seria legal um mundo de zumbis. Mas graças a esses viados... – Respirou profundamente. – Minha familia toda morreu. –
   Olhei para ele com empatia, eu sabia como ele estava se sentindo. Dei leves tapas em suas costas.
-Somos dois, amigo. –

[...]
   O dia começava a escurecer, foi um período longo no sol escaldante. Um fedor humano se espalhava pelo acampamento. Não era por menos, eu mesmo, estava há quase um dia inteiro sem tomar banho. Lucas, com a ajuda dos passageiros, havia tirado os cadáveres de dentro do ônibus, para que pudéssemos passar a noite lá.
   Montaram uma cabana do outro lado da clareira para os suprimentos. Ao centro, havia uma fogueira que alguns homens tentariam acender mais tarde. Havia uma cobertura de toldo que se estendia alguns metros após a entrada do ônibus, para proteger contra uma possível chuva.
   A escuridão caía novamente, envolvendo o ambiente em um clima sombrio. O vento noturno uivava, balançando a relva verdejante. Meus amigos já haviam se recolhido ao acampamento, para descansar. Eu estava deitado no gramado, observando a fogueira de longe. Observei Lucas se aproximar, com suas duas armas.
- Hey, você. – Ele me chamou. – Aproveitando que está aí de bobeira, você vai fazer a vigia noturna comigo. – Abafei uma pequena risada. Logo eu? Mas estava tudo bem. De qualquer forma, não estava com sono. Lucas me lançou a escopeta.
-Não é difícil, não. É só me seguir. Vambora. – Ele começou a andar pelo enorme campo. Eu acompanhava-o sem dizer uma palavra. Ainda estava analisando a arma que me foi dada. Será que tinha munição? Eu me distraía nos meus pensamentos ao pensar em quantas vidas aquela escopeta havia tirado. Ou semi-vidas. Lucas parou e apalpou a parte de trás de sua camiseta, na altura da cintura. Tirou do short a faca que eu o havia entregado no ônibus.

-Pode ficar com isso também. - Com um sorriso, tomei de volta a minha faca.
   Andamos uma longa distância, até eu perceber que estávamos simplesmente andando em círculos ao redor do acampamento. Ficou claro para mim que estávamos apenas montando um perímetro de segurança. A noite agora se mostrava incrivelmente fria. Eu mal sentia minhas mãos e pés.
-Você não precisa ficar quieto. – Lucas se manifestou.
-Não é isso... – Respondí ainda distraído. – Eu só não tenho o que falar. –
-Hoje vai ser uma noite calma. – Lucas parou frente a uma pilha de troncos cortados. – Acho que podemos ficar por aqui mesmo. – Disse sentando-se sobre uma tora. Eu permanecí de pé, observando-o.
- Por que matou o motorista daquele outro ônibus? – Perguntei.
-Ah... Aquilo... – Lucas parecia mostrar certo desgosto em falar sobre aquilo. – Ele não era o verdadeiro motorista. Na verdade ele tinha matado o original. O que aconteceu no Bravo 1 foi um motim. Porém, para evitar esse tipo de atitude, apenas os motoristas sabem os pontos de reabastecimento. E isso levou ao problema com o ônibus. As regras eram que qualquer autor de um motim devia ser executado. E foi o que eu fiz. Regras são regras.

-Como vamos sair daqui? – Continuei. – Alguém já te perguntou isso?
-Foi a primeira coisa que me perguntaram. Fica tranquilo que amanhã, pela noite, outro ônibus de mesma rota estará passando por aqui. –
-Então no máximo amanhã já estaremos no caminho da segurança, de novo?
-É... – Ele fez uma pequena pausa. – Eu espero que sim. Mas estou com sede, e imagino que você também esteja.
-Sim.
-Então... No acampamento tem uma caixa de madeira mais afastada do ônibus, do outro lado da fogueira. Tem água e amendoim lá. Traz lá pra gente. – Disse com uma piscadela. Sem pensar duas vezes, fui em direção ao acampamento. A luz da fogueira, agora já acesa, ficava cada vez mais forte conforme eu me aproximava.
   Abrí a caixa de madeira. Inúmeras garrafas d’agua jogadas por dentro dela. Não era uma caixa térmica, portanto toda a água estava quente. Mas quem ligaria para isso? Peguei duas garrafas pequenas e alguns sacos de amendoim. Sem demorar muito, eu estava voltando.
   Eu havia perdido Lucas de vista. Aproximei-me com cuidado pela escuridão que tomava a noite. Pensei que tudo se tratava de uma brincadeira de mau gosto, até avistá-lo de joelhos, rendido por um homem armado. Eu me abaixei e continuei me aproximando por trás dos troncos cortados. Eles ainda não tinham me visto.
- A gente só quer as armas, mano. Onde ta a escopeta? – O homem perguntava, estrangulando Lucas. Era alto, loiro de cabelo liso. Aparentava ser alguns poucos anos mais velho que eu. Tinha algemado o segurança com as mãos para trás e de joelhos sobre a grama. Tentei uma aproximação maior. Dei alguns pequenos passos em direção ao homem. Eu sabia que aquilo não daria certo.

4 comentários:

  1. Aí sim, era isso que eu tava esperando! Ação e mistério o////////

    Ótimo, Math, agora é só postar o capítulo 9 *-*

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  2. HAHAHA. Tenho até um apelido, quem diria xD

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. é bem legal... pena q só comecei agr

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