Devia ser mais ou menos meio
dia, e o sol ardia miseravelmente. Tudo o quê restara da fogueira eram algumas cinzas em brasa,
que o vento soprava soltando uns pedacinhos de fuligem com
ele. David e Michele voltaram a tempo de se deliciarem com a carne do esquilo que Renan tinha preparado. Ninguém comeu
muito -e não foi por falta de fome-, não era como estar completamente saciado. Mas era bom sentir
algo forrando o estômago, pelo menos, depois de quase um dia inteiro
de jejum. O quê eu não daria por um verdadeiro banquete de natal.
-Onde vocês estavam? - Perguntou
Amanda, com uma expressão preocupada. David e Michele tinham manchas
de sangue nas roupas, mas nenhuma marca de ferimento ou mordidas.
-Não muito longe, estávamos
subindo a estrada. - Respondeu Michele, enquanto passava a mão por
suas mechas vermelhas.
-Sejamos mais diretos então... -
Começou Renan, que tinha se levantado e agora passava caminhando
lentamente por eles. Tinha um tom de voz interessado, mas que se
mantinha calmo e firme. -O que vocês estavam fazendo? - Dessa vez,
antes de responderem, eles se entreolharam sorrindo.
-Estávamos caçando. -Eles
responderam em coro. Renan me olhou com uma expressão interrogativa.
Eu dei de ombros, com um pequeno sorriso surgindo no canto da boca.
Tinha certeza que Renan também achava graça naquilo.
-Caçando zumbis. - Completou David,
com um sorriso bem aberto.
-Vocês estão loucos?! - Se
aproximava Marcos, limpando as mãos sujas de graxa, em um pano não
tão limpo. Parecia um daqueles mecânicos de borracharia. -Vocês ameaçaram a nossa segurança! Não podemos
simplesmente nos separar para cada um fazer o que quer! -
-Nós não fizemos barulho! -
Respondeu Michele. Marcos a olhou seriamente, e então se virou para
Renan, que apesar de ser mais novo do que ele, já era quase
considerado como um dos líderes do grupo.
-Algum de vocês podia ter se
ferido, ou coisa pior. O que você acha, Renan? -
-Eu acho... - Começou ele, num tom
calmo como sempre. -Que da próxima vez que forem se divertir, é
melhor me chamarem também. Estou começando a ficar entendiado aqui.
- Rindo, o Renan me deu um leve tapa nas costas, me convidando para
sair dali. Michele e David sorriram aliviados, enquanto iam para o
outro lado do acampamento. Marcos ficou parado ali, frustrado. Era
como se ninguém entendesse o que estava fazendo. Será que somente
ele entendia os prejuízos dessas ações idiotas?
-Acho que você deixou alguém
irritado. - Eu disse, olhando sobre o ombro para Marcos enquanto nós
dois nos afastávamos. Renan estava em minha frente, pegando o fuzil
M16 do chão. Olhou para mim sorrindo e me entregou o meu rifle.
-Ele tem que aprender a se divertir.
Aliás, você também. - Disse ele, e começou a caminhar estrada
abaixo.
-Onde vamos? - Perguntei ainda
checando a munição e as travas de segurança de minha arma.
-Vamos atrás do Lucas. - Respondeu
ele simplesmente. -De preferência antes que ele se mate. -
Acrescentou com um sorriso irônico.
Demos alguns passos por entre os
veículos abandonados, olhando para dentro deles em busca de alguma
coisa, ou alguém. Tudo parecia morto, o lugar estava abandonado até
mesmo pelos desmortos, que agora pareciam estar pegando o hábito de
andarem juntos.
Em minha frente, Renan foi aos
poucos diminuindo a velocidade de seus passos, até parar por
completo. Tinha o olhar perdido, como se tivesse algo que ele queria
dizer. Ele olhou para mim e respirou profundamente, seu rosto estava
tenso, demonstrava um misto de hesitação e excitação.
-Os Lobos querem você de volta no
grupo. - Disse simplesmente. Me mantive calado por alguns instantes,
apenas absorvendo a mensagem.
-O quê?!
-Eu disse a eles que você reagiria
assim, mas não foi minha ordem. Eu passei em Mangaratiba. - Enquanto
ele falava, lembrei que eu também havia passado por lá, e visto
alguns Lobos na cidade. Estava abrindo a boca para falar quando ele
me interrompeu com um gesto.
- Sim, eu sei. - Disse ele. - Passei lá na mesma época que você, antes que pergunte quando foi. Você me viu, e aliás, atirou em mim também. - Renan pausou o discurso para rir.
A princípio eu estranhei o que
ele falou, mas então me veio a memória a imagem de um vulto que
aparecera no beco, e com um só tiro derrubara o soldado a meu lado.
Aquele era Renan, esse tempo todo.
Eu balançava a cabeça de um
lado para o outro, sorrindo sarcasticamente para mim mesmo. Eles
tinham lembrado de mim, finalmente.
-Não importa. Eu estou fora, foi o
que disse a eles da última vez.
-Da última vez... - Dizia Renan,
calmamente. -As pessoas não andavam pelas ruas tentando matar umas
as outras. E aliás, pessoas como nós nunca mudam. Você aceite isso ou não. -
-Eu mudei. - Respondi
em voz alta, de cabeça baixa. Renan me olhou com uma expressão
imparcial e então sorriu desviando o olhar.
Meu amigo me deixou ali, olhando
para o chão, enquanto ele pegou sua arma e se afastou pelo caminho
que estávamos seguindo. Perdido em meus próprios pensamentos, eu
percebi que não adiantaria em nada pensar naquilo agora.
Começamos então a descer a
estrada, com um passo acelerado. O Sol desaparecia e aparecia
novamente, por trás das nuvens. O dia nublado clareava tudo com uma
angustiante luz esbranquiçada.
Enquanto caminhávamos, eu
avistei o que parecia ser um vulto humano caminhando por entre os
carros, a cerca de duzentos metros a nossa frente. Fiz sinal para que
Renan parasse de andar e olhei pela luneta do rifle de longa
distância.
Meu amigo tomou cobertura atrás
de uma motocicleta caída. Um olhar tenso que me encarava esperando
por alguma informação. Olhei pela lente e vi, ao longe, a
confirmação da ameaça. Era um militar... Infectado. Mancava
lentamente em nossa direção. Iríamos nos encontrar com ele em
alguns minutos.
-É um deles. - Falei para Renan,
que não tinha a visão do que estava acontecendo ainda.
-Não atire. - Ele respondeu. -
Vamos matá-lo silenciosamente, e seguir caminho. - Dito isso, ele
recomeçou a caminhar em direção ao lugar apontado como o que Lucas
estaria. Ainda parado, eu observava o desmorto. Por trás dele,
sutilmente, outro saiu por trás de um carro. Passei a mira para
eles, instintivamente, e avistei mais alguns que vinham pela esquerda
da pista. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, já eram dezenas
deles dentro da minha visão, e mais continuavam a chegar.
-Para! - Sussurrei para Renan, em um
tom de urgência. Ele olhou para trás e eu apontei para a estrada.
Uma grande massa sem forma se deslocava pelo asfalto em nossa
direção, caminhando lentamente.
-Não temos como passar. - Falei,
ainda focado na mira. A cada segundo, apareciam mais se deslocando em
nossa direção. Em algum lugar atrás deles, ou ainda entre os
zumbis e nós, Lucas estava a poucos momentos de uma morte horrível.
Renan me encarava, sem dizer
nada. Como era de seu costume, às vezes ele simplesmente decidia
sentar e observar o que eu faria em seguida. Se eu estivesse tentando
mostrar que ainda estava calmo, seria um desastre total. Minha
respiração ficou pesada, a mira tremia como se tivesse sido jogada
dentro de um liquidificador ligado, e eu começava a suar frio.
Retirei o pente e o recoloquei na
arma apenas para chegar as munições. Puxei o ferrolho lateral e fiz
a mira nos desmortos, que pareciam brotar de lugares cada vez mais
próximos. O som do mecanismo da arma me acalmou instantaneamente.
Ainda não tinha sequer destravado o rifle quando senti uma mão
rígida e gélida me segurando pelo ombro. Meu coração gelou.
-Eles são muitos. - Disse uma voz
familiar atrás de mim. Lucas estava de pé, segurando um violão
negro e brilhante em uma mão, e com a outra sobre o meu ombro, em
uma postura tranquilizadora. -Precisamos sair daqui antes que eles
nos percebam. Com um grupo desse tamanho, estaremos todos mortos
antes mesmo que a nossa munição acabe. -
Renan olhou para mim e assentiu
com a cabeça, como sempre silencioso. Sua M16 encostada ao peito,
parecia presa diretamente em seu coração. Lembrei, nesse momento,
de alguns meses atrás, quando Renan se agarrava à sua faca sempre
que estava nervoso em alguma missão.
-Quanto tempo, Matheus? - Perguntou
ele. Fazia tempo que ninguém me perguntava algo assim. Logo apareceu
em minha mente a imagem de um treino de Análise e Previsão, um dos
exercícios mais comuns dos que tínhamos que enfrentar. Analisei
pela luneta a velocidade de aproximação dos agressores, o percurso
até nós e também algumas tantas variáveis mínimas que acabariam
por fazer a diferença.
-Entre dois e três minutos. -
Respondi, abaixando a arma. -Avise a todos que eu quero todos prontos
pra partir daqui em trinta segundos. - Disse para Lucas, enquanto
pendurava a arma em meus ombros pela bandoleira.
-Renan, eu e você...
-Eu sei. - Ele cortou a minha fala,
um sorriso se espalhando por seu rosto. - Nós vamos atrasar eles.
-Não dessa vez. - Respondi,
percebendo que tinha acabado com a felicidade de meu amigo. -A gente
precisa montar um perímetro em volta do acampamento enquanto eles
arrumam as coisas. Podem ter mais desses monstros por perto. Algum
que a gente não tenha visto. -
Ele me olhou por alguns segundos,
assimilando o que eu tinha falado. Renan devia estar pensando que
veríamos outros desmortos antes, se existissem mais por perto.
Porém, para minha felicidade, ele logo compreendeu a situação.
Destravou sua M16 e correu na direção de Lucas, que tinha saído
dali há alguns instantes.
Ouvi os seus passos se afastando
por detrás dos carros destruídos e fumaça. Voltei meu olhar para a
multidão que marchava lentamente ao nosso encontro. Vacilante, dei
alguns passos para trás sem desviar o olhar daquela horda de
canibais. Eu precisava encontrar um lugar elevado para me posicionar
e vasculhar o perímetro. Alguns metros a minha direita, havia um
caminhão pipa deitado de lado no asfalto. Havia o risco de ele estar
vazando gasolina ou qualquer coisa, mas se fosse para explodir, já
teria explodido. Pelo menos foi assim que eu pensei ao subir nele,
escalando a parte do motorista.
Tomei posição no meio do vagão
de carga e girei trezentos e sessenta graus lentamente com a arma em
riste, enquanto procurava por hostis. Nada além de carros
abandonados e sujeira de pessoas que pareciam ter saído às pressas
de seus veículos.
-Limpo! - Ouvi Renan gritar ao
longe. Acenei com a cabeça para mim mesmo, contente por realmente
termos o tempo necessário para fugir dali sem nenhuma baixa.
-Limpo! - Respondi da minha posição.
Travei e abaixei a arma,
respirando profundamente. Em seguida levantei e dei mais uma olhada
em volta, de pé ainda sobre o caminhão. Com tudo realmente deserto,
desci com um só pulo e rumei o acampamento.
Michele estava fazendo ligação
direta em uma minivan enquanto o resto do pessoal se apressava a
colocar as coisas que traziam consigo para dentro do veículo.
Marcos, por outro lado, tinha pego o violão de Lucas, e estava
sentado com ele sobre um toco de árvore, aparentemente o afinando.
Imaginei se ele realmente tocava violão, porque seria a terceira
pessoa naquele grupo. Renan era um guitarrista nato, que tinha aulas
a quase dois anos. E eu tinha começado a aprender violão sozinho
quando tudo começou.
Fui acordado do meu devaneio
repentino quando ouvi o motor da minivan ligar, fazendo um barulho
alto e não muito agradável.
-Consegui! - Exclamou Michele
animada enquanto pulava o banco de trás. Marcos tirou o violão do
peito e o colocou no banco de trás, com os demais, enquanto ele
subia para o do motorista.
-Renan, partindo em dez segundos! -
Gritei para meu amigo, que estava do outro lado do veículo ainda
checando os arredores.
Ouvi uma porta se abrir e presumi
que ele tinha entrado. Subi então na minivan e percebi o quão
apertada ela era, de fato. Nós nos espremíamos ali dentro, sem
contar com as coisas esquisitas sobre nossos colos. Garrafas de água
soltas, um rifle de longo alcance, um violão, algumas baterias e
também um rádio.
Eu começava a ver os zumbis
surgindo por detrás de alguns carros a distância quando Marcos
tirou a minivan dali, dirigindo com cautela pela estrada amarrotada
de carros abandonados. Os infectados se tornaram cada vez mais
pequenos pela janela de trás, até que então desapareceram de vez.
Andrei agora tinha um cigarro apagado em sua boca. Pelo visto, tinha
perdido o outro isqueiro que achara, porque apalpava seus bolsos em
vão.
-Merda. Essas coisinhas somem mais
do que qualquer coisa! -
-Não mais do que palhetas – Disse
Renan rapidamente, e um sorriso surgiu no rosto de Marcos e no meu.
De alguma forma, elas realmente desapareciam de vista na primeira
oportunidade que tinham.
-Pessoal, a gente pelo menos tem um
lugar pra ir? - Perguntou Lucas, da parte de trás da minivan, onde
ele estava com Renan e Amanda.
-É verdade, não dá pra ficar
andando por aí sem rumo. - Disse Michele, sentada ao meu lado. Tinha
a cabeça apoiada no ombro de David, que acariciava sua mão.
Senti o olhar de Renan em mim
mesmo sem olhar para ele. Eu tinha certeza que ele esperava uma
resposta minha, e sorri para mim mesmo. Talvez, fosse realmente a
coisa mais esperta a se fazer agora.
-Mangaratiba. Eu soube de um grupo
de resistência lá. -
-Isso não é o que eu vi quando
estivemos lá da primeira vez. - Respondeu Marcos.
-Você está falando dos
encapuzados? - Perguntou Amanda.
-Como sabe deles?
-Eu estava lá antes de vocês
chegarem, esqueceu? Eles me ajudaram a encontrar vocês. Disseram que
não queriam estranhos com eles. O que te faz pensar que mudaram de
ideia?
As últimas palavras de Amanda
ressoaram em minha mente por alguns segundos. Mas na verdade, tudo
era claro, as respostas estavam na minha cabeça. Eu só não sabia
se deveria ou não falar. Mas Renan, para variar, não pensou duas
vezes antes de falar o que pensava.
-Não somos estranhos. -
Sorri para mim mesmo, antes de
perceber que todos nos olhavam com cara de curiosidade. Renan não
parecia muito disposto a dar explicações, e tampouco estava eu. Aos
poucos, a atenção foi se dispersando, e milagrosamente, Marcos
achou seu isqueiro. Agora quem tinha um ar mais calmo e leve era ele,
que tinham abaixado seu vidro e já soltava algumas baforadas de
fumaça para fora.
-É, pessoal. Parece que temos um destino.-