segunda-feira, 4 de julho de 2011

Capitulo 9 - Hora de partir


 
    A escuridão era absoluta. Eu ouvía o farfalhar do gramado sob meus pés. Com a respiração ofegante, sentí o suor me escorrer pelo rosto, a pressão subia. Atrás de uma pilha de troncos, eu mirava com uma escopeta calibre doze. O alvo era um sujeito alto e loiro, que eu não conhecía. Eu mal podia ver seu rosto, que permanecia misterioso. Ajoelhado em sua frente estava o segurança do ônibus de evacuação, que havia sobrevivido ao acidente.

   O ambiente era sombrio e assustador. A qualquer momento, alguém poderia morrer ali. Eu continuava escondido, observando toda a cena à certa distância: Lucas parecia ter o rosto machucado. Pedro havia mesmo torturado o segurança. Eu estava com muita vontade de puxar o gatilho, porém sabía que não poderia atirar: Minha arma não era totalmente precisa àquela distância. Eu não estava disposto a ver outra vida inocente se perder por minha causa.

   Com passos curtos e cautelosos, eu me aproximei. Queria aproveitar ao máximo o chamado fator surpresa. Eu podia vê-los mais claramente agora. Eles estavam praticamente olhando em meus olhos.De fato eu estava o mais próximo possível.

-Meu nome é Pedro. - Falou o homem até então desconhecido. – Acho melhor você se lembrar desse nome, porque um dia eu serei a única pessoa que poderei te ajudar. -Disse com um tom ameaçador. - Mas se você não me der uma ajuda agora, eu irei te negar a minha no futuro. Então eu vou perguntar de novo... – Pedro destravou seu fuzil roubado. – Onde está a outra arma? Não minta para mim, seu preto imundo! – Dizia o homem exaltado.

-Já disse que não tem outra arma. – Lucas respondeu com a voz rouca. Pedro olhou para ele com desgosto e cuspiu em Lucas. Nesse momento ouviram-se passos se aproximando pelo outro lado. Da escuridão, surgia outro homem, um pouco mais baixo e gordo que o primeiro.
-Pedro, o transporte chegou. Não dá mais tempo. – De fato eu podía ouvir o som de um motor ao longe. Após essas poucas palavras, o homem correu de volta na mesma direção, desaparecendo na noite.
-É, cara. Você escolheu isso. – Pedro apontava a arma. Desesperado, pulei para fora da minha proteção.
-Solta a arma! – Gritei, sem pensar duas vezes. Eu segurava firmemente a escopeta, com o dedo ansioso no gatilho.

-Ora, ora... – Pedro se mostrava feliz. –Veja só o que temos aqui. – Ele se aproximava, com um sorriso de orelha a orelha. –Passa a doze, guri. Eu deixo o seu namorado em paz. –
   Não era de meu costume deixar certas pessoas saírem impunes. Encarei Pedro por alguns instantes, e ele retribuiu. Levantei a escopeta e a engatilhei. Afrontado, o rapaz demonstrou certa surpresa, mas logo respondeu apontando sua arma para mim.

-Para de viadagem, guri! – Dizia ele tentando demonstrar confiança. Porém estava tão nervoso quanto eu, afinal também corria grande risco de vida. Em meio ao clima tenso, uma voz rouca se manifestou.
-Matheus, solta a arma. – Lucas falou, mal conseguindo levantar a cabeça. – Não dá uma de herói agora. - Pude ver suas feridas mais claramente. Os olhos roxos, o rosto inchado, o lábio cortado. Pedro sorriu, com um quê de ironia no olhar. –Já tivemos muitos heróis mortos hoje. -

   Fixei meu olhar em Pedro, que continuava firme com sua FAL apontada diretamente para o meu rosto. Aproveitei este momento para refletir: Não vale a pena morrer por uma arma. Hesitei por alguns segundos e então baixei minha escopeta, encostando-a no chão. 

-Bom menino. – Disse Pedro. Aproximou-se ainda apontando a FAL contra mim. Tomou a arma para si. Afastou-se vagarosamente, até desaparecer na noite. Ouví passos que se distanciavam cada vez mais. Fitei a escuridão por mais alguns momentos antes que eu pudesse sentir alguma segurança novamente.
   Corrí para Lucas, que agora estava deitado sobre a grama, desacordado. Tentei carregá-lo até o acampamento, mas na metade do caminho eu já estava exausto. Coloquei-o no chão e cuidadosamente o arrastei pelo resto do caminho.
   Repousei o homem próximo a fogueira no centro do acampamento. Eu estava cansado e desesperado. Eu havia chegado ao acampamento, porém Lucas não se mexia. Estava imóvel, deitado ao lado da fogueira.
-Alguém! – Gritei com toda a minha voz. –Alguém! – Logo várias pessoas estavam saindo do ônibus, se aglomerando em volta da fogueira. Eles olhavam para o segurança quase morto. Lucas realmente havia apanhado muito.

-Eu preciso... De um médico. – Eu disse tentando manter a calma. –Um médico, rápido! – Repetí, vendo que ninguém se movia. De repente saiu um homem da multidão e se aproximou.
-Eu sou enfermeiro. Por favor, apenas não atrapalhe. – Ele disse, enquanto verificava o pulso de Lucas. Examinou suas feridas por alguns momentos. Sentado no chão, eu esperava quieto por um veredito.
   Depois de alguns segundos difíceis, ele se aproximou de mim novamente. O enfermeiro tinha um ar de alívio em sua expressão.
-Ele vai ficar bem. – O rapaz disse. - Precisa descansar essa noite. Mas amanhã ele vai estar lúcido. – Ele dizia enquanto ajeitava uma cama improvisada no chão para o ferido. –Agora me diga... O que aconteceu? A propósito, eu me chamo Henrique. – Se apresentou o homem.

   Contei para ele o que havia ocorrido durante toda aquela noite. Henrique reuniu todos e os avisou do roubo que havíamos sofrido. Avisou que dali em diante estariam sem armas, sem proteção.
   Após uma noite longa, todos se reuniram para dormir novamente. Havia sido um dia longo, conturbado. Se algumas horas antes alguém dissesse que passaríamos esta noite acampados no meio do nada, este alguém seria desacreditado.
   Mas assim aconteceu. Deitado próximo de meus dois amigos, porém estes estavam adormecidos. Eu esperei por qualquer notícia. Qualquer coisa que pudesse ser animadora para mim. Foi quando pude ouvir o som de um carro à distância. Surpreso, levantei na mesma hora. Parecia que ninguém mais havia notado. Todos dormiam tranquilamente enquanto o som se tornava mais alto.

 -Lucas! João! – Disse em voz baixa, enquanto tentava acordá-los. Sacudí meus amigos freneticamente.
-Ai meu deus... O que houve? – Respondeu João ainda sonolento.
-Tem um carro aqui! Vamos sair desse lugar logo! 

   Adiantei-me para fora do veículo tombado e me certifiquei de que os dois estavam me acompanhando. Corrí na direção da estrada, atravessando o mato enorme pelo escuro da noite. Estava lá: Um carro prata, parado na pista. Um homem estava reabastencendo-o com um galão.
-Hey! – Gritei. Ele rapidamente sacou uma arma e apontou-a em minha direção. Era pequena, de mão. Eu apenas não conseguia distinguí-la a tal distância.
-Quem é você? – Gritou o homem. Levantei as mãos e me aproximei devagar.
-Meu nome é Matheus. – Eu disse quando já estava à beira da estrada. Pude ver que carregava consigo uma Taurus. Ele apontou para o seu carro, um Jetta prateado.
-Quer carona?
-Não to sozinho, tem um acampamento todo aqui. Um ônibus da evacuação saiu da rota.
-To sabendo – Ele disse enquanto acendia um cigarro. – Todos saíram.
-Como é?!
-Isso é outra história. Só quero te dizer que só posso levar três pessoas no carro. Talvez caibam mais. Você vem?- Acenei positivamente com a cabeça. Avisei ao rapaz de meus dois amigos, cujos ele deixou que entrassem.
-Calma aí, eu preciso buscar uma coisa no ônibus. – Lembrou João. Aproveitando a oportunidade, andei com ele até o acampamento. Eu precisava avisar ao segurança sobre a carona. Meu outro amigo Lucas havia ficado conversando com o homem.
-Vou pegar uma coisa. Me espera aí, beleza? – Perguntou João, enquanto se distanciava numa pequena corrida até o interior do ônibus. Dei mais alguns passos até a cama improvisada de Lucas, o segurança ferido. Desta vez, ele estava acordado. Ficou surpreso a me ver chegando.
-Estou orgulhoso de você, menino. – Ele disse, ainda com uma voz rouca. Sorrí e me abaixei para poder falar com ele melhor.
-Tem um carro na estrada. Ele pode tirar você daqui. – Eu falei quase num sussurro.
-Ele vai tirar todo mundo? – Perguntou ainda descrente.
-Não... Não vai dar.  Apenas eu, você e meus amigos. – Fez-se uma pausa. Lucas olhou para o fogo da fogueira, ouviu o agradável crepitar das chamas. Eu vía o brilho em seus olhos.
-Eu não posso deixar essas pessoas aqui. – Respondeu, calmamente. – Elas dependem de mim. Amanhã virá outro ônibus. 

-Esse é o ponto, Lucas... – Desviei o olhar. Por que era eu quem tinha de dar as más notícias? – Não virá ônibus nenhum. – Lucas deu um longo suspiro, como se já tivesse imaginado que isso fosse acontecer.
-Eu... Vou ficar. – Lucas olhou para mim, com um sorriso esboçado em seu rosto. –Mas desejo boa sorte para vocês. Porque, acreditem em mim, vão precisar. – Ele apertou minha mão e me deu um leve tapa nas costas.

-Eu preciso ir agora. – Avisei. Virei de costas e corrí de volta para o carro que estava a minha espera. O homem se apresentou para nós como Marcos. Ele era alto, tinha cabelos curtos e pretos, ou ao menos pareciam pretos naquela noite.
 Na beira da estrada, estava João, carregando um violão encapado em suas costas.
-Era pra isso que você queria ir ao ônibus? – Perguntei, nervoso.
-Calma, não é o que você ta pensando. – João colocou a capa sobre o chão e abriu seu zíper.  Tirou uma longa lâmina cuja resplandecia sob o brilho da lua.

-Meu deus! – Exclamou Marcos. – É uma katana! – Já estendendo o braço para pegá-la de meu amigo.
-Calma aí, meu irmão! – João avisou a ele. – É uma relíquia de família. Ninguém toca nela senão eu. – Abafei uma risada e então entramos todos no carro. Eu fui no banco do carona e meus dois amigos foram atrás. Marcos ligou o som e disparou, queimando pneus. Notei que havía uma garrafa de uísque próximo ao banco do motorista. A música Back In Black tocava em alto volume enquanto acelerávamos pela estrada. O Sol nascia no horizonte, proporcionando um lindo céu alaranjado.

...Back in black, I hit the sack,
I've been too long, I'm glad to be back
Yes I'm let loose from the noose,
That's kept me hangin' about...

-E aí, para onde vamos? – Perguntei, enquanto colocava o cinto de segurança. Marcos parecia estar sorrindo. Ele olhou em meus olhos.
-Adiante, garoto. Adiante. – O carro voava pela estrada, acelerando envolto à penumbra noturna. Lucas dormia no banco, e João amolava a sua espada.
-Guarda isso aí atrás, porra! – Gritou Marcos. – Já tem zumbis demais na cidade pra vocês darem moles para acidentes. – João obedeceu a contragosto, escondendo sua katana na capa de violão.
   Nesse trecho, passávamos por uma pequena cidade. Marcos fez a curva e entramos no lugar. Tudo estava escuro e frio. Ele parou bruscamente o carro em um posto de gasolina. Olhou em direção à loja de conveniências ao canto. Marcos saiu e pegou uma mangueira de gasolina, enquanto assobiava uma música que eu desconhecia. Começou então a abastecer o veículo.
-To com fome. Alguém quer alguma coisa? – Perguntou Marcos, do lado de fora.
-Vou contigo. – Avisei enquanto abria minha porta. Deixamos os outros dois dentro do carro e caminhamos até a loja. Ví por entre o vidro as prateleiras e mais prateleiras de biscoitos, barras de cereais e diversos outros alimentos.

-Merda. – Marcos falou em voz baixa, ele estava próximo à porta. –Ta trancada. Sai daí. – Ele se adiantou na direção da vitrine, enquanto eu abrí algum espaço. Marcos sacou sua pistola e efetuou diversos disparos, estilhaçando o vidro em pequenos pedaços. Assustados, diversos pássaros próximos levantaram vôo.
   Passamos pelo vidro quebrado e começamos a recolher tudo o que nos seria de alguma ajuda. Enchí os braços com alimentos e garrafas d’água. Peguei para mim, também, uma lanterna que estava no balcão. De repente, ouço um disparo. Ví que Marcos havia acabado de dar outro tiro.

-Eles tão vindo. – Um infectado jazia morto na entrada da loja, com um buraco de bala na testa. Juntei o que eu tinha em mãos e corrí de volta para o veículo. Ouví um som estranho e olhei para a esquina. Pude avistar um contorno humano que corria disparado em nossa direção. Parecia carregar consigo uma espécie de machado. Marcos fez a mira...

-Não, espera! – Eu disse. –Não atira! –
   Percebí que era uma moça jovem, parecia ter a minha idade. Corria em nossa direção com um machado em mãos. Agora já estava próxima. Assistí impotente ela largando sua arma e se jogando em meus braços.
-Graças a deus, Graças a deus... – Ela dizia. Sua maquiagem estava borrada de tanto chorar, seus lábios estavam ressecados. Eu devía ter feito algo, devia ter respondido. Mas estava paralisado, hipnotizado por seus lindos olhos castanhos.

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