quarta-feira, 27 de julho de 2011

Capitulo 12 - Quarentena

 
   A minha visão estava embaçada, tudo parecia girar ao meu redor. Eu conseguia apenas distinguir vultos que se moviam a minha volta. Uma pessoa se aproximou e falou comigo. Reconhecí a voz de um amigo na primeira palavra.
-Matheus? Você ta bem, cara?– Lucas me perguntava. A imagem ía aos poucos tomando silhuetas mais definidas para mim. Estávamos em uma pequena sala fechada, atrás de uma grande parede de vidro. A cela tinha um colchão ao canto e uma privada em péssimas condições. A minha cabeça ainda doía bastante. E meu corpo em geral estava dolorido.
    Olhei para mim mesmo: Eu vestía uma roupa completamente branca. Camisetas e calça comprida. Roupas largas, sem nada por baixo. E também estava descalço. Era a mesma vestimenta de Lucas. Eu não me lembrava de ter posto aquela roupa em meu próprio corpo. Eu me sentía limpo, de uma forma que não estava desde o início da infecção.
-Estamos... Presos? – Perguntei, com uma mão no alto da cabeça, no lugar da coronhada que havia levado.
-Eu não diria “presos”. O pessoal daqui falou que era mais como uma quarentena. – Ele respondeu, parecendo confuso.
-Você sabe o que é uma quarentena, Lucas? A gente ta preso de qualquer jeito, cara.
   Somente nós dois estávamos naquela cela. Onde estavam os outros, afinal? Olhei pela janela o dia nublado que estava lá fora. Pelo menos ali dentro nós estaríamos seguros. Segurei-me pela grade para poder ver o que acontecia no exterior: Soldados marchavam por todo o lugar, com armas em mãos. Mais distante, era possível de se ver um heliporto onde havia uma grande movimentação de aeronaves. No alto das torres, atiradores se posicionavam e miravam o horizonte, em busca de infectados. Volta e meia se ouviam disparos.
-Você também passou pela chuveirada? – Lucas me perguntou.
- Ãnh... Chuveirada? Do que você ta falando?
-Quando a gente entrou, os militares nos separaram e passamos por uma forte... Ducha. Nos falaram que era tipo um procedimento padrão. – Lucas levantou a calça até a coxa e mostrou um hematoma. – Até agora eu to com o corpo doendo.
-Ah, então é isso. Eu também to todo dolorido. –
   Em uma cela à nossa frente, estava um senhor de idade sentado em seu colchão. Ele parecia perdido nos seus próprios pensamentos. Por um instante, pensei em fazer-lhe algumas perguntas. Mas a situação dele não era muito diferente da nossa.
   Com um rangido, a porta de vidro da cela se abriu. A porta era tão grossa quanto uma parede de concreto. Um homem estava parado do lado de fora, acompanhado de mais dois guardas. Era um adulto, parecia ter os seus trinta e poucos anos. Tinha o cabelo escorrido e usava óculos. Segurava uma prancheta em uma mão e uma caneta na outra.
-Você – Ele disse, apontando para mim. Tinha uma voz meio rouca, abafada. – Venha comigo. -
  Saí de perto da janela, tentando não demonstrar mau comportamento. Seguí o homem até o exterior da cela. Um dos seguranças trancou a porta enquanto caminhávamos pelo corredor. Era um lugar bem iluminado, pintado em cores claras.
   Andamos até o final do corredor, onde havia um grande portão de metal. De novo eu pude ver as iniciais lá estampadas. Um dos homens me disse para ir na frente, e assim eu fiz. Ao me aproximar, as portas se abriram automaticamente.

   Era uma pequena sala, com uma maca posicionada ao centro. Havia espelhos nas paredes, de onde com certeza alguém estava a nos observar.
-Sente-se ali, por favor. – O homem com a prancheta falou, indicando a maca para mim. Fui até lá. – Olá, meu nome é William, mas me chame de Doutor Brooks. – Ele falava para mim. Tinha um leve sotaque estrangeiro, mas não tão acentuado quanto o dos outros. – Eu vou te fazer algumas perguntas e uma série de exames. Não tente fazer nada contra mim e nem contra a minha equipe. É tudo para o seu bem. Consegue me entender?
-Sim. – Respondí, acenando com a cabeça.
-Que bom. Vou começar tirando um pouco de sangue, okay? – Disse William, enquanto preparava uma seringa. Esperei pacientemente enquanto ele fez todo o procedimento. O homem etiquetou o frasco do meu sangue e guardou-o em uma espécie de geladeira no fundo da sala.
-É um vírus? – Perguntei. William ficou sem reação por alguns instantes. Olhou para o grande espelho na parede, como se esperasse que alguém lhe dissesse o que fazer. Voltou o seu olhar para mim e tirou os seus óculos.
-Olha garoto, é uma situação delicada. Nós ainda não sabemos de muita coisa, e a maior parte do que sabemos é confidencial. – Ele deu um suspiro. – Não queira tornar as coisas ainda mais complicadas. –
   Observei o homem por alguns instantes. O doutor pegou um instrumento médico e voltou em minha direção. Pediu que eu me deitasse novamente e abrisse bem os olhos. Em seguida apontou um pequeno objeto em minha direção e acendeu uma luz, como uma lanterna, que ele apontou para os meus olhos.
   Fizemos mais alguns exames e testes, muito minuciosos. Eu ainda me perguntava se aquilo tudo seria mesmo necessário. Afinal, eu estava bem, não estava?
[...]
   Eu era acompanhado de volta à minha cela por dois soldados. William havia ficado na sala, dizia ele que ‘examinaria o meu sangue’. Pelo caminho, ví o que parecia ser um cadáver numa maca. Estava coberto, podia ser outra coisa. Médicos carregavam-no apressadamente em direção à sala de William.
-Matheus! – Alguém gritou. Olhei para o lado e ví Amanda, em sua cela. Estava acompanhada de outra mulher, adulta. Foi muito rápido, não deu para ver detalhes.
-Andando. – Disse um dos militares para mim, enquanto me apressava.
-Estou bem! – Gritei para Amanda, esperando que me ouvisse. Só tive tempo de interromper a minha queda com os braços. Eu estava dentro da minha cela novamente, um dos soldados ria de mim. Provavelmente o que me empurrara.
-Você. – Disse o outro apontando para Lucas. – Venha com a gente, agora. –
   Meu amigo passou por mim, ele parecia estar com medo. Eu também estava. Era ruim estar subordinado a outras pessoas. Preso em um lugar sem saber o que eles vão fazer, sem saber se você está em segurança ou não.
   Olho pela janela novamente. Ao longe, posso ver alguns infectados, cerca de vinte, se aproximando. Não eram muitos, os atiradores dariam conta em pouco tempo. E assim aconteceu. Depois de algum tempo de mira, como se esperassem que os zumbis simplesmente fossem embora, os militares dispararam, matando todos eles. Ainda tinham muito que aprender.
   Olho para o colchão ao canto. Sem escolha, sento-me nele e aproveito o pouco tempo que temos para poder pensar. Olho para a minha vestimenta. Onde será que estavam as minhas roupas? Devago por alguns minutos, perdido em lembranças e pensamentos tristes.
   De repente, Lucas é empurrado para dentro de novo. Ele tem um sorriso no rosto, está diferente. Diferentemente de mim, ele não caiu ao ser empurrado.
-Cara, eu achei o pessoal. Eles estão bem!
-Você ta falando do nosso pessoal?
-É! A Amanda... O Marcos... Todo mundo. Eles estão na mesma cela, pelo que parece. Eu me encontrei com o João no caminho, ele estava fazendo testes físicos numa esteira. –
   Lembrei de alguns momentos atrás, quando tive de fazer o mesmo. William aumentava e diminuía a velocidade, como se quisesse ver o meu limite.
   De qualquer forma, aquele cadáver na maca não saía de minha memória. Começaram a me vir lembranças da morte de Luís. Eu tinha abandonado ele no meio do caos, e meu amigo não tinha nem como se defender naquela hora... Não era justo com ele. Eu deveria ter ajudado. Minha mãe tinha morrido também, vítima dos disparos desses agentes. Os mesmos que estavam lá fora agora mesmo. O homem no hotel... Foi achado e devorado vivo por culpa nossa. Meu deus... Era tudo culpa minha.
-A gente precisa sair daqui. – Eu disse, olhando pela janela. A luz estava acabando, e a noite chegaria novamente. –Esses caras vão acabar nos matando. -
-Sair daqui? – Lucas perguntou assustado. – Mas estamos seguros! Não viu quantos soldados têm lá fora? E além do mais, para onde a gente iria?
- Você se lembra de quando eu e o Marcos fomos naquela loja de conveniências em Mangaratiba?
-Lembro sim.
- Então... Ele deu um único tiro dentro da loja, para matar um zumbi. Logo depois tinha uma multidão deles correndo para cima da gente. Mas os demais não tinham nos visto, apenas ouviram o disparo. Eles foram atraídos pelo som. – Fiz uma pausa. Lucas parecia perplexo.  – E esses militares estão atirando toda hora. Quando a gente chegou, não tinha nenhum infectado. Agora pouco, tinham vinte vindo para cá. E eles não param de atirar. Vai chegar uma hora em que não vai ter como se defenderem. –
   Lucas parou e pensou no que eu havia dito. Ficou alguns instantes absorvendo as palavras.
-Talvez isso seja verdade, mas eu não tenho certeza de que eles são atraídos pelo som.
-E você quer arriscar? –
   Lucas olhou pela janela, observando os militares lá embaixo. Nas torres, parecia ocorrer uma mudança de turno.
-Ta legal. Mas para onde a gente vai? E como vamos fugir daqui? –
-Para onde estávamos indo antes de nos pegarem? – Perguntei, pensando em nossas possibilidades.
-Eu sei lá... Para um refúgio, talvez.
-É... Pode ser. Mas seria melhor sair da cidade. Procurar algum lugar que não foi infectado. Sobre como a gente vai sair daqui, nós podemos ver isso mais tarde.  Você ta comigo ou não? –
   Eu propus, estendendo o braço. Lucas se aproximou e apertou a minha mão, em sinal de parceria. Sorrí para ele. Um sorriso falso. Tínhamos chances remotas de conseguir fugir dali. Mas o nosso futuro era incerto de qualquer jeito.
- A gente só precisa avisar o resto do pessoal. – Ele lembrou.
-É verdade... Você tem alguma ideia de como fazer isso?
-Não. –
   Entreolhamos-nos por alguns instantes. Lucas parecia disposto a qualquer maluquice para continuar vivo. Isso era bom, era nesse tipo de coisa que ele me lembrava de mim mesmo.
-Eu tenho um plano. – Falei. – Mas você vai precisar seguir à risca, sem hesitar. Ta me entendendo?
   Lucas acenou com a cabeça, ele compreendia a gravidade da situação. Desviei o olhar por alguns instantes. Agora não importava mais se alguém morreria no caminho. Não importava mais se todos morressem tentando fugir dali, pelo menos não faria diferença para mim. Eu já não tinha mais nada a perder. Sinto um sorriso tomar conta de meu rosto enquanto penso em tudo isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário